2. Necessidades: o
essencial e o acessório
«(…) um homem é rico em proporção ao número de coisas de que pode
prescindir.»
Henry David Thoreau
(1999, p. 99)
Embora muitos aspectos da
SV tenham sido investigados empiricamente – incluindo comportamentos de consumo
e responsabilidade ambiental –, a investigação da relação entre esse
conceito/movimento e o bem-estar está limitada a poucos estudos. No entanto,
parece haver uma associação entre o envolvimento na SV e o aumento de bem-estar
(RICH, HANNA, WRIGHT e BENNETT 2017), apesar de um número considerável de intervenientes não
saber identificar os motivos que contribuem para o seu bem-estar (DIJK 2013). Saliente-se que também foi identificada
uma relação entre a frugalidade e o bem-estar (MUIÑOS,
SUÁREZ, HESS e HERNANDÉZ 2015). O bem-estar trata-se de um constructo
complexo e muito abrangente, que integra diversas dimensões e que aglutina
contributos de distintas áreas do conhecimento6 (GALINHA e RIBEIRO 2005). O bem-estar surge geralmente
associado à satisfação com a vida (life satisfation), felicidade e
afecto positivo (RICH, WRIGHT e BENNETT 2020).
A satisfação é
frequentemente mencionada na literatura da SV, sob diversas formas, e nem
sempre é a satisfação hedónica com a vida aquela a que os adeptos do movimento
se referem. Palavras como "significado” e “autenticidade",
"equilíbrio” e “envolvimento" aparecem com frequência. Nesta matéria,
será oportuno trazer à colação o pensamento de Agostinho da Silva que, numa
perspectiva eudaimónica, afirma que o objectivo de vida de cada ser humano não
é ser feliz, mas sim cumprir-se.
Entretanto, numa espécie
de paradoxo, constata-se o predomínio dos valores hedonistas nas sociedades ditas
“pós-modernas” (LIPOVETSKY 1988). O
bem-estar, nesse contexto, surge indissociável do prazer e do consumo. Com uma
profusão luxuriante de produtos e de serviços, o hedonismo, com o seu clima
eufórico de tentação e proximidade, assenta na sedução e consequente consumo e
desperdício. Esse bem-estar é determinado, em grande parte, pela capacidade de
satisfação de necessidades e aspirações materiais, dependendo por isso do
rendimento de cada um. A maior ou menor capacidade financeira também tem
influência no sentimento de segurança ou de insegurança pessoal.
A pobreza extrema (SACHS, 2017) é obviamente uma afronta ao bem-estar
e à satisfação com a vida. Os muito pobres passam fome, não têm água potável,
nem saneamento, e não possuem acesso a cuidados de saúde. No entanto, é
interessante constatar que os índices de satisfação só crescem de modo
significativo até ao ponto em que a carência e a pobreza dão lugar à satisfação
das necessidades essenciais, de sobrevivência, e param de subir ou tendem mesmo
a decrescer drasticamente com novos incrementos de riqueza acima desse ponto (BAUMAN 2017).
A SV deverá, portanto,
consistir num esforço consciente para descobrir o que é verdadeiramente
essencial e prescindir daquilo que se considere supérfluo. E, por outro lado, determinar
qual o doseamento adequado das respectivas necessidades consideradas
essenciais. Tarefa bastante difícil tendo em conta a multiplicidade de pontos
de vista sobre o assunto. Quando se coloca a questão do que é preciso para um
ser humano sobreviver, no topo da lista aparece frequentemente o abrigo, como
necessidade básica a satisfazer (OSIKOMINU e BOCKEN
2020). David Ward e Marta Lasen (2009)
salientaram três necessidades de sobrevivência: alimentos, água e abrigo. Thoreau
identificou quatro «coisas necessárias» ou «indispensáveis à vida»:
alimento, abrigo, roupa e combustível (1999, p. 26-27).
Mark Boyle, na sua experiência de viver um ano sem dinheiro, identificou “seis
coisas” para assegurar «o nível básico de subsistência»: (1) abrigo, (2)
energia, (3) alimentação, (4) mobilidade, (5) comunicações e (6) tudo o resto (2012, p. 41). Torna-se evidente que as necessidades
variam consoante as circunstâncias e os autores. Por outro lado, verifica-se
que não existe concordância sobre quais as necessidades que são consideradas
essenciais e quais as que serão acessórias. E menos concordância existe na
determinação, para cada necessidade, do que se considera conforto e desconforto.
Nessa matéria, para tentar determinar quais as necessidades vitais, será
interessante recorrer à “Lei” da Tolerância de Shelford (1913), utilizada de
modo profícuo no contexto da ecologia clássica. Esta estabelece que todos os
organismos têm um mínimo e um máximo ecológicos, para factores como a
alimentação e a temperatura, entre outros (ODUM
1988). Limites que, quando ultrapassados, levam à morte: a fome mata,
tal como o excesso de alimentação. Por muito cruel que possa parecer, a morte
por inanição é um fenómeno natural (WOHLLEBEN 2019);
no entanto, no contexto humano a componente cultural toma primazia. Por
exemplo, a discussão sobre os níveis mínimos e máximos de satisfação de
necessidades e as suas implicações económico-financeiras, no âmbito do
decrescimento, está na ordem do dia (BÜCHS e KOCH 2019).
