domingo, 28 de agosto de 2022

Neolítico


© Algures na Net


Andar e/ou correr tinha-se tornado num meio de transporte primário, como o carro para os "urbanoides"; para todo o lado onde vá, vai a passo ou em corrida "com tão pouco equipamento como um caçador neolítico, e com a mesma despreocupação quanto ao destino, por muito distante que seja.


© PC 2022

sábado, 13 de agosto de 2022

Estilo Precipício

 



O «estilo precipício» nas edificações dos carmelitas descalços consistia na recreação e preservação da inacessibilidade e do desconforto, e, muitas vezes, coincidia com a natureza e simbologia da montanha como lugar de iniciação e de epifania místicas. Traduzia-se pela exaltação do obstáculo e da capacidade de o superar. Conseguir encontrar-se todos os dias com a morte e dar-lhe um aperto de mão, oferecer-lhe uma cadeira para ela descansar, pedindo-lhe, porém, que se atrasasse um pouco do seu intento não para fugir à morte, mas para sofrer um pouco mais, e tudo isto sem perder a bondade perante os que sofrem, ainda que sofressem apenas por não conseguirem criar uma «flor inverosímil», como o monge do Buçaco que durante sessenta anos tentou criar uma rosa azul.

Susana Neves (2022, p. 64)

 

Um grupo de monges carmelitas descalços portugueses fundou, em 1628, um deserto ou eremitério, no extremo noroeste da serra do Buçaco, inspirados pelo exemplo de Santa Teresa de Ávila e San Juan de la Cruz: reformadores da Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo.

O deserto do Buçaco, enquanto «local de recolhimento, oração e ascese», favorável à vivência do silêncio, coexistiu com a presença do sagrado, expressa de forma inequívoca no frondoso bosque resultante dos trabalhos de arborização levados a cabo por frades e monges. A autora, Susana Neves, calcorreou a mata inúmeras vezes «no modo e no tempo de um carmelita descalço, ou seja, a pé (embora descarmeliticamente tenha andado sempre bem calçada) e sem ninguém por perto» (NEVES 2022, p. 12). O «estilo precipício» foi traduzido não só nas edificações dos carmelitas como também, e sobretudo, na construção do templo interior de cada um dos monges.  Um livro a não perder.


Título: Ama o Precipício – Viagem à Mata Nacional do Buçaco

Autora: Susana Neves

Edição: Fundação Francisco Manuel dos Santos (Maio 2022)

ISBN: 978-989-9064-59-1 




sexta-feira, 12 de agosto de 2022

O Silêncio - mais do que uma virtude

[revista Fraternitas nº 14, Jul./Set. 2022, pp. 20-23]


Mestre Lima de Freitas - O Caminho da Serpente (1995)


«O que lhe dizia, caro Amigo, é que me parece que ao verdadeiro Amor corresponde o silêncio; a perfeita vibração diante de uma flor ou de um pôr-do-sol ou de uma libélula sobre as águas de um ribeiro ou, o que mais vale, diante de uma mulher, traz consigo uma inibição de todas as funções de relação; não se diz nada à rosa, não se diz nada à mulher e, com muito mais razão, não se diz nada aos amigos, não se lhes comunica, com esse entusiasmo, com que você faz, que se nadou no azul dos céus ou totalmente nos fundimos no grande corpo de Deméter. Os mais fracos correm diante das suas emoções uma porta ondulada de ironia. Os mais fortes, porém, e eu desejo que você seja dos mais fortes, encerram-se num palácio de silêncio

Agostinho da SILVA in Sete Cartas a um Jovem Filósofo


Pensava que o silêncio, uma pedra basilar ou angular da espiritualidade e do esoterismo, era uma virtude. O caminho incontornável para aquilo que, sendo inefável, indizível e quiçá inominável, não podia ser expresso por palavras. Assim pensei, até há poucos anos, quando um companheiro questionou essa minha perspectiva e me levou, portanto, a aprofundar o pensamento sobre essa matéria. De facto, o silêncio não será tão somente uma virtude, pelo menos um determinado tipo de silêncio, o Silêncio. Tal como o Caminho da Serpente, de Fernando Pessoa, vai para além de Deus, também o Silêncio, quando ultrapassa o bem e o mal, vai para lá da(s) virtude(s). Passo a explicar.

O desejo de qualquer sujeito ético é “tornar-se bom”, ou, pelo menos, aperfeiçoar-se. Deste modo, uma das vantagens reivindicadas pela ética das virtudes centra-se no facto de ser formulada, logo à partida, na perspectiva da experiência de um sujeito ético que tenta agir bem ou melhorar, e que, para tal, deve estar racionalmente motivado (SANTOS, 2012: 102). Para Aristóteles, a virtude era uma disposição interiorizada de acção, desejo e sentimento. Tratava-se, pois, de uma disposição intencional que implicava o exercício do juízo de um agente – necessariamente humano –, que envolvia uma razão prática (WILLIAMS, 2017: 55). No seu sentido literal, o termo aretê, que constitui o superlativo substantivado do adjectivo agathon (bom, bem), pode ser traduzido por “excelência”. O conceito de virtude (do grego “aretê”) remete, portanto, in traditio, para a busca de excelência e aplica-se exclusivamente aos humanos. Como exemplos temos as virtudes cardeais (justiça, temperança, prudência e fortaleza) e as virtudes teologais (fé, caridade e esperança). Mas o leque não se esgota, de todo, nestas sete virtudes cristãs.

É frequente ouvir-se que «a melhor virtude do Aprendiz é o silêncio». Não se deverá confundir, todavia, o calar-se ou a renúncia à palavra (que poderá assumir a situação extrema de voto de silêncio), tal como a capacidade de guardar segredo ou reserva (manter o véu do silêncio), com a “ausência de ruído”, o Silêncio. A prudência e a temperança no uso da palavra, que poderão revestir as feições de silêncio, denominar-se “silêncio”, traduzem inequivocamente força e carácter. Apartar-se da tagarelice, de palavreado inoportuno ou, mais grave, indecoroso, ultrapassa a mera ética ao adentra-se na estética: revela bom gosto e beleza. Conseguir renunciar à palavra e guardar segredo implicam intencionalidade, desejo e sentimento de agir bem e, portanto, estas tipologias de silêncio poderão ser categorizadas como virtude(s). Conter, mesurar e até interromper a fala dá lugar ao Silêncio. É este Silêncio, subjacente à palavra falada1 (e simultaneamente sobrejacente), primal e original, que «é a pedra basilar ou angular da espiritualidade e do esoterismo.» É este Silêncio que é o «caminho incontornável para aquilo», e será aquilo (?), «que, sendo inefável, indizível e quiçá inominável2, não pode ser expresso por palavras.» É este Silêncio que não é uma virtude, porque extravasa o humano; está fora de qualquer intencionalidade, está para além do bem e do mal.

