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A propósito de um passeio pedestre efectuado há alguns dias
numa área florestada da península de Lisboa e face ao despropósito das
intervenções aí perpetradas na rede de caminhos de pé-posto, confesso que fiquei
profundamente chocado e que uma persistente sensação de, digamos, “incómodo” me
tem acompanhado desde então! Uma sensação algo semelhante, mas curiosamente
mais forte, àquela que recorrentemente tenho sentido quando, noutra área também
florestada e situada na mesma península, sou confrontado, de há anos a esta
parte, com o corte sistemático (ou a eito?) de diversas espécies do coberto
vegetal! Ambas as áreas são geridas por entidades ditas “responsáveis” e que
supostamente possuem técnicos superiores e especialistas (devidamente habilitados?)
para desempenharem as funções pretendidas: desde logo, uma expectável conservação
da “natureza” para usufruto das gerações presentes e futuras.
Se no caso do corte do coberto vegetal, designadamente de
numerosas árvores, até admito que poderei não estar a ver “o filme” na sua
integral complexidade e a respectiva adequação dos meios empregues, no caso da
destruição dos caminhos de pé-posto poucas ou nenhumas dúvidas terei: trata-se
de uma grosseira intervenção que acarreta diversos impactes ambientais
negativos, ética e esteticamente desadequada, e cujas opções técnicas adoptadas
na construção dos caminhos se irão revelar inequivocamente erradas e, mais uma
vez, desnecessariamente onerosas. Aliás, duplamente onerosas: tendo em conta,
por um lado e desde logo, os custos ambientais decorrentes da destruição de
património natural devido à instalação dos “caminhos artificiais”
(externalidades difíceis de quantificar, é certo) e, por outro e a curto/médio
prazo, os custos resultantes da necessária manutenção e recuperação dessas
infraestruturas (esses, sim, traduzidos objectivamente em euros). Mais estranho
é, na mesma área, já existir uma rede de “caminhos artificiais” anteriormente
implementada e a precisar de recuperação, nomeadamente devido ao surgimento de
abarrancamentos. E é aí precisamente que reside uma parte (que não é de
somenos) do problema: a convivência (que deixou de o ser), em simultâneo, de uma rede de “caminhos artificiais”
a par de uma rede de trilhos rústicos, agora destruídos!
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ÉTICA E ESTÉTICA
AMBIENTAIS
Todas as realidades (e virtualidades?) apresentam aspectos
positivos e negativos, (re)velando-se uma ou ambas as facetas consoante a forma
como estas se expressam ou são utilizadas. Por vezes é tudo uma questão de “conta
e medida”, noutras ocasiões não se trata de uma mera questão quantitativa mas
sim (e/ou também) qualitativa. Mandará a prudência e o bom senso (para não
falar do bom gosto) que não se veja a realidade a preto e branco, ademais
quando a mesma é multicolorida e… plurifacetada. No entanto, que fique claro,
desde já, que não defendo a pretensa lapalissada de que “gostos não se
discutem” ou relativismos inconsequentes, mormente em matéria de estética da
paisagem e, portanto, também de ética ambiental.
A polémica, tal como as posições radicalmente opostas, no
tocante a intervenções antrópicas na paisagem é algo que já vem de longe. John
Muir (1838-1914), o fundador do Sierra Club, foi pioneiro na defesa da criação
de parques nacionais nos Estados Unidos da América, numa perspectiva
“preservacionista”, com vista a manter a natureza num estado pristino,
idealmente sem qualquer intervenção humana. Por outro lado, Gilford Pinchot
(1865-1946) foi defensor do conceito de “conservação da natureza” que não só
admite a intervenção antrópica como assume que esta pode e deve promover
impactes ambientais positivos. Nesta matéria, e tendo em conta o contexto
europeu, cuja intervenção humana no território é milenar, mandará o bom senso
optar por um “caminho do meio”, que o mesmo é dizer por “um meio termo”, que
permita, por um lado, a livre expressão da natureza (rewilding) e, por outro, uma “equilibrada” intervenção humana
(conservacionista). O que se torna difícil de tolerar é a manifesta
desadequação, mormente por ignorância (e mais ainda por outras questionáveis
razões), de medidas intervencionistas adoptadas, pretensamente com o intuito de
melhorar o ambiente, mas cujos resultados são gritantemente o oposto! Esse
tique intervencionista, recorrente e muitas vezes com contornos obsessivos, que
jocosamente poderemos denominar de “Síndroma do Aprendiz de Feiticeiro”, não
tem graça nenhuma, ademais quando a motivação extravasa a mera ignorância (já
de si injustificada em entidades supostamente competentes) e visa mostrar
“obra feita” para outros fins, designadamente eleitoralistas… O aproveitamento
do paradigma do “progresse”, da “requeza” e do “desenvolvemente”! Um exemplo evidente
desta parola forma de pensar (e pior ainda de agir) trata-se do recorrente
alcatroamento de “caminhos históricos” de terra, e até estradas empedradas (romanas
e medievais, pasme-se!), em períodos de eleições autárquicas. Por maioria de
razão (ou falta dela), o que dizer da suposta melhoria (na verdade, destruição)
dos parentes pobres dos caminhos, a que é dada pouca ou nenhuma importância ou
relevância, ainda que possam comportar valor histórico, estético ou outro: os
denominados “trilhos”, “veredas” ou “caminhos de pé-posto”?
