«Passear é, ao cabo e ao resto, a coisa mais
simples que há no mundo: basta ter dois pés em bom estado. Para quê escrever
tantas páginas acerca disso?» É verdade: o papel dos pés é espantosamente
importante, e mais vale ter quatro do que dois. «A arte de passear faz-me
pensar numa arte de dormir.» Encantado caro senhor sonâmbulo; que o sono vos
seja agradável enquanto marchais!
Karl
Gottlob Schelle (1802): A Arte de Passear
Kenneth
White refere de forma sagaz que: «Se Thoreau utiliza os pés fá-lo, afinal de
contas, em benefício da cabeça ou, digamos, do seu ser, do seu corpo-espírito
inteiro. Não é um desportista que sai de casa para fazer quilómetros, não faz footing
como costuma dizer-se. Pratica a caminhada inteligente.»1 De
facto, o pedestrianismo está longe de ser apenas uma actividade puramente
física. A arte de andar eleva um mero passeio ao estatuto de delicado exercício
estético e/ou espiritual. É de todo espectável que queiramos beneficiar das
impressões suscitadas pelos passeios e, ao aprofundar a natureza desse prazer
múltiplo, multiplicá-lo e aumentá-lo ainda mais sob as mais diversas formas.
Os
transcendentalistas de Concord (EUA) foram, nesse aspecto, notáveis ao assumirem
sem rodeios implicações espirituais, estéticas e até éticas no que concerne ao
aparentemente simples acto de andar a pé. De entre eles, Henry David Thoreau
(1817-1862) destacou-se enormemente ao deixar uma marcante obra acerca dessa
nobre arte, mormente Excursions2 e Walden; or, Life in the
Woods3. A sua vivência intima no seio da natureza, nas margens
do Walden, entre 1845 e 1847, revela uma irreprimível vocação para a caminhada
que expressou de forma exemplar: «(…) tempo nenhum interferia de modo fatal
nos meus passeios, ou antes, nas minhas saídas de casa, pois eu amiúde
caminhava de doze a dezasseis quilómetros no meio da neve mais funda para ir ao
encontro de um pé de faia ou de uma bétula amarela, ou até de um pinheiro velho
meu conhecido»4.
No que
concerne à necessidade seminal de andar e a caminhadas inteligentes não
poderemos deixar de mencionar Antero de Quental (1842-1891) e Guerra Junqueiro
(1850-1923). Tomás da Fonseca passeando uma tarde com Junqueiro, junto à foz do
Ave, deu a conhecer o que esse poeta revelou sobre Antero de Quental acerca do
seu costume de andar «léguas e léguas, até se perder por caminhos e fragas,
donde voltava extenuado». Antero de Quental tinha por hábito «fazer
largas digressões a pé pelos arredores de Coimbra, por necessidade de andar,
para ouvir a harmonia das árvores e das fontes, parando para admirar os
apoteóticos pôr-de-sol»5 e, dessa forma, entrar em profundas
cogitações. O próprio Guerra Junqueiro confessou a importância que o andar
desempenhava no seu processo criativo enquanto poeta: «Mergulhado,
absorvido, assim, por êsse esforço mental, realizo, às vezes, longas
caminhadas, marchas de léguas. (…) Nunca pude compor de outra maneira. (…) Não
sei, mas sem dúvida o acto mecânico da marcha tem, sôbre certos espíritos, uma
singular e definida influência.»6
CAMINHEIROS
ANDANTES
Henry David Thoreau disse que só encontrou na vida
uma ou duas pessoas que compreendiam a Arte de Caminhar, na acepção de saberem
fazer o sautering.7
Esta curiosa palavra pode ser atribuída àqueles que andam em demanda da Terra
Santa e/ou aos errantes “sem terra”. Ora a errância, ou a vadiagem (como
gostava de lhe chamar o filósofo Agostinho da Silva), pode precisamente ser uma
forma de poesia ou resultar, como atrás se referiu, numa criação poética.