Não ignoramos que as virtudes, numa espécie de pareidolia, podem ser atribuídas a animais, a órgãos do corpo ou mesmo a utensílios, para designar as boas qualidades que possam ter. No caso de artefactos, trata-se da qualidade da coisa que, no âmbito do seu uso pelo homem, melhor preenche a sua função habitual. Saliente-se, contudo, que, nestes cenários, continuamos na lógica das virtudes associadas, directa ou indirectamente, ao ser humano e por isso numa ética evidentemente antropocêntrica. O naturalismo, o romantismo e o transcendentalismo, que viriam a emergir na ética ambiental, na ecologia profunda (deep ecology) e na ecosofia, vieram superar essas abordagens homocêntricas ao atribuírem valor intrínseco aos seres não humanos – vivos e “inanimados” – e até aos ecossistemas, numa abrangência “holotrópica”3 que aparentemente remete para um regresso às vivências dos povos primevos mas que, na verdade, aponta a novos horizontes futuros: o Homem abrir-se ao Todo, num “antropologismo holístico”4. Um pleno retorno ao natural (e ao sobrenatural?), a partir da condição de anthropos, reconhecendo valor intrínseco a todos os seres mas sem lhes atribuir estatuto moral porque «no fundo da floresta vagueia um urso temível, feroz e ameaçador, mas isento de culpa.» (DOSTOIEVSKI, 1981: 238). Como referiu esse Grande Colosso que foi Agostinho da Silva: «estamos tão afastados do natural como do sobrenatural, quando estes deviam ser os pontos centrais da nossa existência: plenamente vivemos no artificial» (SILVA, 1990: 69). Como expressou Teixeira de Pascoes, e que reescrevo de memória, «para lá desta região média em que habitamos, um outro plano se esboça ignotamente pressentido. (…) O homem é mais do que ele próprio. E esse mais é o silêncio profundo da sua alma, que sabe tudo e não diz nada: um silêncio igual ao das montanhas.» Comecemos pelo abandono ostensivo do discurso para ocupar a morada do silêncio5. Silenciar-se para ouvir a voz do Silêncio6


Nicholas Roerich - Christ in the Desert (1933)


NOTAS

1. É evidente que a existência primordial da linguagem (“língua”) se dá na fala. A linguagem não é uma gramática (de gramma techne: “rabiscos entrançados”), é um sopro de ar (SNYDER, 2018: 95). Distinção já assinalada pelo linguístico suíço Ferdinand de Saussure (no séc. XIX), e que tanto intrigou Merleau-Ponty, entre la parole (o acto concreto da fala) e la langue (enquanto sistema de regras terminológicas, sintácticas e semânticas) (ABRAM, 2007: 85).

2. Aquilo que nas tradições teístas se chama “Deus”, da raiz indo-europeia “dei”, que designa “o que brilha”, a irrupção da luz nas trevas (BORGES, 2015: 24). A linguagem humana não pode definir Deus (ou sequer altas entidades espirituais), mas tem a capacidade de denominar, consciente ou inconscientemente, quando refere “Deus” ou utiliza expressões como “a-deus” ou “se Deus quiser” – o mesmo que oxalá (do árabe Inch’Allāh). Os 99 nomes de Deus (Allāh) mencionados no Alcorão designam os atributos do Ser Supremo. Os cabalistas apontam 72 nomes de Deus (BONEWITS, 1971: 78), com base nos versículos 19, 20 e 21 do Capítulo 14 do Êxodo:   Shemhamphorasch, o conjunto de nomes de 3 letras, do alfabeto hebraico, formados a partir do desdobramento do Tetragrammaton YHVH (יהוה).

3. Aqui “holotrópico” (termo cunhado pelo psicólogo transpessoal Stanislav Grof) é utilizado no sentido literal de uma progressão rumo ao Todo (holos). Já no século XIII, São Francisco de Assis tentou desviar o cristianismo dos pressupostos antropocêntricos dominantes, num posicionamento biocêntrico resultante de tendências, mais antigas, animistas: propôs «uma democracia de todas as criaturas de Deus» (DEVALL & SESSIONS, 2004: 65). Destacamos igualmente a visão religiosa de Spinoza (séc. XVII) – da unidade e divindade da Natureza – que influenciou um diversificado conjunto de pensadores “holísticos”. Algumas das principais figuras do movimento romântico europeu (Goethe, Coleridge, Wordsworth e Shelley), os transcendentalistas americanos (Emerson, Thoreau e Muir), entre outros: George Santayana, Bertrand Russel, Albert Einstein, Robinson Jeffers, John Wetlesen, Arne Naess, etc. (ibid.: 261).

4. “Antropologismo holístico” como forma de estar/pensar ancorada no Homem, enquanto ponto de partida, mas que se abre (descentralizando) ao todo. Pese embora estarmos conscientes da critica do antropologismo, mormente pela fenomenologia de Husserl: as estruturas transcendentais, descritas depois da redução fenomenológica, não são as do ente intramundano chamado “homem” e não estão ligadas à sociedade, à cultura, linguagem ou alma. Daí abrir-se espaço para a imaginação de uma consciência sem homem ou sem alma (DERRIDA in CARVALHO, 2008: 29).

5. O caminho iniciático prevê uma única reversão: a demanda pragmática do silêncio, a passagem para «o País do Silêncio» (BOYER, 2011b: 102). «A primeira função das sociedades iniciáticas consiste em acompanhar o demandador até à zona de Silêncio, onde se desenvolve o Ser e a Consciência não-dual» (ibid.: 114-115). O domínio pessoal é eminentemente especulativo e a operatividade só pode ser posta em prática «na Zona de Silêncio, no não-condicionado» (BOYER, 2017: 35). A obra literária de Rémi Boyer confere uma especial importância ao Silêncio,  posicionamento reiteradamente manifestado nas diversas comunicações a que tive o grato privilégio de assistir: (1) “Martinismo – História, Símbolos e Práticas da Via Martinista”, realizada no dia 2 de Maio de 2015, na Casa do Fauno (Sintra), juntamente com o palestrante José Manuel Anes; (2) “Despertar, Tradição e Iniciação”, no âmbito do relançamento do livro A Tradição Maçónica e o Despertar da Consciência, que decorreu, no dia 24 de Abril de 2017, na AMORC (Lisboa); (3) “A Iniciação Maçónica no Século XXI”, proferida, no dia 12 de Abril de 2018, no Museu Maçónico do GOL (Grande Oriente Lusitano).

