terça-feira, 24 de junho de 2014

A Arte de Andar

 A Arte de Andar*


«Passear é, ao cabo e ao resto, a coisa mais simples que há no mundo: basta ter dois pés em bom estado. Para quê escrever tantas páginas acerca disso?» É verdade: o papel dos pés é espantosamente importante, e mais vale ter quatro do que dois. «A arte de passear faz-me pensar numa arte de dormir.» Encantado caro senhor sonâmbulo; que o sono vos seja agradável enquanto marchais!
Karl Gottlob Schelle (1802): A Arte de Passear

Kenneth White refere de forma sagaz que: «Se Thoreau utiliza os pés fá-lo, afinal de contas, em benefício da cabeça ou, digamos, do seu ser, do seu corpo-espírito inteiro. Não é um desportista que sai de casa para fazer quilómetros, não faz footing como costuma dizer-se. Pratica a caminhada inteligente.»1 De facto, o pedestrianismo está longe de ser apenas uma actividade puramente física. A arte de andar eleva um mero passeio ao estatuto de delicado exercício estético e/ou espiritual. É de todo espectável que queiramos beneficiar das impressões suscitadas pelos passeios e, ao aprofundar a natureza desse prazer múltiplo, multiplicá-lo e aumentá-lo ainda mais sob as mais diversas formas.
Os transcendentalistas de Concord (EUA) foram, nesse aspecto, notáveis ao assumirem sem rodeios implicações espirituais, estéticas e até éticas no que concerne ao aparentemente simples acto de andar a pé. De entre eles, Henry David Thoreau (1817-1862) destacou-se enormemente ao deixar uma marcante obra acerca dessa nobre arte, mormente Excursions2 e Walden; or, Life in the Woods3. A sua vivência intima no seio da natureza, nas margens do Walden, entre 1845 e 1847, revela uma irreprimível vocação para a caminhada que expressou de forma exemplar: «(…) tempo nenhum interferia de modo fatal nos meus passeios, ou antes, nas minhas saídas de casa, pois eu amiúde caminhava de doze a dezasseis quilómetros no meio da neve mais funda para ir ao encontro de um pé de faia ou de uma bétula amarela, ou até de um pinheiro velho meu conhecido»4.
No que concerne à necessidade seminal de andar e a caminhadas inteligentes não poderemos deixar de mencionar Antero de Quental (1842-1891) e Guerra Junqueiro (1850-1923). Tomás da Fonseca passeando uma tarde com Junqueiro, junto à foz do Ave, deu a conhecer o que esse poeta revelou sobre Antero de Quental acerca do seu costume de andar «léguas e léguas, até se perder por caminhos e fragas, donde voltava extenuado». Antero de Quental tinha por hábito «fazer largas digressões a pé pelos arredores de Coimbra, por necessidade de andar, para ouvir a harmonia das árvores e das fontes, parando para admirar os apoteóticos pôr-de-sol»5 e, dessa forma, entrar em profundas cogitações. O próprio Guerra Junqueiro confessou a importância que o andar desempenhava no seu processo criativo enquanto poeta: «Mergulhado, absorvido, assim, por êsse esforço mental, realizo, às vezes, longas caminhadas, marchas de léguas. (…) Nunca pude compor de outra maneira. (…) Não sei, mas sem dúvida o acto mecânico da marcha tem, sôbre certos espíritos, uma singular e definida influência.»6

