terça-feira, 29 de maio de 2018

Libertações


A corrida interrompe-se quando o corredor se ergue. O estado erecto põe um termo, talvez provisório, à fuga para a frente da evolução animal. Vista de forma idealizada, a passagem dos pré-hominídeos, de uma marcha a quatro patas para a locomoção pedestre do homem, traduz-se por uma série de sucessivas libertações: a da cabeça, relativamente ao solo, a da mão relativamente à marcha e, num mesmo impulso de verticalidade, como uma catedral gótica liberta dos pesados pilares romanos, a da abóbada craniana relativamente ao maciço facial. Os novos arranjos ósseos crânio-faciais e o enorme espaço assim adquirido associam-se à expansão que o cérebro encontra aí para se alojar. É, aliás, interessante observar que os ossos da face derivam de células provenientes da parte anterior da crista neural e estão sob o controlo de genes homeóticos que conduzem a formação do cérebro.
Edelman defende a ideia de que o cérebro é um sistema selectivo de reconhecimento. É provável que tenha razão. O cérebro funciona na selecção de similitudes e de contrastes; estabelece relações e relações entre relações, provavelmente por intermédio de grupos neurónicos, cuja estrutura e dinâmica continuam, até à data, a ser hipotéticas. Essas relações são, por definição, abstractas, mas não mais do que o que une uma molécula viva a uma outra: trata-se, nos dois casos, de um reconhecimento de formas. Essa abstracção faz que, por vezes, se fale, erradamente, de psiquismo ou de espírito, género imaterial que vem ocupar o vazio entre formas. É razoável admitir a hipótese de que o aumento considerável do tamanho do cérebro do homem, e, designadamente, o desenvolvimento do chamado córtex associativo, estarão na origem da sua fabulosa capacidade para estabelecer essas relações e as relações entre relações, que podemos designar pelo termo genérico de pensamento.
O pensamento traduz os processos de categorização do real, dos quais é inseparável, qualquer que seja o nível de abstracção em que se situem. É falso, por sua vez, afirmar que o pensamento é responsável por essas categorizações, ou seja, que efectua um trabalho sobre as representações. Seria, como sublinha A. Pochiantz, cair numa clivagem fatal com o corpo, «reintroduzir um dualismo vitalista que separa a função do seu substrato, substituir pelo real a metáfora do ordenador e reduzir a lógica do ser vivo à lógica da matemática». As representações são realizadas em territórios cerebrais mais ou menos especializados segundo a natureza sensorial dos dados provenientes do mundo.
(…) Eis, portanto, o cérebro do homem, capaz de representar um mundo que já não é ou que ainda não é, enfim, capaz de instrumentalizar o mundo bem real que se lhe oferece. Com uma pedra, ele parte outra pedra, coloca o fragmento na extremidade de um pau; com o conjunto constrói, segundo o tamanho e a forma, uma azagaia ou um machado, ou ainda uma lança, que empresta a um outro. Mas, dentro em breve, com os sons, o homem articula palavras: ele fala!
[VINCENT, 1997: 43-46]

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
VINCENT, Jean-Didier. A Carne e o Diabo. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, pp. 260.

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