[revista Fraternitas nº 14, Jul./Set. 2022, pp. 20-23]
Mestre Lima de Freitas - O Caminho da Serpente (1995) |
«O que lhe dizia, caro Amigo, é que
me parece que ao verdadeiro Amor corresponde o silêncio; a perfeita vibração
diante de uma flor ou de um pôr-do-sol ou de uma libélula sobre as águas de um
ribeiro ou, o que mais vale, diante de uma mulher, traz consigo uma inibição de
todas as funções de relação; não se diz nada à rosa, não se diz nada à mulher
e, com muito mais razão, não se diz nada aos amigos, não se lhes comunica, com
esse entusiasmo, com que você faz, que se nadou no azul dos céus ou totalmente
nos fundimos no grande corpo de Deméter. Os mais fracos correm diante das suas
emoções uma porta ondulada de ironia. Os mais fortes, porém, e eu desejo
que você seja dos mais fortes, encerram-se num palácio de silêncio.»
Agostinho da SILVA in Sete Cartas a um Jovem Filósofo
Pensava
que o silêncio, uma pedra basilar ou angular da espiritualidade e do esoterismo,
era uma virtude. O caminho incontornável para aquilo que, sendo inefável, indizível
e quiçá inominável, não podia ser expresso por palavras. Assim pensei, até há
poucos anos, quando um companheiro questionou essa minha perspectiva e me
levou, portanto, a aprofundar o pensamento sobre essa matéria. De facto, o
silêncio não será tão somente uma virtude, pelo menos um determinado tipo de
silêncio, o Silêncio. Tal como o Caminho da Serpente, de Fernando Pessoa,
vai para além de Deus, também o Silêncio, quando ultrapassa o bem e o mal, vai
para lá da(s) virtude(s). Passo a explicar.
O desejo de qualquer sujeito ético é “tornar-se bom”,
ou, pelo menos, aperfeiçoar-se. Deste modo, uma das vantagens reivindicadas
pela ética das virtudes centra-se no facto de ser formulada, logo à partida, na
perspectiva da experiência de um sujeito ético que tenta agir bem ou
melhorar, e que, para tal, deve estar racionalmente motivado (SANTOS, 2012: 102). Para Aristóteles, a virtude
era uma disposição interiorizada de acção, desejo e sentimento. Tratava-se, pois,
de uma disposição intencional que implicava o exercício do juízo de um agente –
necessariamente humano –, que envolvia uma razão prática (WILLIAMS, 2017: 55). No seu sentido literal, o termo aretê,
que constitui o superlativo substantivado do adjectivo agathon (bom,
bem), pode ser traduzido por “excelência”. O conceito de virtude
(do grego “aretê”) remete, portanto, in traditio, para a busca de
excelência e aplica-se exclusivamente aos humanos. Como exemplos temos as
virtudes cardeais (justiça, temperança, prudência e fortaleza) e as virtudes
teologais (fé, caridade e esperança). Mas o leque não se esgota, de todo, nestas
sete virtudes cristãs.
É frequente ouvir-se que «a melhor virtude do Aprendiz é o silêncio».
Não se deverá confundir, todavia, o calar-se ou a renúncia à palavra (que
poderá assumir a situação extrema de voto de silêncio), tal como a capacidade
de guardar segredo ou reserva (manter o véu do silêncio), com a “ausência de
ruído”, o Silêncio. A prudência e a temperança no uso da palavra,
que poderão revestir as feições de silêncio, denominar-se “silêncio”, traduzem
inequivocamente força e carácter. Apartar-se da tagarelice, de
palavreado inoportuno ou, mais grave, indecoroso, ultrapassa a mera ética ao
adentra-se na estética: revela bom gosto e beleza. Conseguir renunciar à
palavra e guardar segredo implicam intencionalidade, desejo e sentimento de
agir bem e, portanto, estas tipologias de silêncio poderão ser
categorizadas como virtude(s). Conter, mesurar e até interromper a fala dá
lugar ao Silêncio. É este Silêncio, subjacente à palavra falada1 (e
simultaneamente sobrejacente), primal e original, que «é a pedra
basilar ou angular da espiritualidade e do esoterismo.» É este Silêncio que
é o «caminho incontornável para aquilo», e será aquilo (?), «que,
sendo inefável, indizível e quiçá inominável2, não pode ser
expresso por palavras.» É este Silêncio que não é uma virtude, porque extravasa
o humano; está fora de qualquer intencionalidade, está para além do bem e do
mal.
