terça-feira, 9 de agosto de 2022

Simplicidade Voluntária I


Após um interregno de vários meses, eis que regressamos à “escrita” no Pedestris! O dia de hoje, 9 de A-gosto, é de certo modo auspicioso, tendo em conta que foi neste dia que, em 1854, surgiu a primeira edição de Walden or Life in the Woods: a obra prima de Henry David Thoreau (editada em Portugal, pela Antígona, sob o título de Walden ou a vida nos bosques). Thoreau, para além de um notável clássico do ambientalismo e paladino das caminhadas, é considerado, por diversos autores, como o fundador da simplicidade voluntária. É neste contexto que publicamos, hoje, parte de um texto, que escrevemos em Junho de 2022, sobre o assunto e que iremos publicar na sua totalidade nos próximos dias. É também neste contexto, assim o esperamos e desejamos, que iremos retomar paulatinamente as andanças e os encantamentos, neste blogue que tem estado parado mas que terá de se pôr, novamente, em marcha. 




Simplicidade Voluntária e Satisfação de Necessidades

Estratégias de Decrescimento e seu contributo para o Desperdício Zero

 

Resumo

A simplicidade voluntária (voluntary simplicity) trata-se de um estilo de vida no qual os indivíduos adoptam conscientemente práticas de redução do consumo, entre outras medidas tendentes a uma vida simples ou simplificada. Apesar do movimento evidenciar preocupações ambientais, regra geral o enfoque centra-se no consumo e não no desperdício. Considera-se pertinente estudar o contributo da simplicidade voluntária no que concerne o desperdício zero (zero waste). Nesse contexto, é dada também uma particular atenção ao decrescimento (degrowth), pela sua relação com a simplicidade voluntária, e ao seu contributo no âmbito do desperdício zero. Este ensaio explora as possíveis (inter)relações, entre os movimentos da simplicidade voluntária, decrescimento e desperdício zero, através de uma análise crítica dos pressupostos de que uma efectiva diminuição dos resíduos, com vista ao desperdício zero, deve basear-se numa mudança de atitudes, designadamente através da simplicidade voluntária e do decrescimento, e essa mudança só será sustentável se assegurar as necessidades e o bem-estar dos intervenientes.

 

Palavras-chave: simplicidade voluntária, decrescimento, desperdício zero, bem-estar

 

Introdução

O filósofo americano Richard Gregg introduziu, em 1936, o conceito de “simplicidade voluntária” (SV), correspondente a um estilo de vida baseado na redução do consumo (RICH, HANNA, WRIGH e BENNET 2017). A SV tornou-se um movimento de oposição ao consumismo e aos estilos de vida materialistas, envolvendo mudanças conscientes para vivências intrinsecamente satisfatórias (OSIKOMINU e BOCKEN 2020): suprir as necessidades materiais de forma o mais simples possível, direcionando mais tempo na busca de bem-estar e de significado. No entanto, o conceito é bastante mais complexo e envolve uma miríade de diferentes motivações. Stacey Ann Rich e colegas (2017) apontaram cinco características associadas à SV: (1) simplicidade material: consumir apenas o que é requerido para satisfazer necessidades; (2) dimensão humana: desejo de ambientes de vida e de trabalho mais “amigáveis”; (3) auto-determinação: a vontade de ter um maior controlo da sua vida; (4) consciência ecológica: o reconhecimento do limite dos recursos e do impacte das acções individuais; (5) crescimento pessoal: o desiderato de desenvolvimento interior, seja intelectual e/ou espiritual. Neste ensaio vamos dar uma especial atenção à satisfação de necessidades e ao desejo de desenvolvimento (realização) pessoal.

A SV surge frequentemente associada a outras denominações sinónimas, caso da “vida simples”, do “downshifting” e do “minimalismo”. Esta última palavra também é, por vezes, conceptualizada como uma segunda vaga da SV, resultante da reacção à crise financeira global de 2008, tal como às crescentes preocupações face ao excessivo aumento do consumo e dos resíduos pós-consumo1 (MARTIN-WOODHEAD 2021). Outros termos que surgem associados à SV são “frugalidade” (frugality), “decrescimento” (degrowth), “desperdício zero” (zero waste), “movimento lento” (slow movement), “mindful consumers”, “sharing swapping”, entre outros. A frugalidade merece uma nota especial pelo grande interesse que tem suscitado, sobretudo desde 2010, no âmbito do mavenismo de mercado associado à aversão ao consumismo, evidenciando claras semelhanças à SV (TIWARI e HERSTATT, 2020; SUÁREZ, HERNANDÉZ, GIL-GIMÉNEZ e CORRAL-VERDUGO 2020; JAIN e BHADURI 2021). Saliente-se, igualmente, que a SV não deve estar alheada dos conceitos/movimentos de decrescimento e de desperdício zero, tendo em conta que o crescimento económico e o hiper-consumismo, das sociedades contemporâneas pós-modernas, estão directamente relacionados com o gigantesco problema do incremento do lixo e da poluição (PARRIQUE 2019).

