quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Simplicidade Voluntária III

 



3. Simplicidade para o Desperdício Zero

 

«Simples nos meios, ricos nos fins.»

Arne Naess (Devall & Sessions, 2004, p. 25)

 

Os cidadãos dos países desenvolvidos (e até de países em vias de desenvolvimento) vivem numa sociedade de abundância e são atraídos para um consumo desenfreado através de diversas estratégias agressivas de marketing e de publicidade, com vista à aquisição de novos produtos e serviços, num contexto de “capitalismo selvagem”, onde o crédito é vendido a eito numa política de “compre agora e pague depois”.  Até os países sub-desenvolvidos são invadidos por quantidades inauditas de produtos “baratos”, designadamente bugigangas de plástico e vestuário. A abundância de mercadorias associada à propaganda intrusiva e à manipulação do marketing incentiva os consumidores a assumirem comportamentos insustentáveis (ZRALEK 2016). E o consumo insustentável é uma das causas importantes da contínua deterioração do meio ambiente, quer a nível local, quer global (KROPFELD, NEPOMUCENO e DANTAS 2018). É, pois, frequente que adeptos da SV questionem os efeitos que o consumo excessivo provoca na saúde, a nível pessoal e planetário (AIDAR e DANIELS 2020), designadamente no que concerne os efeitos nefastos do lixo que, bastantes vezes, assumem o cariz inquestionável de poluição.

A passagem de uma economia linear a uma economia circular pode mitigar o problema do lixo, mas não será certamente a resolução do mesmo, tendo em conta que em ambos os casos o que é verdadeiramente necessário é um decréscimo muito significativo na produção e no consumo (GHEORGHICĂ 2012; SEKULOVA et al., 2013). Decrescimento que poderá ser implementado por vivências de SV ou minimalistas, mas que deverão contar com o envolvimento activo dos produtores e da própria governança dos países e a nível internacional. Se o “círculo” receber uma crescente quantidade de novos produtos, para circulação, vai certamente chegar a um limite insustentável no qual esses “produtos” viram lixo! É prioritário pensar para além da economia circular (reutilizar, reciclar, eco-design) e imaginar estilos de vida marcados por uma maior sobriedade (GUILLARD 2021).

A título de exemplo, a poluição por resíduos plásticos constitui uma grande preocupação ambiental, tendo em conta que cerca de 80% de todos os plásticos produzidos acabam, de alguma forma, como detritos no meio ambiente (ZAMAN 2022): os microplásticos espalham-se no ar, na água e na terra, encontrando-se nas partes mais remotas do planeta e nas cadeias tróficas, enquanto gigantescas “ilhas” de plástico se acumulam nos oceanos! Esses plásticos continuarão a poluir o meio ambiente, durante centenas ou milhares de anos, constituindo um problema que, para além de acções de cidadania ambiental, a nível individual ou colectivo, exigem medidas efectivas por parte dos decisores políticos.

As profundas e fracturantes modificações que o consumismo está a provocar, segundo Sebastien Charles, assumem também facetas preocupantes e difíceis de gerir a nível social (LIPOVETSKY e CHARLES, 2004, p. 32-33):

 

«Le monde de la consommation parait chaque jour s’immiscer dans nos vies et modifier nos rapports aux objects et aux êtres que, pour autant, et ce malgré les critiques que l’on formule à son égard, on puisse proposer de contre-modèle crédible. Et, au-delá de la posture critique, rares seraient ceux qui souhaiteraient réellement l’abolir définitivement.  Force est de constater que son empire ne cesse de progresser: le principe du libre-service, le recherche d’émotions et de plaisirs, le calcul utilitariste, la superficialité des liens semblent avoir contaminé l’ensemble du corps social, la spiritualité elle-même n’y échappant pas.»

