terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A Montanha É


PC © Pico

«Montanha do meu segredo
Montanha do meu destino
(…) Montanha da minha sorte
Oh! Génio do meu viver
Encomenda-me na morte
Quando me vires morrer.»
(FRANCO, 2014: 19)

«A janela do meu quarto dava para a «Montanha», morreria contemplando-a, não haveria melhor morte. (…) queria morrer contemplando a «Montanha» (…)»
(FRANCO, 2014: 18)

«HÁ TRINTA anos que acordo, corro as cortinas do meu quarto e avisto a Montanha que dá nome à ilha, ilha do Pico. Ela está lá, sempre. Por vezes, só a vislumbro, apagada por um denso capacete de nuvens. Mas sei que, para além da espessa neblina, ou de uma opaca barreira de chuva grossa, ela está lá sempre. Solitária. Imutável. Triangular. Mineral. Bela. E começo o dia como se fosse o primeiro da minha vida, melhor, o primeiro dia da minha vida desde que cheguei ao Pico para ocupar a casa da Avó Álvara. Lavo-me, visto-me e preparo o pequeno-almoço. A Montanha avisa-me de que, em tempo, pouco é a vida humana comparada com a existência de massas minerais, de que para ela ontem significa milhões de anos e amanhã outros milhões.

Esta acção existencial profiláctica que pratico todas as manhãs – invariavelmente – reduz o horizonte das minhas ambições e inquietações.»
(FRANCO, 2014: 22)

PC © Pico

«Estou certa de que pouco desejo da vida porque vivo à sombra da Montanha. A sua sombra não é opressiva. Pelo contrário, é profundamente libertadora. Conviver todos os dias com algo ou alguém que nos é infinitamente superior não nos amesquinha nem nos humilha. Reduz-nos à nossa pequena dimensão, ao horizonte exíguo das nossas dúvidas. Sabemo-nos limitados. Não estreitos, não mesquinhos. Apenas limitados. Seríamos outros se a nossa altura e a nossa largura possuíssem a dimensão da Montanha e seríamos outros se a nossa existência tivesse a sua duração. Mas não tem. A seu lado, somos insectos. Eis uma boa comparação. Somos para ela como a formiga para nós. Não vale a pena uma formiga rivalizar com um homem. Assim também não vale a pena rivalizar com a Montanha. Sentimo-nos livres. Não para votar ou para escolher marcas de leite no supermercado. Mas para viver. Viver mesmo (…)»
(FRANCO, 2014: 23)

«A mineralidade eterna da Montanha tem este condão: desperta-nos para os momentos perenes da vida, apagando da nossa mente a insignificância do dia-a-dia. Torna-nos livres para apreciarmos os verdadeiros instantes em que vale a pena viver. O nosso olhar, carregado da Montanha, tem sobre a vida uma visão perscrutadora – o que interessa é saboreado; a vanidade, o supérfluo, a banalidade, são abandonados. Com a prática, estes escapam-se-nos entre os dedos, não lhes prestamos maior importância do que a que dispensamos a um carro que por nós passou e já desapareceu.

A Montanha ajudou-me a nivelar a minha relação com deus. Massa pétrea colossal, nela projectei o meu sentimento de transcendência. Deixei de precisar de uma sublimidade religiosa, um deus metafísico exterior ao mundo. Basta-me saber que o sagrado com ela se identifica, que a sua altitude, como uma divindade telúrica, marca as modalidades do tempo climatérico e o horizonte da minha vida e do meu pensamento, que ela acolherá o meu corpo na morte. Na Montanha me dissolverei como um budista acredita dissolver-se na eternidade cósmica do Nada. O cemitério onde repousarei conterá, por baixo, a lava primitiva da ilha e, por cima, as escorrências milenarias vivas da sua erosão, transformadas em pedra negra. Assentarei definitivamente entre dois deuses naturais – a lava de pedra e a terra da vida –, como se assentasse no colo de deus, protegida pelos seus braços e o seu hálito. Não preciso de outro deus, chega-me a Montanha. Entendo o Espírito Santo como o Espírito da Montanha, sempre presente na ilha, modelando-a geograficamente e modelando o viver dos homens em torno do mar. A Montanha é o meu Espírito Santo, a morada da minha alma, em vida e na morte. Dissolvendo o meu corpo na Montanha, serei eterna através dela, do seu ritmo cósmico e das suas manifestações de vida. Como religião, a Montanha chega-me – de manhã, quando corro as cortinas e a vejo, é como se o meu quarto se tivesse transformado num altar de adoração ao Senhor. O Senhor é a Montanha.»
(FRANCO, 2014: 24-25)

PC © Pico


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FRANCO, Luísa. A Montanha e o Titanic. Lisboa: Edições Parsifal, 2014, pp. 196. ISBN 978-989-98521-3-6



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