6. Calar-se e, em altos níveis de atenção ou em atenção plena, colocar-se à escuta: para ouvir a paradoxal voz do silêncio. 


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ADENDA: O silêncio é um dos temas a que regressamos por diversas vezes no blogue Pedestris e ao qual regressaremos certamente em novas intervenções, tendo em conta de que se trata, antes de mais, de uma boa prática em actividades de ar livre, mas ultrapassa, em muito, essa faceta...

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Simplicidade Voluntária III

 



3. Simplicidade para o Desperdício Zero

 

«Simples nos meios, ricos nos fins.»

Arne Naess (Devall & Sessions, 2004, p. 25)

 

Os cidadãos dos países desenvolvidos (e até de países em vias de desenvolvimento) vivem numa sociedade de abundância e são atraídos para um consumo desenfreado através de diversas estratégias agressivas de marketing e de publicidade, com vista à aquisição de novos produtos e serviços, num contexto de “capitalismo selvagem”, onde o crédito é vendido a eito numa política de “compre agora e pague depois”.  Até os países sub-desenvolvidos são invadidos por quantidades inauditas de produtos “baratos”, designadamente bugigangas de plástico e vestuário. A abundância de mercadorias associada à propaganda intrusiva e à manipulação do marketing incentiva os consumidores a assumirem comportamentos insustentáveis (ZRALEK 2016). E o consumo insustentável é uma das causas importantes da contínua deterioração do meio ambiente, quer a nível local, quer global (KROPFELD, NEPOMUCENO e DANTAS 2018). É, pois, frequente que adeptos da SV questionem os efeitos que o consumo excessivo provoca na saúde, a nível pessoal e planetário (AIDAR e DANIELS 2020), designadamente no que concerne os efeitos nefastos do lixo que, bastantes vezes, assumem o cariz inquestionável de poluição.

A passagem de uma economia linear a uma economia circular pode mitigar o problema do lixo, mas não será certamente a resolução do mesmo, tendo em conta que em ambos os casos o que é verdadeiramente necessário é um decréscimo muito significativo na produção e no consumo (GHEORGHICĂ 2012; SEKULOVA et al., 2013). Decrescimento que poderá ser implementado por vivências de SV ou minimalistas, mas que deverão contar com o envolvimento activo dos produtores e da própria governança dos países e a nível internacional. Se o “círculo” receber uma crescente quantidade de novos produtos, para circulação, vai certamente chegar a um limite insustentável no qual esses “produtos” viram lixo! É prioritário pensar para além da economia circular (reutilizar, reciclar, eco-design) e imaginar estilos de vida marcados por uma maior sobriedade (GUILLARD 2021).

A título de exemplo, a poluição por resíduos plásticos constitui uma grande preocupação ambiental, tendo em conta que cerca de 80% de todos os plásticos produzidos acabam, de alguma forma, como detritos no meio ambiente (ZAMAN 2022): os microplásticos espalham-se no ar, na água e na terra, encontrando-se nas partes mais remotas do planeta e nas cadeias tróficas, enquanto gigantescas “ilhas” de plástico se acumulam nos oceanos! Esses plásticos continuarão a poluir o meio ambiente, durante centenas ou milhares de anos, constituindo um problema que, para além de acções de cidadania ambiental, a nível individual ou colectivo, exigem medidas efectivas por parte dos decisores políticos.

As profundas e fracturantes modificações que o consumismo está a provocar, segundo Sebastien Charles, assumem também facetas preocupantes e difíceis de gerir a nível social (LIPOVETSKY e CHARLES, 2004, p. 32-33):

 

«Le monde de la consommation parait chaque jour s’immiscer dans nos vies et modifier nos rapports aux objects et aux êtres que, pour autant, et ce malgré les critiques que l’on formule à son égard, on puisse proposer de contre-modèle crédible. Et, au-delá de la posture critique, rares seraient ceux qui souhaiteraient réellement l’abolir définitivement.  Force est de constater que son empire ne cesse de progresser: le principe du libre-service, le recherche d’émotions et de plaisirs, le calcul utilitariste, la superficialité des liens semblent avoir contaminé l’ensemble du corps social, la spiritualité elle-même n’y échappant pas.»

 

O sociólogo polaco Zygmunt Bauman (2017), que estuda a face mais perversa e doentia do capitalismo, também assinala diversas preocupações, designadamente a ideia de que somos o que consumimos, a pressão para consumir cada vez mais e os centros comerciais enquanto “catedrais” do consumo! O (hiper)consumismo das sociedades (pós)modernas, na expressão do filósofo Gilles Lipovetsky (2004), é considerado um estilo de vida e um estado de espírito.  A primeira reforma com vista a avançar para um efectivo desperdício zero8 devia centrar-se, portanto, numa profunda mudança de mentalidades e de atitudes. É fundamental reduzir substancialmente a quantidade de lixo: a produção de resíduos deve diminuir progressivamente, decrescer tendencialmente para a meta do desperdício zero. Nesse pressuposto, os “Rs” prioritários serão o reduzir e o renunciar e só depois se seguirão outros. As estratégias de gestão desperdício zero, com base na reutilização, na reparação e na reciclagem, são importantes com vista ao reaproveitamento do “lixo”, mas é fundamental agir a montante reduzindo substancialmente a produção, o consumo e consequentemente a geração de resíduos. É importante saber dizer não. Não ao consumo, num acto de renúncia consciente e conscienciosa. Neste contexto, torna-se importante examinar as relações entre a sobriedade e o desregramento dos consumidores e a sua posse de “bens” ou ausência de posse, de modo a identificar comportamentos e desenvolver estratégias de intervenção adequadas, com o objectivo de reduzir o desperdício.