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O UP-GRADE DA ARTIFICIALIZAÇÃO
O Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) de intervencionar ambientes
naturais ou semi-naturais, com vista à sua pretensa melhoria ou manutenção, trata-se
de um curioso desiderato, com contornos quasi
míticos, como se a natureza não fosse (auto)sustentável e existisse há milhões
de anos, para mais tendo o Homo sapiens
surgido há apenas comparativamente escassos milhares de anos neste condomínio
que é a Terra! Tratar-se-á, afinal, de substituir “o caos pela ordem”, os aterradores
espaços selvagens (wilderness) por espaços
ajardinados e/ou (re)florestados, devidamente artificializados e “segurizados”,
com caminhos devidamente aplanados e pavimentados, tabuletas e outras “bugigangas”.
O “TOC da artificialização” tem sofrido um incremento assinalável
desde a implementação da agricultura/pastorícia e da consequente sedentarização das
sociedades humanas, um crescimento exponencial desde a Revolução Industrial e renovadas
formas, associadas às designadas “pós-modernidade” e “sociedade da informação”,
agora mesmo em curso ou a despoletar, em velocidades vertiginosas, sob novos up-dates!
Uma das ideias recentes, já em curso, e que irá registar um enorme
aumento, a breve trecho, consiste na propagada melhoria dos espaços verdes acrescentando-lhes
uma ou mais dimensões virtuais, através da implementação de infraestruturas tecnológicas, mormente materializadas no terreno. Tais espaços, combinando “natureza”
com tecnologia, surgem sob diversas denominações, por exemplo "espaços cibermediados
ao ar livre", "espaços verdes tecnologicamente melhorados" ou "espaços verdes híbridos"!
Os promotores destes espaços híbridos consideram-nos soluções
bastante inovadoras, porque tradicionalmente os ambientes naturais e os digitais/virtuais
eram vistos, até há poucos anos, como algo oposto e dificilmente miscível. No
entanto, hoje em dia é algo vulgar, amplamente implementado e em grande
expansão: o uso de smartphones, tablets, computadores portáteis ou
outros aparelhos em campo, a utilização de aplicações diversas, bibliotecas electrónicas
(e-libraries) e livros digitais (e-books), o Sistema Global de
Posicionamento (GPS) e a generalização de actividades como o geocaching, etc.. As novas tecnologias, nesses espaços híbridos, podem proporcionar
interessantes contextos de aprendizagem, eficazes e atraentes, embora se vislumbrem
horizontes preocupantes, de imediato e a muito curto prazo, no contexto do que
temos vindo a abordar: a artificialização excessiva do território/paisagem e
das consequências nefastas daí advenientes. O problema irá certamente agudizar-se
no tocante à materialização de uma série de “inovações” no terreno: antenas,
postes informativos e/ou interactivos (com tecnologias como o Código QR e
outras), câmaras de filmar, drones, etc..
Não sou, de todo, contra o intervencionismo no terreno/paisagem,
ademais em acções como a land art (earth art ou earthwork), surgida no final da década de 1960, precisamente e em
parte como insatisfação face à sofisticada tecnologia da cultura industrial. O
que considero preocupante é como, de forma paulatina e sistemática, se tem
vindo a destruir os ambientes naturais substituídos por sucedâneos
semi-naturais e urbanos, numa crescente adulteração e domesticação dos espaços
e dos “seres”!
Na verdade, tudo poderá ser considerado relativo se,
nomeadamente, for abordado a diferentes escalas temporais e/ou espaciais. E em
matéria de intervenção antrópica na paisagem, se pensarmos à escala de tempo
geológico (na ordem dos milhões de anos), esta torna-se perfeitamente
insignificante. O que interessa a construção de uma estrada num monte se esse
local, passados 100 milhões de anos, passa a ser uma peneplanície na periferia de um oceano em
expansão? No entanto, a uma escala de tempo antrópico – algo dificilmente
ignorável por um ser humano – as intervenções surgem bastas vezes de forma
atroz, porque de atrocidades paisagísticas se tratam. Torna-se impossível não
sentir tristeza face à destruição de um "trilho natural" cilindrado por um "caminho artificial"… A sensação de incómodo, a que aludimos, é afinal profunda tristeza! Quando há ligação à Terra é tão simples quanto isso.
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REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Disponível em
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· SILVANO, Filomena. Antropologia do Espaço.
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