DIZEM QUE NÃO HÁ NADA DE NOVO debaixo do Sol, mas também se
poderá afirmar que não há nada de velho debaixo do Sol. O filósofo norueguês
Arne Naess, que foi um amigo muito querido, praticava a sua variação desta
ideia: a de que, de facto, tudo o que nos rodeia é novo.
Durante doze anos da sua vida adulta viveu numa cabana
solitária em Tvergastein, no sopé da cadeia de montanhas Hallingskarvet. Arne
insistia em seguir um percurso diferente cada vez que fazíamos caminhadas por
aqueles lugares, o que, por vezes significava desviarmo-nos apenas algumas
polegadas do caminho que anteriormente escolhêramos. Isto era uma coisa que
todos os que o visitavam deviam seguir à risca. Durante todos esses anos, Arne
certificou-se de que não havia um caminho único até à sua cabana.
Também decidira que numa circunferência de dois metros à
roda da sua cabana devia haver uma espécie de parque natural, de modo a
proteger a urze, os ranúnculos e as dríades alpinas que por ali cresciam. Todos
os visitantes, incluindo ele, só podiam caminhar sobre as lajes que estavam
dispostas nessa zona protegida. Isso permitia que Arne, todos os anos, pudesse
observar da sua janela a vegetação viva e intacta,
Tvergastein foi talvez a única cabana em toda a Noruega que
não teve um trilho feito pelo homem. Viam-se trilhos de animais, um pouco mais
longe, na montanha, mas só isso. Hoje, oito anos após ele ter partido na sua
última viagem, existe um único trilho, feito por pés humanos, que leva à sua
cabana. Sem a presença de Naess, os caminhantes inevitavelmente optaram pelo
caminho mais cómodo e imutável.
[KAGGE, 2018: 99-100]
© Algures da Net
ESTAR CONVENCIDO DE QUE ANDAR a pé nunca deveria ser penoso
é um equívoco. Não quero dizer que tenhamos que ficar angustiados por empurrar
um carrinho de compras no passeio ou quando, às vezes, à tarde, damos uma
pequena volta a pé. A natureza deu-nos a dor como uma tribulação, mas ela é
muito mais do que isso. A dor também pode ser benéfica e aprazível, quando nos
permite reconhecer a sensação de bem-estar e, sobretudo, a ausência de dor assim que ela desaparece.
(…)
Para Arne Naess, a felicidade tinha a ver com o fulgor – que para ele significava o
fervor ou a paixão – e a dor.
Enquanto filósofo que dispunha de uma boa compreensão da matemática, elaborou a
sua própria equação para o bem-estar.
Quando me deparei com a equação, tive de a estudar várias vezes, por ser tão
engenhosa quanto simples – e verdadeira:
A equação pressupõe que um pequeno aumento no fulgor pode
compensar uma elevada quantidade de dor. Se tivermos muito pouco fulgor, também
não experimentaremos senão uma pequena parte de bem-estar, mesmo que tenhamos
de suportar poucos incómodos. Naess disse-me que pretendia salientar o
significado da dor e, ao mesmo tempo, estava convencido de que mais vale
estarmos empenhados em aumentar o fulgor do que em diminuir a nossa dor.
Peter Wessel Zapffe, um amigo de Naess, escreveu – na sua
tese de doutoramento, com um título de recorte clássico: Da Tragédia – sobre a importância de não tomar atalhos, mas, em vez
disso, empregar o tempo a lutar por atingir um objectivo. Receber demasiado
apoio técnico «é um roubo irresponsável das reservas de experiências da
humanidade». Grandes palavras, de facto. É descabido chegar de carro ou
helicóptero ao cume da montanha, em vez de a subir a pé, porque a experiência
de estar no cume é superficial se não tiver sido penosa. Zapffe, também
filósofo, considerava que a nossa necessidade frequente de simplificar as
coisas é o verdadeiro censor das nossas oportunidades de ter grandes experiências.
A sua ideia básica, que julgo ser partilhada por todos os que fazem longas
caminhadas, é que alcançar não tem
necessariamente o mesmo valor do que se
alcançou.
[KAGGE, 2018: 115-117]
© Algures da Net
Fazer uma caminhada apenas quando faz bom tempo – e ficar
em casa quando está vento, a chover ou a nevar – é perder metade da
experiência. Talvez até a melhor metade.
[KAGGE, 2018: 117]
© Algures da Net
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
KAGGE, Erling. A
Arte de Caminhar – Um Passo de Cada Vez. Lisboa: Quetzal, 2018, pp.
208. ISBN 978-989-722-519-2
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