quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Ligação à Terra


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A propósito de um passeio pedestre efectuado há alguns dias numa área florestada da península de Lisboa e face ao despropósito das intervenções aí perpetradas na rede de caminhos de pé-posto, confesso que fiquei profundamente chocado e que uma persistente sensação de, digamos, “incómodo” me tem acompanhado desde então! Uma sensação algo semelhante, mas curiosamente mais forte, àquela que recorrentemente tenho sentido quando, noutra área também florestada e situada na mesma península, sou confrontado, de há anos a esta parte, com o corte sistemático (ou a eito?) de diversas espécies do coberto vegetal! Ambas as áreas são geridas por entidades ditas “responsáveis” e que supostamente possuem técnicos superiores e especialistas (devidamente habilitados?) para desempenharem as funções pretendidas: desde logo, uma expectável conservação da “natureza” para usufruto das gerações presentes e futuras.
Se no caso do corte do coberto vegetal, designadamente de numerosas árvores, até admito que poderei não estar a ver “o filme” na sua integral complexidade e a respectiva adequação dos meios empregues, no caso da destruição dos caminhos de pé-posto poucas ou nenhumas dúvidas terei: trata-se de uma grosseira intervenção que acarreta diversos impactes ambientais negativos, ética e esteticamente desadequada, e cujas opções técnicas adoptadas na construção dos caminhos se irão revelar inequivocamente erradas e, mais uma vez, desnecessariamente onerosas. Aliás, duplamente onerosas: tendo em conta, por um lado e desde logo, os custos ambientais decorrentes da destruição de património natural devido à instalação dos “caminhos artificiais” (externalidades difíceis de quantificar, é certo) e, por outro e a curto/médio prazo, os custos resultantes da necessária manutenção e recuperação dessas infraestruturas (esses, sim, traduzidos objectivamente em euros). Mais estranho é, na mesma área, já existir uma rede de “caminhos artificiais” anteriormente implementada e a precisar de recuperação, nomeadamente devido ao surgimento de abarrancamentos. E é aí precisamente que reside uma parte (que não é de somenos) do problema: a convivência (que deixou de o ser), em simultâneo, de uma rede de “caminhos artificiais” a par de uma rede de trilhos rústicos, agora destruídos!

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ÉTICA E ESTÉTICA AMBIENTAIS
Todas as realidades (e virtualidades?) apresentam aspectos positivos e negativos, (re)velando-se uma ou ambas as facetas consoante a forma como estas se expressam ou são utilizadas. Por vezes é tudo uma questão de “conta e medida”, noutras ocasiões não se trata de uma mera questão quantitativa mas sim (e/ou também) qualitativa. Mandará a prudência e o bom senso (para não falar do bom gosto) que não se veja a realidade a preto e branco, ademais quando a mesma é multicolorida e… plurifacetada. No entanto, que fique claro, desde já, que não defendo a pretensa lapalissada de que “gostos não se discutem” ou relativismos inconsequentes, mormente em matéria de estética da paisagem e, portanto, também de ética ambiental.
A polémica, tal como as posições radicalmente opostas, no tocante a intervenções antrópicas na paisagem é algo que já vem de longe. John Muir (1838-1914), o fundador do Sierra Club, foi pioneiro na defesa da criação de parques nacionais nos Estados Unidos da América, numa perspectiva “preservacionista”, com vista a manter a natureza num estado pristino, idealmente sem qualquer intervenção humana. Por outro lado, Gilford Pinchot (1865-1946) foi defensor do conceito de “conservação da natureza” que não só admite a intervenção antrópica como assume que esta pode e deve promover impactes ambientais positivos. Nesta matéria, e tendo em conta o contexto europeu, cuja intervenção humana no território é milenar, mandará o bom senso optar por um “caminho do meio”, que o mesmo é dizer por “um meio termo”, que permita, por um lado, a livre expressão da natureza (rewilding) e, por outro, uma “equilibrada” intervenção humana (conservacionista). O que se torna difícil de tolerar é a manifesta desadequação, mormente por ignorância (e mais ainda por outras questionáveis razões), de medidas intervencionistas adoptadas, pretensamente com o intuito de melhorar o ambiente, mas cujos resultados são gritantemente o oposto! Esse tique intervencionista, recorrente e muitas vezes com contornos obsessivos, que jocosamente poderemos denominar de “Síndroma do Aprendiz de Feiticeiro”, não tem graça nenhuma, ademais quando a motivação extravasa a mera ignorância (já de si injustificada em entidades supostamente competentes) e visa mostrar “obra feita” para outros fins, designadamente eleitoralistas… O aproveitamento do paradigma do “progresse”, da “requeza” e do “desenvolvemente”! Um exemplo evidente desta parola forma de pensar (e pior ainda de agir) trata-se do recorrente alcatroamento de “caminhos históricos” de terra, e até estradas empedradas (romanas e medievais, pasme-se!), em períodos de eleições autárquicas. Por maioria de razão (ou falta dela), o que dizer da suposta melhoria (na verdade, destruição) dos parentes pobres dos caminhos, a que é dada pouca ou nenhuma importância ou relevância, ainda que possam comportar valor histórico, estético ou outro: os denominados “trilhos”, “veredas” ou “caminhos de pé-posto”?

