quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Átropos

...a LO(u)CO-MOTIVA!

© na Net (?)

«O caminho de ferro de Fitchburg atinge o lago [Walden] a pouco mais de quinhentos metros a sul de ondo moro1. Costumo ir à cidade [de Concord] pelo caminho dos pedestres, que é, por assim dizer, o meu vínculo com a sociedade. Os trabalhadores, nos comboios de carga que percorrem a linha inteira, cumprimentam-me como a um velho conhecido, já que tantas vezes passam por mim tomando-me aparentemente por um empregado; e lá isso sou. Também eu seria, de bom grado, consertador de trilhos em qualquer lugar na órbita da Terra.
(…)
Quando avisto a locomotiva com os seus vagões a deslocarem-se em movimento planetário – ou melhor, como um cometa, pois o espectador, com aquela velocidade e direccção, não sabe se voltará a visitar algum dia este sistema, já que a sua órbita não dá a impressão de uma curva que retorne – e as nuvens de vapor como bandeira desfraldando atrás de si grinaldas de ouro e prata, mais do que outras tantas nuvens suaves que já vi no alto dos céus desdobrando as suas massas para a luz – como se este semi-deus viageiro, este propulsor de nuvens, fosse dentro em pouco adoptar o crepúsculo como libré do seu cortejo; quando ouço o cavalo de ferro fazer os morros ressoarem com relinchos de trovão, estremecendo a terra com as patas, despedindo das ventas fogo e fumo (não sei que espécie de cavalo alado ou de dragão fogoso inventarão para a nova mitologia), até parece que a Terra já arranjou uma raça digna de habitá-la. Se tudo fosse como parece e os homens tomassem os elementos como criados seus ao serviço de fins nobres! Se a nuvem que paira sobre a locomotiva fosse a transpiração de façanhas heróicas, ou tão benfazeja como a que flutua sobre os campos do lavrador, então os elementos da própria Natureza acompanhariam alegremente os homens e dar-lhes-iam escolta nas suas missões.
(…)
Fazer as coisas «à moda da ferrovia» é agora expressão corrente; e vale a pena ser advertido, com frequência e franqueza por qualquer autoridade, para desimpedir o caminho. Não há pausas para admoestações severas, nem, neste caso, tiroteio sobre a cabeça da turba. Construímos um fado, uma Atropos, que nunca se desvia. (Chamemos assim à locomotiva.)»
[THOREAU, 1999: 134-137]

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Tal como em Walden, na obra Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack, «o caminho-de-ferro e outros agentes da industrialização» voltam a ter um papel impactante e «duradouro na paisagem» (Daniel Peck in THOREAU, 2018: 24).

«A areia havia sido varrida pelo vento nalguns locais até uma profundidade de três metros, deixando montículos grotescos dessa altura, onde se via um maciço de arbustos fortemente enraizados. Segundo nos disseram, há trinta ou quarenta anos, aquilo era uma pastagem de ovelhas, mas os animais, importunados pelas pulgas, puseram-se a escavar o solo com as patas até atingirem a camada de erva, de modo que a areia começou a ser arrastada, estendendo-se agora ao longo de quarenta ou cinquenta acres. Isto podia ter sido facilmente remediado, ao princípio, espalhando bétulas com as respectivas folhas pela areia, fixando-as com estacas, para cortar o vento. As pulgas mordiam as ovelhas, e as ovelhas mordiam o solo, e a ferida estendeu-se. É espantoso como uma pequena arranhadela pode dar origem a uma chaga de tais dimensões. Quem sabe se o Sara, onde caravanas e cidades estão enterradas, não terá começado com a mordidela de uma pulga africana! Esta pobre Terra, quanta comichão deve sentir em muitos locais! Não haverá nenhum deus suficientemente misericordioso para espalhar um ungueto de bétula nas suas feridas? Também aqui pudemos identificar um local em que os índios haviam juntado um monte de pedras, porventura para o fogo de conselho, que, devido ao seu peso, impediram que a areia sob elas fosse varrida, tendo assim ficado no topo de um montículo de terra [ao estilo de chaminés de fada]. (…) Durante a viagem, vimos outras zonas arenosas, e podíamos mesmo reconhecer o curso do Merrimack desde a montanha mais próxima pelas suas margens de areia amarela, embora o rio fosse praticamente invisível. Segundo ouvimos dizer, estas situações deram origem nalguns casos a processos nos tribunais. Com efeito, construíram-se linhas de caminho-de-ferro através de regiões sensíveis, quebrando a sua camada protectora de erva e permitindo assim que a areia fosse arrastada pelo vento, o que acabou por converter quintas férteis em desertos, pelo que a companhia teve de pagar indemnizações.»
[THOREAU, 2018: 227-228]