Saliente-se, todavia, que algumas estratégias e comportamentos para reduzir a quantidade de lixo ultrapassam o plano meramente individual e exigem intervenções comunitárias (BEKIN, CARRIGAN e SZMIGIN 2007). Por outro lado, é também fundamental responsabilizar os produtores, numa lógica de “poluidor pagador”, na qual estes assumam as externalidades decorrentes da produção; tal como os políticos, que foram eleitos para resolver problemas e não para perpetuarem o status quo. É imperioso que se adoptem estratégias de decrescimento para diminuir a produção de resíduos, rumo ao desperdício zero, mas também para minimizar as alterações climáticas, mitigar a degradação ambiental e amenizar os conflitos sociais (MARÍN-BELTRÁN et al. 2021; HICKEL 2021). E, esse desiderato de decrescimento e de uma vida boa, deverá passar necessariamente pela SV.

 

Conclusões

O hiper-consumismo das sociedades pós-modernas assume a condição de estilo de vida e constitui um estado de espírito generalizado.  Uma diminuição significativa e gradual dos resíduos, com vista ao desperdício zero, deve basear-se numa mudança de atitudes, designadamente através do decrescimento e da adopção de estilos de vida (mais) simples. Essa mudança só será sustentável, todavia, se satisfizer um conjunto de necessidades que permitam o bem-estar eudaimónico dos intervenientes. O conceito de vida simples surge frequentemente associado a bem-estar e considera-se que este será fundamental como motivação para a aplicação e sustentabilidade do conceito, tal como para a sua expressão a nível social.

A passagem de uma economia linear a uma economia circular pode mitigar o problema do lixo, mas não constituirá certamente a resolução do mesmo. As estratégias de gestão desperdício zero, com base na reutilização, na reparação e na reciclagem, são importantes com vista ao reaproveitamento do “lixo”, mas é fundamental agir a montante. Só através de um decrescimento (muito) significativo na produção e no consumo é que será possível avançar para situações sustentáveis de gestão do lixo.

A inter-relação entre a SV, o decrescimento e o desperdício zero deverá passar inevitavelmente por vivências mais eco-lógicas, assentes na moderação e no equilíbrio, na sobriedade e na temperança, no minimalismo e na frugalidade, na renúncia e na abstinência. Os estilos de vida decorrentes destas renovadas atitudes devem basear-se, enfim, numa Ética da Terra, assente no bem-estar e no bem-fazer, que permita mais do que uma vida simples, uma vida de maravilhamento e de (Auto)realização.





Nota

8. O termo “desperdício zero”, cunhado em 1974 por Paul Palmer, trata-se do desiderato de progredir para uma gestão sustentável do lixo, que está ancorada no conceito de economia circular (HANNON e ZAMAN 2018). A Zero Waste International Alliance definiu, em 2018, desperdício zero como «the conservation of all resources, packaging, and materials without burning and with no discharges to land, water or air that threatens the environment or human health» (ZAMAN 2022, p. 3).

 

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quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Simplicidade Voluntária II


2. Necessidades: o essencial e o acessório

 

«(…) um homem é rico em proporção ao número de coisas de que pode prescindir.»

Henry David Thoreau (1999, p. 99)

 

Embora muitos aspectos da SV tenham sido investigados empiricamente – incluindo comportamentos de consumo e responsabilidade ambiental –, a investigação da relação entre esse conceito/movimento e o bem-estar está limitada a poucos estudos. No entanto, parece haver uma associação entre o envolvimento na SV e o aumento de bem-estar (RICH, HANNA, WRIGHT e BENNETT 2017), apesar de um número considerável de intervenientes não saber identificar os motivos que contribuem para o seu bem-estar (DIJK 2013). Saliente-se que também foi identificada uma relação entre a frugalidade e o bem-estar (MUIÑOS, SUÁREZ, HESS e HERNANDÉZ 2015). O bem-estar trata-se de um constructo complexo e muito abrangente, que integra diversas dimensões e que aglutina contributos de distintas áreas do conhecimento6 (GALINHA e RIBEIRO 2005). O bem-estar surge geralmente associado à satisfação com a vida (life satisfation), felicidade e afecto positivo (RICH, WRIGHT e BENNETT 2020).

A satisfação é frequentemente mencionada na literatura da SV, sob diversas formas, e nem sempre é a satisfação hedónica com a vida aquela a que os adeptos do movimento se referem. Palavras como "significado” e “autenticidade", "equilíbrio” e “envolvimento" aparecem com frequência. Nesta matéria, será oportuno trazer à colação o pensamento de Agostinho da Silva que, numa perspectiva eudaimónica, afirma que o objectivo de vida de cada ser humano não é ser feliz, mas sim cumprir-se.

Entretanto, numa espécie de paradoxo, constata-se o predomínio dos valores hedonistas nas sociedades ditas “pós-modernas” (LIPOVETSKY 1988). O bem-estar, nesse contexto, surge indissociável do prazer e do consumo. Com uma profusão luxuriante de produtos e de serviços, o hedonismo, com o seu clima eufórico de tentação e proximidade, assenta na sedução e consequente consumo e desperdício. Esse bem-estar é determinado, em grande parte, pela capacidade de satisfação de necessidades e aspirações materiais, dependendo por isso do rendimento de cada um. A maior ou menor capacidade financeira também tem influência no sentimento de segurança ou de insegurança pessoal.

A pobreza extrema (SACHS, 2017) é obviamente uma afronta ao bem-estar e à satisfação com a vida. Os muito pobres passam fome, não têm água potável, nem saneamento, e não possuem acesso a cuidados de saúde. No entanto, é interessante constatar que os índices de satisfação só crescem de modo significativo até ao ponto em que a carência e a pobreza dão lugar à satisfação das necessidades essenciais, de sobrevivência, e param de subir ou tendem mesmo a decrescer drasticamente com novos incrementos de riqueza acima desse ponto (BAUMAN 2017).