 


1. Diferentes formas de Vida Simples

 

«Simplicidade, simplicidade, simplicidade! (…) Simplificar, simplificar, simplificar.»

Henry David Thoreau (1999, p. 109)

 

A SV está geralmente associada aos países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, portanto com um estilo de vida Ocidental, onde as circunstâncias permitem que grande parte ou a maior parte da população possa ter acesso a uma vida de abundância material e que, por essa via, tenha a possibilidade de optar por estilos de vida mais simples.

Os “princípios” da SV são muito anteriores a 1936, data em que a designação foi introduzida por Gregg. A título de exemplo, um grupo de intelectuais "estadunidenses", conhecidos por “Transcendentalistas”, já exaltava, no século XIX, a calma simplicidade da vida radicada na natureza. Um deles, Henry David Thoreau, retirou-se, em 1845, para uma pequena cabana, de uma só divisão, situada junto do lago Walden, perto da povoação de Concord (Massachusetts) (HONORÉ 2006), tendo sido um notório paladino da simplicidade. Nesse contexto, será igualmente de assinalar que outros autores, ainda mais antigos, defenderam e praticaram a sobriedade, a temperança e a frugalidade, de que destacamos João Amós Coménio (séc. XVII) e Alvice Cornaro (séc. XVI). Coménio, na sua Didáctica Magna (1657), empreende uma escorreita apologia da frugalidade: «Com quanto mais moderação se ministrar os alimentos, tanto mais fácil e perfeita será a digestão. Como, em geral, não se toma isto em consideração, numerosos são aqueles que arruínam as forças e a vida por excesso de alimento.» E cita o Eclesiástico (37: 34): «muitos morreram por voracidade, mas o homem sóbrio prolongará a vida» (COMÉNIO 1985, p. 199). E acrescenta, «para manter a vida, não é necessário apenas tomar alimentos comedidos, mas também alimentos simples». Cornaro, por sua vez, descreveu, no seu Tratado da Vida Sóbria (1558), como descobriu, aos 40 anos de idade, devido a problemas de saúde, «a restrição e autodomínio alimentares». Descoberta que considera «um renascimento, uma maneira insuspeita de prevenir as doenças, de reforçar o corpo, de viver o fluir do tempo» (George Vigarello in CORNARO, 1999, p. 7). Para Cornaro (1999, p. 36):

 

«(…) o desregramento provém do vício da gula, e a vida sóbria da virtude da continência, nem por isso deixa de se tomar o desregramento por coisa virtuosa e honorável, e a vida sóbria por desonrosa e própria dos avarentos; e tudo provém  da força do hábito, introduzido pelos sentidos e pelo apetite, os quais tanto seduziram e inebriam os homens que estes, abandonando a vida boa, se entregaram a seguir a pior, a qual conduz, sem eles darem por isso, a estranhas e mortalíssimas enfermidades ao envelhecerem; (…)»

 

O problema do excesso de alimentação e do desperdício alimentar nos países desenvolvidos constitui um enorme flagelo, do nosso tempo, a par da fome que (des)graça nos sub-desenvolvidos (PIRES 2018). Como referem os investigadores Pedro Baptista, Inês Campos, Iva Pires e Sofia Vaz (2012, p. 11): «No mundo ocidental comemos muito, comemos mal, e desperdiçamos muita comida». Razão pela qual autores como Michael Pollan apelam à adopção de hábitos alimentares mais moderados e saudáveis: não comer em excesso e comer comida («nada que a sua avó não reconhecesse como comida») (2009, p. 175). Ou ter mais tempo para desfrutar de doses mais reduzidas: comer devagar (slow food) (HONORÉ 2006). Na verdade, nos países desenvolvidos, ditos “Ocidentais”, existem marcantes desigualdades sociais, pelo que a alimentação excessiva e o desperdício alimentar coexistem com a fome. As populações mais desfavorecidas – um eufemismo para “pobres” – não partilham as preocupações sobre o que comer e a que velocidade o deverão fazer, simplesmente precisam de comer algo e, por vezes, nada têm para comer. Talvez seja esta realidade que levou Duane Elgin a afirmar, no livro Voluntary Simplicity (1981), que a «pobreza é involuntária e debilitante, a simplicidade é voluntária e mobilizadora» (CANDIDO 2016, p. 19). Sem dúvida que a pobreza involuntária é dramática e ultrajante, todavia Elgin ignora que existe pobreza voluntária. Já Thoreau dizia que ninguém «pode ser observador imparcial e sábio da raça humana, a não ser da posição vantajosa a que chamaríamos pobreza voluntária.» (1999, p. 29). O elogio da pobreza (voluntária, entenda-se), no contexto judaico-cristão, remonta a Jesus e aos seus discípulos, tendo-se perpetuado, sob novas roupagens, a partir do final do século III, com o monaquismo2. Nessa linha de renúncia, de despojamento e até de ascetismo, destacam-se os monges beneditinos (séc. VI), os monges cistercienses (séc. XII) e os frades franciscanos (séc. XIII)3. São Bento (480-547), considerado o «pai dos monges do Ocidente», decidiu devotar-se, ainda jovem, à «douta ignorância» na solidão de uma gruta (Dominique Iogna-Prat in CORBIN et al., 2008, p. 127); mais tarde compôs a regra da Ordem Beneditina que, tal como outras da época, defendeu o regresso a diversos modos de renúncia. Bernardo de Claraval (1090-1153), cerca de meio século depois, reivindicou um regresso à pobreza dos tempos apostólicos e à pureza da regra de São Bento. O retorno a uma vida de grande sobriedade e renúncia: conduta pessoal ascética, pobreza e despojamento, patentes até na simplicidade do vestuário feito de lã não tingida (daí o nome de “monges brancos” em contraposição aos “monges negros” de Cluny) (ibid.).

