Andar à "mata-cavalos"
Serafim e a Saudade... do futuro
Fomos confrontados, há algum tempo, por um Director da nossa Federação, com
uma fotografia de uma placa toponímica sita na Costa da Caparica: Rua de
Serafim Martins (1888-1969). Facto banal não fosse a insólita circunstância do visado se tratar de um “Atleta
Pedestrianista”! Sabíamos que as competições de pedestrianismo (pedestrianism),
nos finais do século XVIII e inícios do XIX, foram muito populares na
Grã-Bretanha e que, à semelhança das corridas de cavalos, envolviam grande
volume de apostas. Foi, aliás, essa actividade que viria a originar a actual
marcha atlética (racewalking). Nesses primórdios do “pedestrianismo
competitivo” verificou-se um grande interesse por percorrer grandes distâncias
numa perspectiva muito idêntica à das actuais ultra-maratonas. No entanto, não
conhecíamos nada de semelhante em Portugal e, na verdade, continuamos a
desconhecer. O pedestrianismo terá surgido em território pátrio, nos finais do
século XIX, no âmbito das actividades de campismo e montanhismo sob a
denominação de “marcha” ou “caminhada” e, mais raramente, de “pedestrianismo”,
mas desde logo numa perspectiva de desporto não competitivo. Daí a nossa
surpresa perante esse “atleta pedestrianista”.
O
grande Serafim Martins foi considerado um dos maiores atletas do seu tempo e
tal não se deveu certamente à sua compleição física – apesar de medir 1.85 m e
pesar 80 kg – mas à sua carreira desportiva e, sobretudo, à sua actividade
física fora do normal. Mas sendo, sem dúvida, um atleta de monta destacou-se a
nível desportivo na corrida e não propriamente na marcha, apesar de ter sido um
inveterado caminheiro. E, como iremos constatar, que melhor homenagem prestada
do que lhe terem atribuído a denominação de “pedestrianista”?!...
“Desde
miúdo que sentia vontade de correr, fazendo despiques com os seus companheiros
de infância, os "Capitães da Areia”.
Em
todas as corridas, ele era sempre o primeiro e, por vezes, o único a acabar,
pois os seus adversários não resistiam à sua velocidade, optando estes por
desistir, refrescando-se, a seguir, nas ondas do mar da Costa [da
Caparica],
paixão e emprego para a maioria dos seus companheiros.
Serafim
Martins nunca quis ter como profissão a arte de pescador. Preferiu,
contrariamente aos seus companheiros de escola, ser peixeiro. Para ele era mais
aliciante e rentável comprar peixe na praia da Costa e vender pelos vários
vendedores espalhados dentro e fora do concelho.”
Serafim
começou a trabalhar aos 17 anos; levantava-se bastante cedo, praticamente todos
os dias, para preparar o cavalo, onde carregava o pescado, e efectuava
caminhadas/corridas até à Fonte da Telha, Cacilhas ou Sesimbra para vender
peixe. “Durante as suas caminhadas, colocava-se ao lado do cavalo,
incitando-o a acompanhá-lo nas suas corridas. Raros eram os animais que
conseguiam aguentar as obrigações que exigia, chegando ao ponto de ter que
mudar de cavalo todos os anos.” Essa sua atitude peculiar valeu-lhe a
alcunha de “Rebenta-cavalos”, epíteto que se tornou célebre na Costa da
Caparica quando se falava do “Atleta-peixeiro”.
À mata-cavalos
A
carreira desportiva de Serafim Martins tão cedo se manifestou quanto
rapidamente se tornou apreciada dos seus conterrâneos. Nas provas em que
participava era invariavelmente acompanhado por um grupo de apoiantes oriundos
da Costa da Caparica, de outros lugares do concelho ou até de outras regiões. “Era
de facto extraordinária, a sua grande claque de apoio, já que de todos os
quadrantes sociais, o atleta-peixeiro recebia provas de enorme entusiasmo e
apoio.” Mas Serafim não era apenas idolatrado por ser um atleta ganhador, a
sua indumentária e forma de correr suis generis também o tornaram
famoso: o seu equipamento consistia no trajo típico dos pescadores (camiseta e
ceroulas de flanela) e, muito importante, corria descalço! Essa postura
humilde, de um homem simples do povo, não impediu que fosse amplamente
respeitado e alvo de notícias nas primeiras páginas dos jornais. Serafim
Martins ainda hoje é considerado “um dos símbolos mais representativos de
uma geração, que marcou o atletismo” em Portugal. Um verdadeiro pioneiro da
arte de correr descalço, muitas décadas antes de presenciarmos o fenómeno nos
atletas africanos, de conhecermos os feitos dos superatletas Tarahumaras (o
povo corredor) ou da moda do barefooting e/ou dos Vibram FiveFingers®.