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O UP-GRADE DA ARTIFICIALIZAÇÃO
O Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) de intervencionar ambientes naturais ou semi-naturais, com vista à sua pretensa melhoria ou manutenção, trata-se de um curioso desiderato, com contornos quasi míticos, como se a natureza não fosse (auto)sustentável e existisse há milhões de anos, para mais tendo o Homo sapiens surgido há apenas comparativamente escassos milhares de anos neste condomínio que é a Terra! Tratar-se-á, afinal, de substituir “o caos pela ordem”, os aterradores espaços selvagens (wilderness) por espaços ajardinados e/ou (re)florestados, devidamente artificializados e “segurizados”, com caminhos devidamente aplanados e pavimentados, tabuletas e outras “bugigangas”.
O “TOC da artificialização” tem sofrido um incremento assinalável desde a implementação da agricultura/pastorícia e da consequente sedentarização das sociedades humanas, um crescimento exponencial desde a Revolução Industrial e renovadas formas, associadas às designadas “pós-modernidade” e “sociedade da informação”, agora mesmo em curso ou a despoletar, em velocidades vertiginosas, sob novos up-dates!
Uma das ideias recentes, já em curso, e que irá registar um enorme aumento, a breve trecho, consiste na propagada melhoria dos espaços verdes acrescentando-lhes uma ou mais dimensões virtuais, através da implementação de infraestruturas tecnológicas, mormente materializadas no terreno. Tais espaços, combinando “natureza” com tecnologia, surgem sob diversas denominações, por exemplo "espaços cibermediados ao ar livre", "espaços verdes tecnologicamente melhorados" ou "espaços verdes híbridos"!
Os promotores destes espaços híbridos consideram-nos soluções bastante inovadoras, porque tradicionalmente os ambientes naturais e os digitais/virtuais eram vistos, até há poucos anos, como algo oposto e dificilmente miscível. No entanto, hoje em dia é algo vulgar, amplamente implementado e em grande expansão: o uso de smartphones, tablets, computadores portáteis ou outros aparelhos em campo, a utilização de aplicações diversas, bibliotecas electrónicas (e-libraries) e livros digitais (e-books), o Sistema Global de Posicionamento (GPS) e a generalização de actividades como o geocaching, etc.. As novas tecnologias, nesses espaços híbridos, podem proporcionar interessantes contextos de aprendizagem, eficazes e atraentes, embora se vislumbrem horizontes preocupantes, de imediato e a muito curto prazo, no contexto do que temos vindo a abordar: a artificialização excessiva do território/paisagem e das consequências nefastas daí advenientes. O problema irá certamente agudizar-se no tocante à materialização de uma série de “inovações” no terreno: antenas, postes informativos e/ou interactivos (com tecnologias como o Código QR e outras), câmaras de filmar, drones, etc..
Não sou, de todo, contra o intervencionismo no terreno/paisagem, ademais em acções como a land art (earth art ou earthwork), surgida no final da década de 1960, precisamente e em parte como insatisfação face à sofisticada tecnologia da cultura industrial. O que considero preocupante é como, de forma paulatina e sistemática, se tem vindo a destruir os ambientes naturais substituídos por sucedâneos semi-naturais e urbanos, numa crescente adulteração e domesticação dos espaços e dos “seres”!
Na verdade, tudo poderá ser considerado relativo se, nomeadamente, for abordado a diferentes escalas temporais e/ou espaciais. E em matéria de intervenção antrópica na paisagem, se pensarmos à escala de tempo geológico (na ordem dos milhões de anos), esta torna-se perfeitamente insignificante. O que interessa a construção de uma estrada num monte se esse local, passados 100 milhões de anos, passa a ser uma peneplanície na periferia de um oceano em expansão? No entanto, a uma escala de tempo antrópico – algo dificilmente ignorável por um ser humano – as intervenções surgem bastas vezes de forma atroz, porque de atrocidades paisagísticas se tratam. Torna-se impossível não sentir tristeza face à destruição de um "trilho natural" cilindrado por um "caminho artificial"… A sensação de incómodo, a que aludimos, é afinal profunda tristeza! Quando há ligação à Terra é tão simples quanto isso.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
· AA.VV.. Manual de Monitores de Pedestrianismo. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal, 2001, pp. 136. ISBN 978-989-20-0564-5
· BÉGUIN, François. Le Paysage. Paris: Flammarion, 1995, pp. 128. ISBN 2-08-035401-9
· CUIÇA, Pedro. Passo a Passo – Manual de Caminhada e Trekking. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015, pp. 312. ISBN 978-989-626-721-6
· CUIÇA, Pedro. Guia de Montanha – Manual Técnico de Montanha I. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal/Campo Base, 2010, pp. 224, ISBN 978-989-96647-1-5
· FERREIRA, Conceição Coelho & SIMÕES, Natércia Neves. A Evolução do pensamento Geográfico. Lisboa: Gradiva, 1986, pp. 142.
· KLICHOWSKI, Michal. Learning in hybrid spaces as technology-enhanced outdoor learning: Key terms. Disponível em
· LEOPOLD, Aldo. Pensar Como Uma Montanha. Águas Santas: Edições Sempre-em-Pé, 2008, pp. 220. ISBN 978-972-8870-10-2
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· NICOD, Jean. Pays et Paysages du Calcaire. Paris: Presses Universitaires de France, 1972, pp. 244.
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· SILVANO, Filomena. Antropologia do Espaço. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp. 112. ISBN 978-972-37-1534-7

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