«Quando Thoreau via rolar as máquinas a vapor da linha de Fitchburgo por Walden Pond, «com as carruagens a desaparecerem num movimento planetário», vinha-lhe à mente as três irmãs Parcas da Grécia antiga: a primeira fiava a linha da vida; a segunda lançava os dados que marcavam o destino de cada mortal; a terceira era Átropos, cujo nome significa «que nunca se desvia». Átropos segurava a tesoura que cortava o fio da vida.
Thoreau sabia que uma nova força da Natureza estava em movimento. E escreveu: «Construímos um destino, uma Átropos, que jamais se desvia. (Que seja esse o nome do vosso engenho.)»2»
[WEINER, 1991: 83]

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NOTAS
1. Thoreau viveu, durante cerca de dois anos (1845-1846), numa cabana, junto do lago Walden, naquilo que é vulgar e erroneamente interpretado como uma espécie de “isolamento eremítico”! Tal concepção resultará de leituras superficiais de Walden ou, o mais certo, de quem, nunca tendo lido o livro em questão, engendrou essa “concepção alternativa” através da leitura de uma outra obra, famosa nos meios ambientalistas, da autoria de Ralph Waldo Emerson: A Natureza. Foi esse autor que escreveu: «(…) era Henry David Thoreau, que às tantas fez mesmo a experiência de ir viver vários anos para uma cabana à beira do Walden Pond (...) em solidão e monasticismo radicais, para comungar intimamente com a Natureza à maneira de Diógenes o Cínico (a experiência foi bem sucedida e Thoreau voltou para casa para escrever sobre o assunto)» (EMERSON, 2001: 10).
2. Traduções à parte, fica – em jeito de exercício de reflexão ou de cogitação, como queiram – a seguinte questão: quais serão as "lo(u)co-motivas" ou as mudanças previsíveis no nosso mundo e nas nossas vidas, digamos nos próximos 10 ou 20 anos? O exercício poderá abarcar o vasto condomínio que é a Terra, como um todo, mas será talvez mais interessante, numa primeira abordagem, tentar prever aspectos mais terra-a-terra e do nosso dia-a-dia, não tanto de âmbito global mas sim local. Sendo que, citando Miguel Torga, «o universal é o local sem paredes» ou o mesmo será dizer: o local numa perspectiva holística será o universal.
Tendo em conta o grave défice cultural, da maior parte da população, designadamente de muitos daqueles que são considerados douto(re)s (!), no que concerne a conhecimentos basilares, e portanto essenciais, para uma visão esclarecida do mundo, mormente em matéria de geologia, paleontologia e ecologia, não nos atrevemos a propor desafios na ordem da centena de anos ou ousar, muito menos, abranger dimensões na ordem da unidade de tempo geológico (o milhão de anos!), ademais quando as mudanças nos tempos que correm são tão aceleradas quanto alienantes!...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
EMERSON, Ralph Waldo. A Natureza. Cascais: Sinais de Fogo, 2001, pp. 108. ISBN 972-8541-23-6
THOREAU, Henry David. Walden ou A Vida Nos Bosques. Lisboa: Antígona, 1999, pp. 368. ISBN 972-608-106-8
THOREAU, Henry David. Uma Semana nos Rios Concord e Merrimack. Lisboa: Antígona, 2018, pp. 432. ISBN 978-972-608-300-9
WEINER, Jonathan. Os próximos 100 anos. Lisboa: Gradiva, 1991, pp. 392.

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