A SV deverá, portanto, consistir num esforço consciente para descobrir o que é verdadeiramente essencial e prescindir daquilo que se considere supérfluo. E, por outro lado, determinar qual o doseamento adequado das respectivas necessidades consideradas essenciais. Tarefa bastante difícil tendo em conta a multiplicidade de pontos de vista sobre o assunto. Quando se coloca a questão do que é preciso para um ser humano sobreviver, no topo da lista aparece frequentemente o abrigo, como necessidade básica a satisfazer (OSIKOMINU e BOCKEN 2020). David Ward e Marta Lasen (2009) salientaram três necessidades de sobrevivência: alimentos, água e abrigo. Thoreau identificou quatro «coisas necessárias» ou «indispensáveis à vida»: alimento, abrigo, roupa e combustível (1999, p. 26-27). Mark Boyle, na sua experiência de viver um ano sem dinheiro, identificou “seis coisas” para assegurar «o nível básico de subsistência»: (1) abrigo, (2) energia, (3) alimentação, (4) mobilidade, (5) comunicações e (6) tudo o resto (2012, p. 41). Torna-se evidente que as necessidades variam consoante as circunstâncias e os autores. Por outro lado, verifica-se que não existe concordância sobre quais as necessidades que são consideradas essenciais e quais as que serão acessórias. E menos concordância existe na determinação, para cada necessidade, do que se considera conforto e desconforto. Nessa matéria, para tentar determinar quais as necessidades vitais, será interessante recorrer à “Lei” da Tolerância de Shelford (1913), utilizada de modo profícuo no contexto da ecologia clássica. Esta estabelece que todos os organismos têm um mínimo e um máximo ecológicos, para factores como a alimentação e a temperatura, entre outros (ODUM 1988). Limites que, quando ultrapassados, levam à morte: a fome mata, tal como o excesso de alimentação. Por muito cruel que possa parecer, a morte por inanição é um fenómeno natural (WOHLLEBEN 2019); no entanto, no contexto humano a componente cultural toma primazia. Por exemplo, a discussão sobre os níveis mínimos e máximos de satisfação de necessidades e as suas implicações económico-financeiras, no âmbito do decrescimento, está na ordem do dia (BÜCHS e KOCH 2019).

A Plataforma da Ecologia Profunda, criada em 1984, por George Sessions e Arne Naess, faz referência, no seu ponto terceiro, à satisfação das necessidades vitais, mas propositadamente não define quais são essas necessidades. Apenas diz que os «seres humanos não têm o direito de reduzir [a riqueza e a diversidade das formas de vida], excepto para satisfazer necessidades vitais» (DEVALL e SESSIONS 2004, p. 90). Constatação pouco utilitária, ademais num contexto citadino pós-moderno7.

Uma forma interessante de operacionalizar necessidades e a sua satisfação é através da Pirâmide de Maslow (KOLTKO-RIVERA 2006; POSTON 2009; KENRICK et al. 2010; DESMET e FOKKINGA 2020). O bem-estar é, desde logo, determinado pela capacidade de satisfação das necessidades materiais (fisiológicas) da base da pirâmide: fome, sede, frio, calor, etc..  Depois, satisfeitas essas necessidades básicas, mas fundamentais porque são os alicerces do bem-estar, pode-se satisfazer as necessidades de segurança e por aí adiante. A Pirâmide de Maslow é muitas vezes utilizada em contextos pós-modernos de satisfação de objectivos meramente hedonistas, mas aqui abre-se a possibilidade da sua utilização numa perspectiva holística, cuja progressão até ao topo da pirâmide almeje a Auto-realização da ecologia profunda de Arne Naess (VAZ e DELFINO 2010), a Transcendência de Manuel Sérgio (SÉRGIO 2018) ou outra superação num contexto assumidamente eudaimónico. Mais do que elencar quais as necessidades essenciais ou vitais, nesta abordagem pretende-se satisfazer as necessidades que surjam, com o conforto possível, permitindo não a sobrevivência, mas a plena vivência de uma vida boa. Essencial é o minimalismo e, no tocante ao doseamento, é sempre possível recorrer ao saber dos antigos e optar pela sobriedade, a temperança e a frugalidade.




Notas

6. O estudo do bem-estar no domínio da investigação científica surgiu na década de 1960, pela necessidade de desenvolver indicadores sociais sobre qualidade de vida (MACHADO e BANDEIRA 2012). O trabalho de Ed Diener (1984) surge como um marco na tentativa de sistematização dos estudos nesta área do conhecimento, tendo cunhado o termo “bem-estar subjectivo” (BES). O BES comporta duas componentes basilares: o afecto e a cognição. A componente afectiva envolve aspectos emocionais (percepções instintivas) e a cognitiva refere-se a aspectos racionais e intelectuais (decorrentes do pensamento). A componente afectiva pode ainda ser diferenciada em afecto positivo e afecto negativo. É nesse contexto que Andrews e Withey (1976) estruturaram, como componentes do BES, a satisfação juntamente com a expressão do afecto positivo e do afecto negativo (GIACOMONI 2004).

O bem-estar psicológico (BEP) baseia-se na teoria psicológica sobre o funcionamento psicológico positivo ou óptimo, surgido, em 1989, a partir de um ensaio de Carol Ryff. A autora criticou a falta de consistente base teórica para justificar a escolha dos indicadores do BES: os estudos prévios utilizavam medidas de afectos positivos e negativos e da satisfação de vida, com o propósito de investigar a influência de mudanças sociais e do envelhecimento bem-sucedido, e não a essência do bem-estar psicológico (MACHADO e BANDEIRA 2012). Por outro lado, ainda segundo essa autora, a interpretação da felicidade como sendo a principal motivação da existência humana incide sobre a interpretação equivocada do pensamento dos antigos filósofos gregos, designadamente de Aristóteles (Ryff 1989, Ryff e Keys 1995 in MACHADO e BANDEIRA 2012). Este, na sua doutrina ética, propôs que o bem-viver resulta da eudaimonia, i.e., provém de uma intenção de desenvolvimento das potencialidades de cada ser humano. Consequentemente, a eudaimonia consiste num caminho de desenvolvimento pessoal, de auto-realização e de busca do sentido da vida. Por outro lado, formulações sobre a essência do bem-estar, em termos de experiências prazerosas, contentamento, satisfação e felicidade (isto é, de BES) correspondem à concepção hedónica (por exemplo, de Aristipo de Cirene) do bem-viver, da satisfação de desejos, da busca de prazer e do evitar da dor. A expressão eudaimonia foi equivocadamente traduzida por felicidade, ignorando diferenças fundamentais entre hedonismo e eudaimonia, tal como as suas implicações teóricas no estudo do bem-estar. Segundo Ryff, do ponto de vista meta-teórico, o BEP representa a tradição eudaimónica do estudo do bem-estar, resgatando o sentido original do bem-viver na doutrina Aristotélica (MACHADO e BANDEIRA 2012).

O conceito de bem-estar será certamente melhor compreendido quando envolve simultaneamente o funcionamento optimizado (eudaimonia) e a experiência prazerosa (hedonia), pois tanto as actividades eudaimónicas, quanto as hedónicas, estão intimamente relacionadas a satisfação, a autoestima ou a vitalidade, entre outros indicadores (SINGLETON 2019).

