quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Simplicidade Voluntária II


2. Necessidades: o essencial e o acessório

 

«(…) um homem é rico em proporção ao número de coisas de que pode prescindir.»

Henry David Thoreau (1999, p. 99)

 

Embora muitos aspectos da SV tenham sido investigados empiricamente – incluindo comportamentos de consumo e responsabilidade ambiental –, a investigação da relação entre esse conceito/movimento e o bem-estar está limitada a poucos estudos. No entanto, parece haver uma associação entre o envolvimento na SV e o aumento de bem-estar (RICH, HANNA, WRIGHT e BENNETT 2017), apesar de um número considerável de intervenientes não saber identificar os motivos que contribuem para o seu bem-estar (DIJK 2013). Saliente-se que também foi identificada uma relação entre a frugalidade e o bem-estar (MUIÑOS, SUÁREZ, HESS e HERNANDÉZ 2015). O bem-estar trata-se de um constructo complexo e muito abrangente, que integra diversas dimensões e que aglutina contributos de distintas áreas do conhecimento6 (GALINHA e RIBEIRO 2005). O bem-estar surge geralmente associado à satisfação com a vida (life satisfation), felicidade e afecto positivo (RICH, WRIGHT e BENNETT 2020).

A satisfação é frequentemente mencionada na literatura da SV, sob diversas formas, e nem sempre é a satisfação hedónica com a vida aquela a que os adeptos do movimento se referem. Palavras como "significado” e “autenticidade", "equilíbrio” e “envolvimento" aparecem com frequência. Nesta matéria, será oportuno trazer à colação o pensamento de Agostinho da Silva que, numa perspectiva eudaimónica, afirma que o objectivo de vida de cada ser humano não é ser feliz, mas sim cumprir-se.

Entretanto, numa espécie de paradoxo, constata-se o predomínio dos valores hedonistas nas sociedades ditas “pós-modernas” (LIPOVETSKY 1988). O bem-estar, nesse contexto, surge indissociável do prazer e do consumo. Com uma profusão luxuriante de produtos e de serviços, o hedonismo, com o seu clima eufórico de tentação e proximidade, assenta na sedução e consequente consumo e desperdício. Esse bem-estar é determinado, em grande parte, pela capacidade de satisfação de necessidades e aspirações materiais, dependendo por isso do rendimento de cada um. A maior ou menor capacidade financeira também tem influência no sentimento de segurança ou de insegurança pessoal.

A pobreza extrema (SACHS, 2017) é obviamente uma afronta ao bem-estar e à satisfação com a vida. Os muito pobres passam fome, não têm água potável, nem saneamento, e não possuem acesso a cuidados de saúde. No entanto, é interessante constatar que os índices de satisfação só crescem de modo significativo até ao ponto em que a carência e a pobreza dão lugar à satisfação das necessidades essenciais, de sobrevivência, e param de subir ou tendem mesmo a decrescer drasticamente com novos incrementos de riqueza acima desse ponto (BAUMAN 2017).

A SV deverá, portanto, consistir num esforço consciente para descobrir o que é verdadeiramente essencial e prescindir daquilo que se considere supérfluo. E, por outro lado, determinar qual o doseamento adequado das respectivas necessidades consideradas essenciais. Tarefa bastante difícil tendo em conta a multiplicidade de pontos de vista sobre o assunto. Quando se coloca a questão do que é preciso para um ser humano sobreviver, no topo da lista aparece frequentemente o abrigo, como necessidade básica a satisfazer (OSIKOMINU e BOCKEN 2020). David Ward e Marta Lasen (2009) salientaram três necessidades de sobrevivência: alimentos, água e abrigo. Thoreau identificou quatro «coisas necessárias» ou «indispensáveis à vida»: alimento, abrigo, roupa e combustível (1999, p. 26-27). Mark Boyle, na sua experiência de viver um ano sem dinheiro, identificou “seis coisas” para assegurar «o nível básico de subsistência»: (1) abrigo, (2) energia, (3) alimentação, (4) mobilidade, (5) comunicações e (6) tudo o resto (2012, p. 41). Torna-se evidente que as necessidades variam consoante as circunstâncias e os autores. Por outro lado, verifica-se que não existe concordância sobre quais as necessidades que são consideradas essenciais e quais as que serão acessórias. E menos concordância existe na determinação, para cada necessidade, do que se considera conforto e desconforto. Nessa matéria, para tentar determinar quais as necessidades vitais, será interessante recorrer à “Lei” da Tolerância de Shelford (1913), utilizada de modo profícuo no contexto da ecologia clássica. Esta estabelece que todos os organismos têm um mínimo e um máximo ecológicos, para factores como a alimentação e a temperatura, entre outros (ODUM 1988). Limites que, quando ultrapassados, levam à morte: a fome mata, tal como o excesso de alimentação. Por muito cruel que possa parecer, a morte por inanição é um fenómeno natural (WOHLLEBEN 2019); no entanto, no contexto humano a componente cultural toma primazia. Por exemplo, a discussão sobre os níveis mínimos e máximos de satisfação de necessidades e as suas implicações económico-financeiras, no âmbito do decrescimento, está na ordem do dia (BÜCHS e KOCH 2019).