Não ignoramos que as virtudes, numa espécie de pareidolia, podem ser
atribuídas
a animais, a órgãos do corpo ou mesmo a utensílios, para designar as boas
qualidades que possam ter. No caso de artefactos, trata-se da qualidade da coisa
que, no âmbito do seu uso pelo homem, melhor preenche a sua função
habitual. Saliente-se, contudo, que, nestes cenários, continuamos na lógica das
virtudes associadas, directa ou indirectamente, ao ser humano e por isso numa
ética evidentemente antropocêntrica. O naturalismo, o romantismo e o
transcendentalismo, que viriam a emergir na ética ambiental, na ecologia
profunda (deep ecology) e na ecosofia, vieram superar essas abordagens homocêntricas
ao atribuírem valor intrínseco aos seres não humanos – vivos e “inanimados” – e
até aos ecossistemas, numa abrangência “holotrópica”3 que aparentemente
remete para um regresso às vivências dos povos primevos mas que, na verdade,
aponta a novos horizontes futuros: o Homem abrir-se ao Todo, num “antropologismo
holístico”4. Um pleno retorno ao natural (e ao sobrenatural?), a
partir da condição de anthropos, reconhecendo valor intrínseco a todos
os seres mas sem lhes atribuir estatuto moral porque «no fundo da
floresta vagueia um urso temível, feroz e ameaçador, mas isento de culpa.» (DOSTOIEVSKI, 1981: 238). Como referiu esse Grande Colosso que
foi Agostinho da Silva: «estamos tão afastados do natural como do
sobrenatural, quando estes deviam ser os pontos centrais da nossa existência:
plenamente vivemos no artificial» (SILVA, 1990:
69). Como expressou Teixeira de Pascoes, e que reescrevo de
memória, «para lá desta região média em que habitamos, um outro plano se esboça
ignotamente pressentido. (…) O homem é mais do que ele próprio. E esse mais é o
silêncio profundo da sua alma, que sabe tudo e não diz nada: um silêncio igual
ao das montanhas.» Comecemos pelo abandono ostensivo do discurso para ocupar a
morada do silêncio5. Silenciar-se para ouvir a voz do Silêncio6.
Nicholas Roerich - Christ in the Desert (1933) |
NOTAS
1. É evidente que a existência
primordial da linguagem (“língua”) se dá na fala. A linguagem não é uma gramática
(de gramma techne: “rabiscos entrançados”), é um sopro de ar (SNYDER, 2018: 95). Distinção já assinalada pelo
linguístico suíço Ferdinand de Saussure (no séc. XIX), e que tanto intrigou Merleau-Ponty,
entre la parole (o acto concreto da fala) e la langue (enquanto
sistema de regras terminológicas, sintácticas e semânticas) (ABRAM, 2007: 85).
2. Aquilo que nas tradições teístas se
chama “Deus”, da raiz indo-europeia “dei”, que designa “o que brilha”, a
irrupção da luz nas trevas (BORGES, 2015: 24).
A linguagem humana não pode definir Deus (ou sequer altas entidades
espirituais), mas tem a capacidade de denominar, consciente ou
inconscientemente, quando refere “Deus” ou utiliza expressões como “a-deus” ou
“se Deus quiser” – o mesmo que oxalá (do árabe Inch’Allāh).
Os 99 nomes de Deus (Allāh) mencionados no Alcorão designam os atributos
do Ser Supremo. Os cabalistas apontam 72 nomes de Deus (BONEWITS,
1971: 78), com base nos versículos 19, 20 e 21 do Capítulo 14 do
Êxodo: Shemhamphorasch, o
conjunto de nomes de 3 letras, do alfabeto hebraico, formados a partir do
desdobramento do Tetragrammaton YHVH (יהוה).
3. Aqui “holotrópico” (termo cunhado
pelo psicólogo transpessoal Stanislav Grof) é utilizado no sentido literal de
uma progressão rumo ao Todo (holos). Já no século XIII, São Francisco de
Assis tentou desviar o cristianismo dos pressupostos antropocêntricos dominantes,
num posicionamento biocêntrico resultante de tendências, mais antigas, animistas:
propôs «uma democracia de todas as criaturas de Deus» (DEVALL & SESSIONS, 2004: 65). Destacamos igualmente a visão religiosa de
Spinoza (séc. XVII) – da unidade e divindade da Natureza – que influenciou um
diversificado conjunto de pensadores “holísticos”. Algumas das principais
figuras do movimento romântico europeu (Goethe, Coleridge, Wordsworth e
Shelley), os transcendentalistas americanos (Emerson, Thoreau e Muir), entre
outros: George Santayana, Bertrand Russel, Albert Einstein, Robinson Jeffers,
John Wetlesen, Arne Naess, etc. (ibid.:
261).