7. A generalidade dos cidadãos citadinos (e não só), no contexto pós-moderno actual, vivem de certo modo numa realidade distópica, alienados dos ecossistemas naturais e até semi-naturais. Desde logo, não têm de se confrontar com a morte de um animal e a sua preparação para o comer: nos (super e hiper)mercados a comida vem, em regra, preparada para não haver esse tipo de “confrontações”. Neste contexto, a tomada de decisões no tocante à satisfação de necessidades vitais torna-se algo de (muito) complexo, subjectivo e longe de consensos.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Simplicidade Voluntária I


Após um interregno de vários meses, eis que regressamos à “escrita” no Pedestris! O dia de hoje, 9 de A-gosto, é de certo modo auspicioso, tendo em conta que foi neste dia que, em 1854, surgiu a primeira edição de Walden or Life in the Woods: a obra prima de Henry David Thoreau (editada em Portugal, pela Antígona, sob o título de Walden ou a vida nos bosques). Thoreau, para além de um notável clássico do ambientalismo e paladino das caminhadas, é considerado, por diversos autores, como o fundador da simplicidade voluntária. É neste contexto que publicamos, hoje, parte de um texto, que escrevemos em Junho de 2022, sobre o assunto e que iremos publicar na sua totalidade nos próximos dias. É também neste contexto, assim o esperamos e desejamos, que iremos retomar paulatinamente as andanças e os encantamentos, neste blogue que tem estado parado mas que terá de se pôr, novamente, em marcha. 




Simplicidade Voluntária e Satisfação de Necessidades

Estratégias de Decrescimento e seu contributo para o Desperdício Zero

 

Resumo

A simplicidade voluntária (voluntary simplicity) trata-se de um estilo de vida no qual os indivíduos adoptam conscientemente práticas de redução do consumo, entre outras medidas tendentes a uma vida simples ou simplificada. Apesar do movimento evidenciar preocupações ambientais, regra geral o enfoque centra-se no consumo e não no desperdício. Considera-se pertinente estudar o contributo da simplicidade voluntária no que concerne o desperdício zero (zero waste). Nesse contexto, é dada também uma particular atenção ao decrescimento (degrowth), pela sua relação com a simplicidade voluntária, e ao seu contributo no âmbito do desperdício zero. Este ensaio explora as possíveis (inter)relações, entre os movimentos da simplicidade voluntária, decrescimento e desperdício zero, através de uma análise crítica dos pressupostos de que uma efectiva diminuição dos resíduos, com vista ao desperdício zero, deve basear-se numa mudança de atitudes, designadamente através da simplicidade voluntária e do decrescimento, e essa mudança só será sustentável se assegurar as necessidades e o bem-estar dos intervenientes.

 

Palavras-chave: simplicidade voluntária, decrescimento, desperdício zero, bem-estar

 

Introdução

O filósofo americano Richard Gregg introduziu, em 1936, o conceito de “simplicidade voluntária” (SV), correspondente a um estilo de vida baseado na redução do consumo (RICH, HANNA, WRIGH e BENNET 2017). A SV tornou-se um movimento de oposição ao consumismo e aos estilos de vida materialistas, envolvendo mudanças conscientes para vivências intrinsecamente satisfatórias (OSIKOMINU e BOCKEN 2020): suprir as necessidades materiais de forma o mais simples possível, direcionando mais tempo na busca de bem-estar e de significado. No entanto, o conceito é bastante mais complexo e envolve uma miríade de diferentes motivações. Stacey Ann Rich e colegas (2017) apontaram cinco características associadas à SV: (1) simplicidade material: consumir apenas o que é requerido para satisfazer necessidades; (2) dimensão humana: desejo de ambientes de vida e de trabalho mais “amigáveis”; (3) auto-determinação: a vontade de ter um maior controlo da sua vida; (4) consciência ecológica: o reconhecimento do limite dos recursos e do impacte das acções individuais; (5) crescimento pessoal: o desiderato de desenvolvimento interior, seja intelectual e/ou espiritual. Neste ensaio vamos dar uma especial atenção à satisfação de necessidades e ao desejo de desenvolvimento (realização) pessoal.

A SV surge frequentemente associada a outras denominações sinónimas, caso da “vida simples”, do “downshifting” e do “minimalismo”. Esta última palavra também é, por vezes, conceptualizada como uma segunda vaga da SV, resultante da reacção à crise financeira global de 2008, tal como às crescentes preocupações face ao excessivo aumento do consumo e dos resíduos pós-consumo1 (MARTIN-WOODHEAD 2021). Outros termos que surgem associados à SV são “frugalidade” (frugality), “decrescimento” (degrowth), “desperdício zero” (zero waste), “movimento lento” (slow movement), “mindful consumers”, “sharing swapping”, entre outros. A frugalidade merece uma nota especial pelo grande interesse que tem suscitado, sobretudo desde 2010, no âmbito do mavenismo de mercado associado à aversão ao consumismo, evidenciando claras semelhanças à SV (TIWARI e HERSTATT, 2020; SUÁREZ, HERNANDÉZ, GIL-GIMÉNEZ e CORRAL-VERDUGO 2020; JAIN e BHADURI 2021). Saliente-se, igualmente, que a SV não deve estar alheada dos conceitos/movimentos de decrescimento e de desperdício zero, tendo em conta que o crescimento económico e o hiper-consumismo, das sociedades contemporâneas pós-modernas, estão directamente relacionados com o gigantesco problema do incremento do lixo e da poluição (PARRIQUE 2019).

 


1. Diferentes formas de Vida Simples

 

«Simplicidade, simplicidade, simplicidade! (…) Simplificar, simplificar, simplificar.»

Henry David Thoreau (1999, p. 109)

 

A SV está geralmente associada aos países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, portanto com um estilo de vida Ocidental, onde as circunstâncias permitem que grande parte ou a maior parte da população possa ter acesso a uma vida de abundância material e que, por essa via, tenha a possibilidade de optar por estilos de vida mais simples.