 

O sociólogo polaco Zygmunt Bauman (2017), que estuda a face mais perversa e doentia do capitalismo, também assinala diversas preocupações, designadamente a ideia de que somos o que consumimos, a pressão para consumir cada vez mais e os centros comerciais enquanto “catedrais” do consumo! O (hiper)consumismo das sociedades (pós)modernas, na expressão do filósofo Gilles Lipovetsky (2004), é considerado um estilo de vida e um estado de espírito.  A primeira reforma com vista a avançar para um efectivo desperdício zero8 devia centrar-se, portanto, numa profunda mudança de mentalidades e de atitudes. É fundamental reduzir substancialmente a quantidade de lixo: a produção de resíduos deve diminuir progressivamente, decrescer tendencialmente para a meta do desperdício zero. Nesse pressuposto, os “Rs” prioritários serão o reduzir e o renunciar e só depois se seguirão outros. As estratégias de gestão desperdício zero, com base na reutilização, na reparação e na reciclagem, são importantes com vista ao reaproveitamento do “lixo”, mas é fundamental agir a montante reduzindo substancialmente a produção, o consumo e consequentemente a geração de resíduos. É importante saber dizer não. Não ao consumo, num acto de renúncia consciente e conscienciosa. Neste contexto, torna-se importante examinar as relações entre a sobriedade e o desregramento dos consumidores e a sua posse de “bens” ou ausência de posse, de modo a identificar comportamentos e desenvolver estratégias de intervenção adequadas, com o objectivo de reduzir o desperdício.

Saliente-se, todavia, que algumas estratégias e comportamentos para reduzir a quantidade de lixo ultrapassam o plano meramente individual e exigem intervenções comunitárias (BEKIN, CARRIGAN e SZMIGIN 2007). Por outro lado, é também fundamental responsabilizar os produtores, numa lógica de “poluidor pagador”, na qual estes assumam as externalidades decorrentes da produção; tal como os políticos, que foram eleitos para resolver problemas e não para perpetuarem o status quo. É imperioso que se adoptem estratégias de decrescimento para diminuir a produção de resíduos, rumo ao desperdício zero, mas também para minimizar as alterações climáticas, mitigar a degradação ambiental e amenizar os conflitos sociais (MARÍN-BELTRÁN et al. 2021; HICKEL 2021). E, esse desiderato de decrescimento e de uma vida boa, deverá passar necessariamente pela SV.

 

Conclusões

O hiper-consumismo das sociedades pós-modernas assume a condição de estilo de vida e constitui um estado de espírito generalizado.  Uma diminuição significativa e gradual dos resíduos, com vista ao desperdício zero, deve basear-se numa mudança de atitudes, designadamente através do decrescimento e da adopção de estilos de vida (mais) simples. Essa mudança só será sustentável, todavia, se satisfizer um conjunto de necessidades que permitam o bem-estar eudaimónico dos intervenientes. O conceito de vida simples surge frequentemente associado a bem-estar e considera-se que este será fundamental como motivação para a aplicação e sustentabilidade do conceito, tal como para a sua expressão a nível social.

A passagem de uma economia linear a uma economia circular pode mitigar o problema do lixo, mas não constituirá certamente a resolução do mesmo. As estratégias de gestão desperdício zero, com base na reutilização, na reparação e na reciclagem, são importantes com vista ao reaproveitamento do “lixo”, mas é fundamental agir a montante. Só através de um decrescimento (muito) significativo na produção e no consumo é que será possível avançar para situações sustentáveis de gestão do lixo.

A inter-relação entre a SV, o decrescimento e o desperdício zero deverá passar inevitavelmente por vivências mais eco-lógicas, assentes na moderação e no equilíbrio, na sobriedade e na temperança, no minimalismo e na frugalidade, na renúncia e na abstinência. Os estilos de vida decorrentes destas renovadas atitudes devem basear-se, enfim, numa Ética da Terra, assente no bem-estar e no bem-fazer, que permita mais do que uma vida simples, uma vida de maravilhamento e de (Auto)realização.





Nota

8. O termo “desperdício zero”, cunhado em 1974 por Paul Palmer, trata-se do desiderato de progredir para uma gestão sustentável do lixo, que está ancorada no conceito de economia circular (HANNON e ZAMAN 2018). A Zero Waste International Alliance definiu, em 2018, desperdício zero como «the conservation of all resources, packaging, and materials without burning and with no discharges to land, water or air that threatens the environment or human health» (ZAMAN 2022, p. 3).

 

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