A Plataforma da Ecologia
Profunda, criada em 1984, por George Sessions e Arne Naess, faz referência, no
seu ponto terceiro, à satisfação das necessidades vitais, mas propositadamente
não define quais são essas necessidades. Apenas diz que os «seres humanos
não têm o direito de reduzir [a riqueza e a diversidade das formas
de vida], excepto para satisfazer necessidades vitais» (DEVALL
e SESSIONS 2004, p. 90). Constatação pouco utilitária, ademais num contexto
citadino pós-moderno7.
Uma forma interessante de
operacionalizar necessidades e a sua satisfação é através da Pirâmide de Maslow
(KOLTKO-RIVERA 2006; POSTON 2009; KENRICK et al.
2010; DESMET e FOKKINGA 2020). O bem-estar é, desde logo, determinado
pela capacidade de satisfação das necessidades materiais (fisiológicas) da base
da pirâmide: fome, sede, frio, calor, etc.. Depois, satisfeitas essas necessidades
básicas, mas fundamentais porque são os alicerces do bem-estar, pode-se
satisfazer as necessidades de segurança e por aí adiante. A Pirâmide de Maslow
é muitas vezes utilizada em contextos pós-modernos de satisfação de objectivos
meramente hedonistas, mas aqui abre-se a possibilidade da sua utilização numa perspectiva
holística, cuja progressão até ao topo da pirâmide almeje a Auto-realização da
ecologia profunda de Arne Naess (VAZ e DELFINO 2010),
a Transcendência de Manuel Sérgio (SÉRGIO 2018)
ou outra superação num contexto assumidamente eudaimónico. Mais do que elencar
quais as necessidades essenciais ou vitais, nesta abordagem pretende-se satisfazer
as necessidades que surjam, com o conforto possível, permitindo não a
sobrevivência, mas a plena vivência de uma vida boa. Essencial é o minimalismo
e, no tocante ao doseamento, é sempre possível recorrer ao saber dos antigos e
optar pela sobriedade, a temperança e a frugalidade.
Notas
6. O estudo do bem-estar no domínio da
investigação científica surgiu na década de 1960, pela necessidade de
desenvolver indicadores sociais sobre qualidade de vida (MACHADO e BANDEIRA 2012). O trabalho de Ed Diener
(1984) surge como um marco na tentativa de sistematização dos estudos nesta
área do conhecimento, tendo cunhado o termo “bem-estar subjectivo” (BES). O BES
comporta duas componentes basilares: o afecto e a cognição. A componente
afectiva envolve aspectos emocionais (percepções instintivas) e a cognitiva
refere-se a aspectos racionais e intelectuais (decorrentes do pensamento). A
componente afectiva pode ainda ser diferenciada em afecto positivo e afecto
negativo. É nesse contexto que Andrews e Withey (1976) estruturaram, como
componentes do BES, a satisfação juntamente com a expressão do afecto positivo
e do afecto negativo (GIACOMONI 2004).
O bem-estar psicológico
(BEP) baseia-se na teoria psicológica sobre o funcionamento psicológico
positivo ou óptimo, surgido, em 1989, a partir de um ensaio de Carol Ryff. A
autora criticou a falta de consistente base teórica para justificar a escolha
dos indicadores do BES: os estudos prévios utilizavam medidas de afectos
positivos e negativos e da satisfação de vida, com o propósito de investigar a
influência de mudanças sociais e do envelhecimento bem-sucedido, e não a
essência do bem-estar psicológico (MACHADO e BANDEIRA
2012). Por outro lado, ainda segundo essa autora, a interpretação da
felicidade como sendo a principal motivação da existência humana incide sobre a
interpretação equivocada do pensamento dos antigos filósofos gregos,
designadamente de Aristóteles (Ryff 1989, Ryff e
Keys 1995 in MACHADO e BANDEIRA 2012). Este, na sua doutrina
ética, propôs que o bem-viver resulta da eudaimonia, i.e., provém de uma
intenção de desenvolvimento das potencialidades de cada ser humano.
Consequentemente, a eudaimonia consiste num caminho de desenvolvimento pessoal,
de auto-realização e de busca do sentido da vida. Por outro lado, formulações
sobre a essência do bem-estar, em termos de experiências prazerosas,
contentamento, satisfação e felicidade (isto é, de BES) correspondem à
concepção hedónica (por exemplo, de Aristipo de Cirene) do bem-viver, da
satisfação de desejos, da busca de prazer e do evitar da dor. A expressão
eudaimonia foi equivocadamente traduzida por felicidade, ignorando diferenças
fundamentais entre hedonismo e eudaimonia, tal como as suas implicações
teóricas no estudo do bem-estar. Segundo Ryff, do ponto de vista meta-teórico,
o BEP representa a tradição eudaimónica do estudo do bem-estar, resgatando o
sentido original do bem-viver na doutrina Aristotélica (MACHADO e BANDEIRA 2012).
O conceito de bem-estar
será certamente melhor compreendido quando envolve simultaneamente o
funcionamento optimizado (eudaimonia) e a experiência prazerosa (hedonia), pois
tanto as actividades eudaimónicas, quanto as hedónicas, estão intimamente
relacionadas a satisfação, a autoestima ou a vitalidade, entre outros
indicadores (SINGLETON 2019).
7. A generalidade dos cidadãos
citadinos (e não só), no contexto pós-moderno actual, vivem de certo modo numa
realidade distópica, alienados dos ecossistemas naturais e até semi-naturais.
Desde logo, não têm de se confrontar com a morte de um animal e a sua
preparação para o comer: nos (super e hiper)mercados a comida vem, em regra,
preparada para não haver esse tipo de “confrontações”. Neste contexto, a tomada
de decisões no tocante à satisfação de necessidades vitais torna-se algo de (muito)
complexo, subjectivo e longe de consensos.
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