Mas foi São Francisco de Assis (c. 1182-1226) que assumiu a vivência da pobreza evangélica de forma mais radical, tal como os seus irmãos, frades menores, paupérrimos – do latim pauperrimus (superlativo de pauper): muito pobres (André Vauchez in CORBIN et al. 2008). Francisco adoptou uma vida de estrita simplicidade, defendendo a rejeição incondicional de toda a posse, não só no tocante a cada membro da fraternidade (como nas ordens antigas), mas também à comunidade como um todo. Escusado será dizer que o movimento franciscano, apesar da tentativa de reforma dos Capuchinhos (séc. XVI), foi inteiramente “domesticado” pela Igreja Católica (KÜNG, 2002). No entanto, ainda hoje persiste na língua portuguesa a expressão “miséria franciscana”, que, apesar de ser utilizada geralmente de forma pejorativa, não deixa de ser um eco do profundo empenho e exemplo evangélico do cristianismo ancestral. As três orientações de São Francisco, que mais não são do que as da igreja primitiva – pobreza (paupertas), humildade (humilitas) e simplicidade (simplicitas) – permanecem ousados desafios para o presente e para o futuro...  «Francisco viveu a antítese do projecto imperial da Igreja»: perante o «evangelho do poder», apresentou o poder do evangelho; face à riqueza dos papas, bispos e abades, propôs a convicta pobreza, o despojamento integral e a extrema simplicidade (BOFF, 2014, p. 44).

A servidão voluntária dos freis franciscanos, que é um talant de bien-faire (vontade de bem-fazer), ao serviço de todos, numa profunda fraternidade cósmica, está nos antípodas da servidão voluntária, na verdade involuntária porque coerciva, de La Boetie (1986). O franciscanismo surge como exemplo de um outro modo de estar no mundo: o paradigma do cuidado (do cuidador) por oposição ao paradigma da dominação4 (BOFF, 2014) Por isso Francisco foi apelidado de louco e a sua proposta de vida designada “utopia franciscana”5. Foi um revolucionário (de revolare: voltar a voar) e um visionário, cujo pensamento, expresso no seu Cântico do Sol e das Criaturas (c. 1224), foi propulsor e antecedeu, em séculos, a ecosofia. Como expressou Agostinho da Silva (1999, p. 148), com assumidas influências do século XIII: «A única revolução definitiva é a de despojar-se cada um das propriedades que o limitam e acabarão por o destruir, propriedade de coisas, propriedade de gente, propriedade de si próprio».

Para Jaime Cortesão, o franciscanismo, «como expressão acabada de um cristianismo [panteísta] que o sistema católico havia destruído», trata-se da conciliação perfeita entre a religião e a natureza (SILVA, 2000, p. 18); talvez a inspiração, diremos nós, do primeiro Papa denominado “Francisco”, autor da Carta Encíclica Laudato si sobre o cuidado da casa comum (2015), onde propõe uma “ecologia humana” – chamada “ecologia integral” –, por recolocar o (ser) humano, sem receios de antropocentrismos, no “centro” estruturante do pensamento e do agir ecológicos.

 


Notas

1. A palavra “minimalismo” foi utilizada no âmbito da arte e da arquitetura modernistas, de meados do século XX, impulsionadas pelo funcionalismo e pela eficiência. O arquiteto modernista Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) popularizou a expressão «menos é mais» para descrever as suas preferências de design de estruturas simples e espaços abertos. O dizer «menos é mais» trata-se, hoje em dia, de uma premissa central do estilo de vida minimalista (MARTIN-WOODHEAD 2021).