CAMINHEIROS ANDANTES
Henry David Thoreau disse que só encontrou na vida uma ou duas pessoas que compreendiam a Arte de Caminhar, na acepção de saberem fazer o sautering.7 Esta curiosa palavra pode ser atribuída àqueles que andam em demanda da Terra Santa e/ou aos errantes “sem terra”. Ora a errância, ou a vadiagem (como gostava de lhe chamar o filósofo Agostinho da Silva), pode precisamente ser uma forma de poesia ou resultar, como atrás se referiu, numa criação poética. Errância no sentido de poder andar por aqui e por acolá… Caminhar sem destino pré-definido nem condicionalismos de tempo e, por isso, na plena liberdade de descobrir(-se). Algo que dificilmente se poderá expressar senão sob forma poética, razão pela qual tomamos a ousadia de encarar esses raros caminhantes como uma «grande raça» que parte recorrentemente «em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo de que os sonhos são feitos»8. Uma espécie de cavalaria espiritual, de cavaleiros de uma nova ordem (ou, antes, antiga?), a que Thoreau apelidou de “caminheiros andantes”.
A demanda a que se faz alusão actualiza-se no limiar da experiência do tempo imediato (o presente) e do espaço real (concreto) através da caminhada, enquanto movimento, num tempo e espaço possíveis de atingir por meio de uma atenção plena. Uma situação de intensa exteriorização, em perfeita comunhão com o todo (que deixa de ser outro), e, simultaneamente ou de forma alternada, de profunda imersão em si (no self). Afinal, a caminhada pode adoptar facetas insuspeitas, como um ioga ambulatório. Não terá sido por acaso que Jack Kerouac (1922-1969) incitava à experimentação daquilo que designou “meditação do caminho”: «andar apenas fitando o caminho aos teus pés, sem olhar para os lados, e deixa-te cair num êxtase à medida que o chão vai desaparecendo».9 Não será certamente por acaso que no Budismo Theravada se pratica meditação a caminhar.
No limiar, a Arte de Andar consistirá na demanda de descondicionar-se e, ao fazê-lo, reencontrar-se num ser outro e/ou num ser em si. Atingir um estado de ser mítico, i.e. experienciar uma vivência, in principio, altamente propícia ao ser poeta/poema. A bem dizer, existe uma actividade praticamente desconhecida (porque oculta da maior parte dos pedestrianistas) passível de se designar “pedestrianismo esotérico”… 

Pedro Cuiça
(Solstício de Verão 2014)
*Um pequeno trecho  da palestra "A Arte de Andar - Ética e Estética Ambientais" que decorreu, a 21 de Junho, no Complexo Municipal dos Desportos de Almada


Notas
1. Cf. Notas introdutórias de Kenneth White “Caminhar com Thoreau” – Henry David Thoreau – Caminhar; Lisboa: Hiena Editora, 1995, p. 14.
2. Constantemente revista e aperfeiçoada pelo autor ao longo da década de 1850, Excursions converter-se-ia na mais proferida das suas palestras, tendo sido publicada postumamente em 1862. – Em Portugal foi editada sob dois títulos distintos: (1) Henry David Thoreau – Caminhar; Lisboa: Hiena Editora, 1995 e (2) Henry David Thoreau – Caminhada; Lisboa: Antígona, 2012.
3. Excursions apresenta estreitas afinidades com Walden; or, Life in the Woods (1854), a obra-prima de Thoreau. – Henry David Thoreau – Walden ou A Vida nos Bosques; Lisboa: Antígona, 1999.
4. Cf. Henry David Thoreau – Walden ou A Vida nos Bosques; Lisboa: Antígona, 1999, p. 291. – No original: «(…) no weather interfered fatally with my walks, or rather my going abroad, for I frequently tramped eight or ten miles through the deepest snow to keep an appointment with a beech-tree, or a yellow-birch, or an old acquaintance among the pines» –  Henry David Thoreau – Walden; or, Life in the Woods; New York: Dover Publications, 1995, p. 171.
5. Cf. Tomás da Fonseca – Guerra Junqueiro: Como êle escrevia – Considerações sôbre o manuscrito de “Os Simples”; Coimbra: Coimbra Editora, 1924, p. 8.
6. Cf. ibid., p. 9.
7. Cf. Henry David Thoreau – Caminhar; Lisboa: Hiena Editora, 1995, p. 21.
8. De a Mensagem de Fernando Pessoa (1934).
9. Cf. Christopher McDougall – Nascidos para Correr; Alfragide: Caderno, 2010, p. 188. – Citação de Jack Kerouac em Os Vagabundos do Dharma (1958) – Esta obra foi publicada pela Relógio D’Água Editores (2000) onde se encontra a mesma passagem traduzida de forma diferente (p. 246): «Experimenta a meditação dos trilhos, limita-te a andar a olhar para o trilho aos teus pés e não desvies o olhar e mergulha num transe enquanto o chão passa por debaixo de ti.»


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