A Plataforma da Ecologia Profunda, criada em 1984, por George Sessions e Arne Naess, faz referência, no seu ponto terceiro, à satisfação das necessidades vitais, mas propositadamente não define quais são essas necessidades. Apenas diz que os «seres humanos não têm o direito de reduzir [a riqueza e a diversidade das formas de vida], excepto para satisfazer necessidades vitais» (DEVALL e SESSIONS 2004, p. 90). Constatação pouco utilitária, ademais num contexto citadino pós-moderno7.

Uma forma interessante de operacionalizar necessidades e a sua satisfação é através da Pirâmide de Maslow (KOLTKO-RIVERA 2006; POSTON 2009; KENRICK et al. 2010; DESMET e FOKKINGA 2020). O bem-estar é, desde logo, determinado pela capacidade de satisfação das necessidades materiais (fisiológicas) da base da pirâmide: fome, sede, frio, calor, etc..  Depois, satisfeitas essas necessidades básicas, mas fundamentais porque são os alicerces do bem-estar, pode-se satisfazer as necessidades de segurança e por aí adiante. A Pirâmide de Maslow é muitas vezes utilizada em contextos pós-modernos de satisfação de objectivos meramente hedonistas, mas aqui abre-se a possibilidade da sua utilização numa perspectiva holística, cuja progressão até ao topo da pirâmide almeje a Auto-realização da ecologia profunda de Arne Naess (VAZ e DELFINO 2010), a Transcendência de Manuel Sérgio (SÉRGIO 2018) ou outra superação num contexto assumidamente eudaimónico. Mais do que elencar quais as necessidades essenciais ou vitais, nesta abordagem pretende-se satisfazer as necessidades que surjam, com o conforto possível, permitindo não a sobrevivência, mas a plena vivência de uma vida boa. Essencial é o minimalismo e, no tocante ao doseamento, é sempre possível recorrer ao saber dos antigos e optar pela sobriedade, a temperança e a frugalidade.




Notas

6. O estudo do bem-estar no domínio da investigação científica surgiu na década de 1960, pela necessidade de desenvolver indicadores sociais sobre qualidade de vida (MACHADO e BANDEIRA 2012). O trabalho de Ed Diener (1984) surge como um marco na tentativa de sistematização dos estudos nesta área do conhecimento, tendo cunhado o termo “bem-estar subjectivo” (BES). O BES comporta duas componentes basilares: o afecto e a cognição. A componente afectiva envolve aspectos emocionais (percepções instintivas) e a cognitiva refere-se a aspectos racionais e intelectuais (decorrentes do pensamento). A componente afectiva pode ainda ser diferenciada em afecto positivo e afecto negativo. É nesse contexto que Andrews e Withey (1976) estruturaram, como componentes do BES, a satisfação juntamente com a expressão do afecto positivo e do afecto negativo (GIACOMONI 2004).

O bem-estar psicológico (BEP) baseia-se na teoria psicológica sobre o funcionamento psicológico positivo ou óptimo, surgido, em 1989, a partir de um ensaio de Carol Ryff. A autora criticou a falta de consistente base teórica para justificar a escolha dos indicadores do BES: os estudos prévios utilizavam medidas de afectos positivos e negativos e da satisfação de vida, com o propósito de investigar a influência de mudanças sociais e do envelhecimento bem-sucedido, e não a essência do bem-estar psicológico (MACHADO e BANDEIRA 2012). Por outro lado, ainda segundo essa autora, a interpretação da felicidade como sendo a principal motivação da existência humana incide sobre a interpretação equivocada do pensamento dos antigos filósofos gregos, designadamente de Aristóteles (Ryff 1989, Ryff e Keys 1995 in MACHADO e BANDEIRA 2012). Este, na sua doutrina ética, propôs que o bem-viver resulta da eudaimonia, i.e., provém de uma intenção de desenvolvimento das potencialidades de cada ser humano. Consequentemente, a eudaimonia consiste num caminho de desenvolvimento pessoal, de auto-realização e de busca do sentido da vida. Por outro lado, formulações sobre a essência do bem-estar, em termos de experiências prazerosas, contentamento, satisfação e felicidade (isto é, de BES) correspondem à concepção hedónica (por exemplo, de Aristipo de Cirene) do bem-viver, da satisfação de desejos, da busca de prazer e do evitar da dor. A expressão eudaimonia foi equivocadamente traduzida por felicidade, ignorando diferenças fundamentais entre hedonismo e eudaimonia, tal como as suas implicações teóricas no estudo do bem-estar. Segundo Ryff, do ponto de vista meta-teórico, o BEP representa a tradição eudaimónica do estudo do bem-estar, resgatando o sentido original do bem-viver na doutrina Aristotélica (MACHADO e BANDEIRA 2012).

O conceito de bem-estar será certamente melhor compreendido quando envolve simultaneamente o funcionamento optimizado (eudaimonia) e a experiência prazerosa (hedonia), pois tanto as actividades eudaimónicas, quanto as hedónicas, estão intimamente relacionadas a satisfação, a autoestima ou a vitalidade, entre outros indicadores (SINGLETON 2019).

7. A generalidade dos cidadãos citadinos (e não só), no contexto pós-moderno actual, vivem de certo modo numa realidade distópica, alienados dos ecossistemas naturais e até semi-naturais. Desde logo, não têm de se confrontar com a morte de um animal e a sua preparação para o comer: nos (super e hiper)mercados a comida vem, em regra, preparada para não haver esse tipo de “confrontações”. Neste contexto, a tomada de decisões no tocante à satisfação de necessidades vitais torna-se algo de (muito) complexo, subjectivo e longe de consensos.

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