Errância no sentido de poder andar por aqui e por acolá… Caminhar sem destino
pré-definido nem condicionalismos de tempo e, por isso, na plena liberdade de
descobrir(-se). Algo que dificilmente se poderá expressar senão sob forma
poética, razão pela qual tomamos a ousadia de encarar esses raros caminhantes
como uma «grande
raça» que parte recorrentemente «em busca de uma Índia nova, que
não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo de que os sonhos são
feitos»8. Uma espécie de cavalaria espiritual, de cavaleiros de
uma nova ordem (ou, antes, antiga?), a que Thoreau apelidou de “caminheiros
andantes”.
A demanda a que se faz alusão actualiza-se no limiar
da experiência do tempo imediato (o presente) e do espaço real (concreto)
através da caminhada, enquanto movimento, num tempo e espaço possíveis de
atingir por meio de uma atenção plena. Uma situação de intensa exteriorização,
em perfeita comunhão com o todo (que deixa de ser outro), e, simultaneamente ou
de forma alternada, de profunda imersão em si (no self). Afinal, a caminhada pode adoptar facetas insuspeitas, como
um ioga ambulatório. Não terá sido por acaso que Jack Kerouac (1922-1969) incitava à
experimentação daquilo que designou “meditação do caminho”: «andar
apenas fitando o caminho aos teus pés, sem olhar para os lados, e deixa-te cair
num êxtase à medida que o chão vai desaparecendo».9
Não será certamente por acaso que no Budismo Theravada se pratica meditação a
caminhar.
No limiar, a Arte de Andar consistirá na demanda de
descondicionar-se e, ao fazê-lo, reencontrar-se num ser outro e/ou num ser em
si. Atingir um estado de ser mítico, i.e.
experienciar uma vivência, in principio,
altamente propícia ao ser poeta/poema. A bem dizer, existe uma actividade
praticamente desconhecida (porque oculta da maior parte dos pedestrianistas)
passível de se designar “pedestrianismo esotérico”…
Pedro Cuiça
(Solstício de Verão
2014)
Notas
1. Cf. Notas introdutórias de
Kenneth White “Caminhar com Thoreau” – Henry David Thoreau – Caminhar;
Lisboa: Hiena Editora, 1995, p. 14.
2. Constantemente revista e
aperfeiçoada pelo autor ao longo da década de 1850, Excursions
converter-se-ia na mais proferida das suas palestras, tendo sido publicada
postumamente em 1862. – Em Portugal foi editada sob dois títulos distintos: (1)
Henry David Thoreau – Caminhar; Lisboa: Hiena Editora, 1995 e (2) Henry
David Thoreau – Caminhada; Lisboa: Antígona, 2012.
3. Excursions apresenta
estreitas afinidades com Walden; or, Life in the Woods (1854), a
obra-prima de Thoreau. – Henry David Thoreau – Walden ou A Vida nos Bosques;
Lisboa: Antígona, 1999.
4. Cf. Henry David Thoreau – Walden ou A Vida
nos Bosques; Lisboa: Antígona, 1999, p. 291. – No original: «(…) no
weather interfered fatally with my walks, or rather my going abroad, for I
frequently tramped eight or ten miles through the deepest snow to keep an
appointment with a beech-tree, or a yellow-birch, or an old acquaintance among
the pines» – Henry David Thoreau – Walden;
or, Life in the Woods; New York: Dover Publications, 1995, p. 171.
5. Cf. Tomás da Fonseca – Guerra
Junqueiro: Como êle escrevia – Considerações sôbre o manuscrito de “Os Simples”;
Coimbra: Coimbra Editora, 1924, p. 8.
6. Cf. ibid., p. 9.
7. Cf. Henry David Thoreau –
Caminhar; Lisboa: Hiena Editora, 1995, p. 21.
8. De a Mensagem de Fernando Pessoa (1934).
9. Cf. Christopher McDougall – Nascidos
para Correr; Alfragide: Caderno, 2010, p. 188. – Citação de Jack Kerouac em
Os Vagabundos do Dharma (1958) – Esta
obra foi publicada pela Relógio D’Água Editores (2000) onde se encontra a mesma
passagem traduzida de forma diferente (p. 246): «Experimenta a meditação dos
trilhos, limita-te a andar a olhar para o trilho aos teus pés e não desvies o
olhar e mergulha num transe enquanto o chão passa por debaixo de ti.»
Excelente!
ResponderEliminarObrigado :)
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