De
entre os feitos de Serafim Martins salientamos a prova de selecção para os
Jogos Olímpicos de 1912 na qual, ao lado de atletas de maior experiência, deu
provas de grande valor ao longo de todo o percurso. Correndo sempre à frente
durante cerca de 40 quilómetros só então foi ultrapassado por Francisco Lázaro,
tendo desistido na subida da Calçada do Carriche devido a problemas... Lázaro,
sem o seu mais directo adversário e sem competidores à altura, ganhou a
maratona que o seleccionou para os Jogos Olímpicos de Estocolmo onde viria a
morrer durante a prova! “Segundo consta, o atleta peixeiro foi vítima de
anti-desportivismo. Quando o atleta, na calçada de Carriche, se preparava para
passar Francisco Lázaro, alguém espantou um cavalo que se encontrava junto a um
estabelecimento, pisando o atleta caparicano, que, como era hábito, corria
sempre descalço.”
Outro
episódio caricato da sua carreira foi quando se tornou atleta profissional ao
ter recebido o prémio monetário por ele ganho numa corrida. “Este facto
viria a dificultar a continuidade da sua carreira desportiva, sendo somente,
autorizada a sua participação em provas de âmbito profissional e não mais em
campeonatos nacionais, onde só poderiam participar amadores.” Apesar de ter
sido considerado um atleta profissional, Serafim Martins teve sempre como
“ganha-pão” o ofício de peixeiro; facto que não o impediu de ter sido, em 1913,
campeão nacional olímpico: venceu no Velódromo de Palhavã a prova de 5 000
metros e ganhou igualmente o título de 10.000 metros. “Um dado curioso:
nessas provas o atleta teve de correr equipado de camisola e calções do Grupo
Sportivo da Costa de Caparica, mas foi autorizado a fazer a prova descalço,
aliás, como sempre fazia.”
Serafim
Martins não foi só invulgar pelo seu estilo, ao correr descalço, mas também
pela sua longevidade desportiva e pela sua resiliência. Aos 46 anos ainda
voltou a empolgar a população da Costa da Caparica ao ficar em quarto lugar
numa importante corrida. “Em 1934, organiza-se na vila de Trafaria, uma
prova de atletismo denominada por Volta à Caparica. A esta célebre corrida,
acorriam os mais categorizados corredores de momento, como Manuel Dias, Jaime
Mendes, Adelino Tavares e Joaquim Correia, entre outros.
Ao
ter conhecimento deste evento, Serafim Martins que se encontrava doente,
levanta-se da sua cama com 39 graus de febre e vai participar. Equipado à sua
típica e invulgar maneira, entra na corrida e acaba por se classificar em 4º
lugar, dando provas da sua inegável categoria.”
Apesar de, hoje em dia, a maior parte dos portugueses desconhecerem Serafim
Martins essa ignorância não apaga os feitos desse atleta que constitui um marco
incontornável da história do desporto em Portugal. Um homem que muito correu e
andou por gosto (e certamente por necessidade), com o espírito primordial de
percorrer grandes distâncias a pé... descalço. Um exemplo para os atletas que
hoje em dia se dedicam aos desportos da corrida e do andar a pé. Certamente um
estimulo para que os pedestrianistas desportivos, num sentimento pejado de
saudades do futuro, almejem novos (ou velhos?) desafios: a audácia de se
lançarem em mega-marchas.
Pedro Cuiça
(Revista Campismo & Montanhismo - Ano 8 - Série I - nº 32 - Out./Nov./Dez. 2011)
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