sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O Caminho...


Tao () – O Caminho da Natureza

Tao ou Dao () é uma palavra chinesa que significa 'caminho', 'trilho', 'rota'... Em japonês pronuncia-se "Do" – o símbolo associado às artes tradicionais como o aiquido, o judo, o jodo, o kendo, o kyudo ou o chado (o caminho do chá). Tao significa a essência primordial ou verdadeira natureza fundamental do Universo (e de nós mesmos). Tao não é um 'nome' de uma 'coisa', mas a ordem natural subjacente ... É, portanto, "eternamente sem nome" e distingue-se, portanto, das inúmeras coisas 'nomeadas' (formas e estruturas visíveis) que são consideradas suas manifestações.



sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Pelo caminho que houver


«Menino, pois, vem Jesus viver com o poeta (…). Vem viver para a aldeia, exactamente como Alberto Caeiro, porque o ar da cidade se encontra demasiado corrompido pela acumulação de metafísicas, não sendo o próprio urbanismo, provavelmente, mais do que a consequência de uma falta de naturalidade; e vem viver não para ser um pregador da bondade e da justiça, ambas daninhas por serem abstracções ou sobre abstracções terem seu alicerce, mas para chapinhar nas poças de água, limpar o nariz ao braço direito e atrever-se, até, a outras mais ousadas artes. Ligada a esta, a de ser uma criança natural, tem ainda outra missão, a de ensinar o poeta a olhar para as coisas, que na flor existem ou que existem nas pedras quando devagar as tomamos e lentamente as vamos deixando ser. É ele, pegando Alberto Caeiro pela mão, que o leva de passeio, enquanto a outra mão do Menino se dá a tudo o que existe, e vão os três andando, não pelo caminho que há e em que demasiado é patente a obra e a determinação dos que pensam, mas pelo caminho que houver; o que, por ser, existir. Tão bem se dão os dois, que até nessa relação de humano a humano foi possível desaparecer o pensar: não pensam um no outro; juntos são, por um acordo íntimo.» 
[SILVA, 1996: 60-62]


«Sem se mexer, nem sequer por dentro, como dele dizia Álvaro de Campos, Fernando Pessoa agudamente se observa a si mesmo e ao grupinho que com ele tinham formado os três poetas. Era o conjunto de mais penetrante inteligência, de maior capacidade de ironia, de menor provincianismo que já mais se constituía em Portugal; no entanto, tendo tão superiormente ultrapassado a vida, podendo, por exemplo, dizer a um Sá-Carneiro que o não achavam completamente civilizado, podendo tratar a sociedade portuguesa do seu tempo com o desembaraço, o desdém e a agressividade com que a tratavam – apenas, de onde a onde, com algumas ingenuidades, como a de propor Mensagem a políticos cuja característica essencial era a de não serem nem imperiais, nem proféticos, nem épicos mas chapadamente pedestres, retrógrados, locais – o certo era que afinal o meio ambiente acabava por os vencer, com as bebidas, o fumo e os cafés de Fernando Pessoa, o exílio sem glória de Ricardo Reis, a morte prematura de Alberto Caeiro, e é fora de dúvida ser a tuberculose uma doença de ambiente, e o cansaço permanente de Álvaro de Campos. O que os abatia e afinal os unia num mesmo denominador era essa falta de uma energia que todos louvaram e todos punham como o bem mais desejável de todos os bens, mas que apenas lhe dava para escreverem seus panfletos de várias formas e os comentarem ou comentarem os dos outros à volta das mesas do Martinho.» [SILVA, 1996: 81-82]

Pedro Cuiça © Martinho da Arcada (Lisboa, 4/02/2017)

«Não haverá salvação para o mundo enquanto não entendermos e fizermos penetrar em nossas consciências este facto basilar, e enquanto as nossas escolas, transformando-se inteiramente, não forem, em lugar de máquinas de fabricar adultos, viveiros de crianças; enquanto não forem as crianças que nos levem, não pelo caminho que uma ciência fáustica previu, mas pelo que houver, dando a mão, ao mesmo tempo, a nós e às coisas: enquanto não for o Menino Jesus nosso Deus verdadeiro.» [SILVA, 1996: 87]

PC ©


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SILVA, Agostinho da. Um Fernando Pessoa. Lisboa: Guimarães Editores, 1996, pp. 196. ISBN 972-665-345-2


quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Estados d'alma


Pedro Cuiça © Da Graça (Lisboa, 18/09/2019)

Disse [o professor suíço de estética e filosofia Henri-Frédéric] Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamarmos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.
De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim cresce erva, chove na erva que cresce, e o sol doira a extensão de erva que cresceu [está a crescer] ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certo era dizer que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tão-somente de uma metáfora.
Estas palavras casuais foram-me ditas pela grande extensão da cidade, vista à luz universal do sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto como uma virtude nobre o entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da outra banda são uma Suíça achatada. (…)

No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação de privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob a sola dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que é diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, ou ventos, como a de Éolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no reconhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais [que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.
[SOARES, 2014: 85-86]

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SOARES, Bernardo. O Livro do Desassossego. Porto: Assírio & Alvim, 2014, pp. 480. ISBN 978-972-37-1787-7