4. “Antropologismo holístico” como forma
de estar/pensar ancorada no Homem, enquanto ponto de partida, mas que se abre
(descentralizando) ao todo. Pese embora estarmos conscientes da critica do
antropologismo, mormente pela fenomenologia de Husserl: as estruturas
transcendentais, descritas depois da redução fenomenológica, não são as do ente
intramundano chamado “homem” e não estão ligadas à sociedade, à cultura,
linguagem ou alma. Daí abrir-se espaço para a imaginação de uma consciência sem
homem ou sem alma (DERRIDA in CARVALHO,
2008: 29).
5. O caminho iniciático prevê uma única
reversão: a demanda pragmática do silêncio, a passagem para «o País do
Silêncio» (BOYER, 2011b: 102). «A
primeira função das sociedades iniciáticas consiste em acompanhar o demandador
até à zona de Silêncio, onde se desenvolve o Ser e a Consciência não-dual» (ibid.: 114-115). O domínio pessoal é
eminentemente especulativo e a operatividade só pode ser posta em prática «na
Zona de Silêncio, no não-condicionado» (BOYER,
2017: 35). A obra literária de Rémi Boyer confere uma especial importância
ao Silêncio, posicionamento reiteradamente
manifestado nas diversas comunicações a que tive o grato privilégio de
assistir: (1) “Martinismo – História, Símbolos e Práticas da Via Martinista”,
realizada no dia 2 de Maio de 2015, na Casa do Fauno (Sintra), juntamente com o
palestrante José Manuel Anes; (2) “Despertar, Tradição e Iniciação”, no âmbito
do relançamento do livro A Tradição Maçónica e o Despertar da Consciência,
que decorreu, no dia 24 de Abril de 2017, na AMORC (Lisboa); (3) “A Iniciação
Maçónica no Século XXI”, proferida, no dia 12 de Abril de 2018, no Museu
Maçónico do GOL (Grande Oriente Lusitano).
6. Calar-se e, em altos níveis de
atenção ou em atenção plena, colocar-se à escuta: para ouvir a paradoxal
voz do silêncio.
ABRAM, David (2007). A Magia do Sensível – Percepção e
Linguagem num mundo mais do que humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
pp. 340. ISBN 978-972-31-1184-2
BONEWITS,
Philip Emmons Isaac (1971). Real Magic – An introdutory treatise on the
basic principles of yellow magic. New York: Coward,
MacCann & Geoghegan, pp. 236.
BORGES, Paulo (2015). O Coração da Vida – visão,
meditação, transformação integral.
Paço de Arcos: Edições Mahatma, pp. 198. ISBN 978-989-8522-60-3
BOYER, Rémi (2011). O Discurso de Sintra.
Sintra: Zéfiro e Arcano Zero, pp. 170. ISBN 978-989-677-076-1
BOYER, Rémi (2017). A Tradição Maçónica e o Despertar
da Consciência. Sintra: Zéfiro, pp. 168. ISBN 978-989-677-148-5
CARVALHO (2008), Júlia Diniz. Fenomenologia e
antropologismo: a morte do homem entre Foucault e Derrida. Em
Construção – Arquivos de Epistemologia Histórica e Estudos de Ciência, nº 3, p.
21-34. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/ojs/index.php/emconstrucao/article/viewFile/34352/24267
DEVALL, Bill & SESSIONS, George (2004). Ecologia
Profunda – Dar prioridade à natureza na nossa vida. Águas Santas, pp.
290. ISBN 972-8870-01-9
DOSTOIEVSKI, Fiódor (1981). Os Irmãos Karamazov.
Lisboa: Círculo de Leitores, pp. 602.
SANTOS, José Manuel (2012). Introdução à Ética.
São João de Ver: Sistema Solar, pp. 304. ISBN 978-989-8618-12-2
SILVA, Agostinho da (2019). Sete Cartas a um Jovem
Filósofo. Lisboa: Ulmeiro, pp. 120. ISBN 978-972-706-217-1
SNYDER, Gary. A Prática da Natureza Selvagem. Lisboa: Antígona, 2018, pp. 256. ISBN
978-972-608-326-9
WILLIAMS, Bernard (2017). A Ética e os Limites da
Filosofia. São João de Ver: Sistema Solar, pp. 264. ISBN
978-989-8834-47-8
ADENDA: O silêncio é um dos temas a que regressamos por diversas vezes no blogue Pedestris e ao qual regressaremos certamente em novas intervenções, tendo em conta de que se trata, antes de mais, de uma boa prática em actividades de ar livre, mas ultrapassa, em muito, essa faceta...
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