2. É importante dar nota de que aqueles que desejavam seguir Jesus, na sua vida itinerante, deviam «abandonar tudo» (KÜNG 2002). O que Jesus propunha, como demanda, era a moderação das necessidades e a libertação interior resultante do despojamento. Não admira, portanto, que muitos dos seus discípulos tenham adoptado a pobreza voluntária e que as práticas ascéticas tenham durado vários séculos. (Pierre Maraval in CORBIN et al. 2008).

Em finais do século III surge uma nova forma de vivenciar o ascetismo que, pouco a pouco, irá suplantar as práticas ancestrais, tornando-se numa verdadeira instituição: o monaquismo. Na biografia que Atanásio, bispo de Alexandria, deixou sobre Santo Antão (251-356), este aparece como o modelo do monaquismo: uma vida de castidade, despojamento, penitência e solidão. A novidade do monaquismo consiste precisamente no isolamento: o monge é aquele que está só (do latim monos ou monachos: solitário).

Entretanto, uma nova etapa – a da vida comunitária – começa no século IV, com São Pacómio (c. 292-348) que, depois de alguns anos de vida solitária, cria uma comunidade, no Alto Nilo, sob uma regra que gere a existência diária dos “irmãos” (Pierre Maraval in CORBIN et al. 2008). O monaquismo, quer sob a forma solitária, quer sob a forma “comunitária”, espalha-se paulatinamente por todo o mundo cristão.

3. Os frades menores franciscanos são, por vezes, designados “monges mendicantes”, expressão incorrecta tendo em conta que os mendicantes não são monges, mas religiosos de um novo tipo: fratres (plural do latim frater/fratris: irmão). A originalidade das ordens mendicantes reside, desde logo, na abertura ao mundo, na vida comunitária e no contacto com as pessoas através de uma evangelização deambulatória e interventiva. Por outro lado, ao contrário das ordens mais antigas, assumem a pobreza colectiva, a mendicidade e o abandono à Providência: o monaquismo beneditino e mesmo o mais rigoroso cisterciense nunca exigiram a pobreza colectiva. Os franciscanos deveriam viver do trabalho das suas mãos e só em caso de necessidade, podiam recorrer à mendicidade, mas nunca aceitar dinheiro (André Vauchez in CORBIN et al., 2008).

4. O artigo seminal, de Lynn White, The Historical Roots of Our Ecological Crisis (1967), atribui a crise ecológica ao cristianismo, devido à sua suposta mensagem de dominação do homem sobre a natureza; ignorando aquilo que, ao que parece, estando à vista de todos, nos textos do Novo Testamento, permanece oculto a muitos: o elogio da pobreza, da humildade e da simplicidade, que não se coaduna com o acumular de riquezas, com a dominação e com ‘complicadas’ congeminações como seja, por exemplo, o paradigma (melhor seria dizer “o dogma") do crescimento exponencial. Por outro lado, o seu superficial louvor ao paganismo esquece, por exemplo, que foram civilizações pagãs que tornaram o Crescente Fértil num deserto. O que verdadeiramente está em causa são dois paradigmas antagónicos de estar e de fazer no mundo; paradigmas que coexistem, pelo menos, desde as primeiras sociedades sedentárias, baseadas na agricultura e na pastorícia: um dominador e destruidor, outro servidor e cuidador.

5. Francisco procurou criar um modelo alternativo de sociedade, subtraído ao mundo da compra e da venda, e recusando as hierarquias ligadas à riqueza e ao prestígio social ou cultural (André Vauchez in CORBIN et al., 2008). Na fraternidade por si fundada, os clérigos e os leigos estavam em pé de igualdade e, pelo menos nos primeiros tempos, os homens e as mulheres tinham vidas separadas, mas complementares. Aos olhos de Francisco de Assis, a prática da pobreza constituía a essência da vida evangélica. Nesse contexto, a posse de dinheiro estava proibida, designadamente por se considerar que falseava as relações entre os homens.

O pensamento de Francisco continua actual bastando constatar, a título de exemplo, o que expressou Mark Boyle, na sequência da sua experiência de viver um ano sem dinheiro: «O dinheiro já não nos serve. Nós servimos o dinheiro. O dinheiro apoderou-se do mundo. Enquanto sociedade, idolatramos e veneramos um produto que não tem valor intrínseco, às custas de tudo o resto. Além disso, toda a nossa noção de dinheiro está assente num sistema que promove a desigualdade, a destruição ambiental e o desrespeito pela humanidade.» (2012, p. 15)

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