Os “princípios” da SV são muito anteriores a 1936, data em que a designação foi introduzida por Gregg. A título de exemplo, um grupo de intelectuais "estadunidenses", conhecidos por “Transcendentalistas”, já exaltava, no século XIX, a calma simplicidade da vida radicada na natureza. Um deles, Henry David Thoreau, retirou-se, em 1845, para uma pequena cabana, de uma só divisão, situada junto do lago Walden, perto da povoação de Concord (Massachusetts) (HONORÉ 2006), tendo sido um notório paladino da simplicidade. Nesse contexto, será igualmente de assinalar que outros autores, ainda mais antigos, defenderam e praticaram a sobriedade, a temperança e a frugalidade, de que destacamos João Amós Coménio (séc. XVII) e Alvice Cornaro (séc. XVI). Coménio, na sua Didáctica Magna (1657), empreende uma escorreita apologia da frugalidade: «Com quanto mais moderação se ministrar os alimentos, tanto mais fácil e perfeita será a digestão. Como, em geral, não se toma isto em consideração, numerosos são aqueles que arruínam as forças e a vida por excesso de alimento.» E cita o Eclesiástico (37: 34): «muitos morreram por voracidade, mas o homem sóbrio prolongará a vida» (COMÉNIO 1985, p. 199). E acrescenta, «para manter a vida, não é necessário apenas tomar alimentos comedidos, mas também alimentos simples». Cornaro, por sua vez, descreveu, no seu Tratado da Vida Sóbria (1558), como descobriu, aos 40 anos de idade, devido a problemas de saúde, «a restrição e autodomínio alimentares». Descoberta que considera «um renascimento, uma maneira insuspeita de prevenir as doenças, de reforçar o corpo, de viver o fluir do tempo» (George Vigarello in CORNARO, 1999, p. 7). Para Cornaro (1999, p. 36):

 

«(…) o desregramento provém do vício da gula, e a vida sóbria da virtude da continência, nem por isso deixa de se tomar o desregramento por coisa virtuosa e honorável, e a vida sóbria por desonrosa e própria dos avarentos; e tudo provém  da força do hábito, introduzido pelos sentidos e pelo apetite, os quais tanto seduziram e inebriam os homens que estes, abandonando a vida boa, se entregaram a seguir a pior, a qual conduz, sem eles darem por isso, a estranhas e mortalíssimas enfermidades ao envelhecerem; (…)»

 

O problema do excesso de alimentação e do desperdício alimentar nos países desenvolvidos constitui um enorme flagelo, do nosso tempo, a par da fome que (des)graça nos sub-desenvolvidos (PIRES 2018). Como referem os investigadores Pedro Baptista, Inês Campos, Iva Pires e Sofia Vaz (2012, p. 11): «No mundo ocidental comemos muito, comemos mal, e desperdiçamos muita comida». Razão pela qual autores como Michael Pollan apelam à adopção de hábitos alimentares mais moderados e saudáveis: não comer em excesso e comer comida («nada que a sua avó não reconhecesse como comida») (2009, p. 175). Ou ter mais tempo para desfrutar de doses mais reduzidas: comer devagar (slow food) (HONORÉ 2006). Na verdade, nos países desenvolvidos, ditos “Ocidentais”, existem marcantes desigualdades sociais, pelo que a alimentação excessiva e o desperdício alimentar coexistem com a fome. As populações mais desfavorecidas – um eufemismo para “pobres” – não partilham as preocupações sobre o que comer e a que velocidade o deverão fazer, simplesmente precisam de comer algo e, por vezes, nada têm para comer. Talvez seja esta realidade que levou Duane Elgin a afirmar, no livro Voluntary Simplicity (1981), que a «pobreza é involuntária e debilitante, a simplicidade é voluntária e mobilizadora» (CANDIDO 2016, p. 19). Sem dúvida que a pobreza involuntária é dramática e ultrajante, todavia Elgin ignora que existe pobreza voluntária. Já Thoreau dizia que ninguém «pode ser observador imparcial e sábio da raça humana, a não ser da posição vantajosa a que chamaríamos pobreza voluntária.» (1999, p. 29). O elogio da pobreza (voluntária, entenda-se), no contexto judaico-cristão, remonta a Jesus e aos seus discípulos, tendo-se perpetuado, sob novas roupagens, a partir do final do século III, com o monaquismo2. Nessa linha de renúncia, de despojamento e até de ascetismo, destacam-se os monges beneditinos (séc. VI), os monges cistercienses (séc. XII) e os frades franciscanos (séc. XIII)3. São Bento (480-547), considerado o «pai dos monges do Ocidente», decidiu devotar-se, ainda jovem, à «douta ignorância» na solidão de uma gruta (Dominique Iogna-Prat in CORBIN et al., 2008, p. 127); mais tarde compôs a regra da Ordem Beneditina que, tal como outras da época, defendeu o regresso a diversos modos de renúncia. Bernardo de Claraval (1090-1153), cerca de meio século depois, reivindicou um regresso à pobreza dos tempos apostólicos e à pureza da regra de São Bento. O retorno a uma vida de grande sobriedade e renúncia: conduta pessoal ascética, pobreza e despojamento, patentes até na simplicidade do vestuário feito de lã não tingida (daí o nome de “monges brancos” em contraposição aos “monges negros” de Cluny) (ibid.).

Mas foi São Francisco de Assis (c. 1182-1226) que assumiu a vivência da pobreza evangélica de forma mais radical, tal como os seus irmãos, frades menores, paupérrimos – do latim pauperrimus (superlativo de pauper): muito pobres (André Vauchez in CORBIN et al. 2008). Francisco adoptou uma vida de estrita simplicidade, defendendo a rejeição incondicional de toda a posse, não só no tocante a cada membro da fraternidade (como nas ordens antigas), mas também à comunidade como um todo. Escusado será dizer que o movimento franciscano, apesar da tentativa de reforma dos Capuchinhos (séc. XVI), foi inteiramente “domesticado” pela Igreja Católica (KÜNG, 2002). No entanto, ainda hoje persiste na língua portuguesa a expressão “miséria franciscana”, que, apesar de ser utilizada geralmente de forma pejorativa, não deixa de ser um eco do profundo empenho e exemplo evangélico do cristianismo ancestral. As três orientações de São Francisco, que mais não são do que as da igreja primitiva – pobreza (paupertas), humildade (humilitas) e simplicidade (simplicitas) – permanecem ousados desafios para o presente e para o futuro...  «Francisco viveu a antítese do projecto imperial da Igreja»: perante o «evangelho do poder», apresentou o poder do evangelho; face à riqueza dos papas, bispos e abades, propôs a convicta pobreza, o despojamento integral e a extrema simplicidade (BOFF, 2014, p. 44).

A servidão voluntária dos freis franciscanos, que é um talant de bien-faire (vontade de bem-fazer), ao serviço de todos, numa profunda fraternidade cósmica, está nos antípodas da servidão voluntária, na verdade involuntária porque coerciva, de La Boetie (1986). O franciscanismo surge como exemplo de um outro modo de estar no mundo: o paradigma do cuidado (do cuidador) por oposição ao paradigma da dominação4 (BOFF, 2014) Por isso Francisco foi apelidado de louco e a sua proposta de vida designada “utopia franciscana”5. Foi um revolucionário (de revolare: voltar a voar) e um visionário, cujo pensamento, expresso no seu Cântico do Sol e das Criaturas (c. 1224), foi propulsor e antecedeu, em séculos, a ecosofia. Como expressou Agostinho da Silva (1999, p. 148), com assumidas influências do século XIII: «A única revolução definitiva é a de despojar-se cada um das propriedades que o limitam e acabarão por o destruir, propriedade de coisas, propriedade de gente, propriedade de si próprio».

Para Jaime Cortesão, o franciscanismo, «como expressão acabada de um cristianismo [panteísta] que o sistema católico havia destruído», trata-se da conciliação perfeita entre a religião e a natureza (SILVA, 2000, p. 18); talvez a inspiração, diremos nós, do primeiro Papa denominado “Francisco”, autor da Carta Encíclica Laudato si sobre o cuidado da casa comum (2015), onde propõe uma “ecologia humana” – chamada “ecologia integral” –, por recolocar o (ser) humano, sem receios de antropocentrismos, no “centro” estruturante do pensamento e do agir ecológicos.

 


Notas

1. A palavra “minimalismo” foi utilizada no âmbito da arte e da arquitetura modernistas, de meados do século XX, impulsionadas pelo funcionalismo e pela eficiência. O arquiteto modernista Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) popularizou a expressão «menos é mais» para descrever as suas preferências de design de estruturas simples e espaços abertos. O dizer «menos é mais» trata-se, hoje em dia, de uma premissa central do estilo de vida minimalista (MARTIN-WOODHEAD 2021).

2. É importante dar nota de que aqueles que desejavam seguir Jesus, na sua vida itinerante, deviam «abandonar tudo» (KÜNG 2002). O que Jesus propunha, como demanda, era a moderação das necessidades e a libertação interior resultante do despojamento. Não admira, portanto, que muitos dos seus discípulos tenham adoptado a pobreza voluntária e que as práticas ascéticas tenham durado vários séculos. (Pierre Maraval in CORBIN et al. 2008).

Em finais do século III surge uma nova forma de vivenciar o ascetismo que, pouco a pouco, irá suplantar as práticas ancestrais, tornando-se numa verdadeira instituição: o monaquismo. Na biografia que Atanásio, bispo de Alexandria, deixou sobre Santo Antão (251-356), este aparece como o modelo do monaquismo: uma vida de castidade, despojamento, penitência e solidão. A novidade do monaquismo consiste precisamente no isolamento: o monge é aquele que está só (do latim monos ou monachos: solitário).

Entretanto, uma nova etapa – a da vida comunitária – começa no século IV, com São Pacómio (c. 292-348) que, depois de alguns anos de vida solitária, cria uma comunidade, no Alto Nilo, sob uma regra que gere a existência diária dos “irmãos” (Pierre Maraval in CORBIN et al. 2008). O monaquismo, quer sob a forma solitária, quer sob a forma “comunitária”, espalha-se paulatinamente por todo o mundo cristão.

3. Os frades menores franciscanos são, por vezes, designados “monges mendicantes”, expressão incorrecta tendo em conta que os mendicantes não são monges, mas religiosos de um novo tipo: fratres (plural do latim frater/fratris: irmão). A originalidade das ordens mendicantes reside, desde logo, na abertura ao mundo, na vida comunitária e no contacto com as pessoas através de uma evangelização deambulatória e interventiva. Por outro lado, ao contrário das ordens mais antigas, assumem a pobreza colectiva, a mendicidade e o abandono à Providência: o monaquismo beneditino e mesmo o mais rigoroso cisterciense nunca exigiram a pobreza colectiva. Os franciscanos deveriam viver do trabalho das suas mãos e só em caso de necessidade, podiam recorrer à mendicidade, mas nunca aceitar dinheiro (André Vauchez in CORBIN et al., 2008).

4. O artigo seminal, de Lynn White, The Historical Roots of Our Ecological Crisis (1967), atribui a crise ecológica ao cristianismo, devido à sua suposta mensagem de dominação do homem sobre a natureza; ignorando aquilo que, ao que parece, estando à vista de todos, nos textos do Novo Testamento, permanece oculto a muitos: o elogio da pobreza, da humildade e da simplicidade, que não se coaduna com o acumular de riquezas, com a dominação e com ‘complicadas’ congeminações como seja, por exemplo, o paradigma (melhor seria dizer “o dogma") do crescimento exponencial. Por outro lado, o seu superficial louvor ao paganismo esquece, por exemplo, que foram civilizações pagãs que tornaram o Crescente Fértil num deserto. O que verdadeiramente está em causa são dois paradigmas antagónicos de estar e de fazer no mundo; paradigmas que coexistem, pelo menos, desde as primeiras sociedades sedentárias, baseadas na agricultura e na pastorícia: um dominador e destruidor, outro servidor e cuidador.

5. Francisco procurou criar um modelo alternativo de sociedade, subtraído ao mundo da compra e da venda, e recusando as hierarquias ligadas à riqueza e ao prestígio social ou cultural (André Vauchez in CORBIN et al., 2008). Na fraternidade por si fundada, os clérigos e os leigos estavam em pé de igualdade e, pelo menos nos primeiros tempos, os homens e as mulheres tinham vidas separadas, mas complementares. Aos olhos de Francisco de Assis, a prática da pobreza constituía a essência da vida evangélica. Nesse contexto, a posse de dinheiro estava proibida, designadamente por se considerar que falseava as relações entre os homens.

O pensamento de Francisco continua actual bastando constatar, a título de exemplo, o que expressou Mark Boyle, na sequência da sua experiência de viver um ano sem dinheiro: «O dinheiro já não nos serve. Nós servimos o dinheiro. O dinheiro apoderou-se do mundo. Enquanto sociedade, idolatramos e veneramos um produto que não tem valor intrínseco, às custas de tudo o resto. Além disso, toda a nossa noção de dinheiro está assente num sistema que promove a desigualdade, a destruição ambiental e o desrespeito pela humanidade.» (2012, p. 15)