PC © Pico
«Montanha do meu segredo
Montanha do meu destino
(…) Montanha da minha sorte
Oh! Génio do meu viver
Encomenda-me na morte
Quando me vires morrer.»
(FRANCO, 2014: 19)
«A janela do meu quarto dava para a
«Montanha», morreria contemplando-a, não haveria melhor morte. (…)
queria morrer contemplando a «Montanha» (…)»
(FRANCO, 2014: 18)
«HÁ TRINTA anos que acordo, corro as
cortinas do meu quarto e avisto a Montanha que dá nome à ilha, ilha do Pico.
Ela está lá, sempre. Por vezes, só a vislumbro, apagada por um denso capacete de
nuvens. Mas sei que, para além da espessa neblina, ou de uma opaca barreira de
chuva grossa, ela está lá sempre. Solitária. Imutável. Triangular. Mineral.
Bela. E começo o dia como se fosse o primeiro da minha vida, melhor, o primeiro
dia da minha vida desde que cheguei ao Pico para ocupar a casa da Avó Álvara.
Lavo-me, visto-me e preparo o pequeno-almoço. A Montanha avisa-me de que, em tempo, pouco é a vida humana comparada
com a existência de massas minerais, de que para ela ontem significa milhões de
anos e amanhã outros milhões.
Esta acção existencial profiláctica
que pratico todas as manhãs – invariavelmente – reduz o horizonte das minhas
ambições e inquietações.»
(FRANCO, 2014: 22)
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«Estou
certa de que pouco desejo da vida porque vivo à sombra da Montanha. A sua
sombra não é opressiva. Pelo contrário, é profundamente libertadora.
Conviver todos os dias com algo ou alguém que nos é infinitamente superior não
nos amesquinha nem nos humilha. Reduz-nos à nossa pequena dimensão, ao
horizonte exíguo das nossas dúvidas. Sabemo-nos limitados. Não estreitos, não
mesquinhos. Apenas limitados. Seríamos outros se a nossa altura e a nossa
largura possuíssem a dimensão da Montanha e seríamos outros se a nossa
existência tivesse a sua duração. Mas não tem. A seu lado, somos insectos. Eis
uma boa comparação. Somos para ela como a formiga para nós. Não vale a pena uma
formiga rivalizar com um homem. Assim também não vale a pena rivalizar com a
Montanha. Sentimo-nos livres. Não
para votar ou para escolher marcas de leite no supermercado. Mas para viver. Viver mesmo (…)»
(FRANCO, 2014: 23)
«A
mineralidade eterna da Montanha tem este condão: desperta-nos para os momentos
perenes da vida, apagando da nossa mente a insignificância do dia-a-dia.
Torna-nos livres para apreciarmos os verdadeiros instantes em que vale a pena
viver. O nosso olhar, carregado da Montanha, tem sobre a vida uma visão
perscrutadora – o que interessa é saboreado; a vanidade, o supérfluo, a
banalidade, são abandonados. Com a prática, estes escapam-se-nos entre os
dedos, não lhes prestamos maior importância do que a que dispensamos a um carro
que por nós passou e já desapareceu.
A Montanha ajudou-me a nivelar a minha
relação com deus. Massa pétrea colossal, nela projectei o meu sentimento de
transcendência. Deixei de precisar de uma sublimidade religiosa, um deus
metafísico exterior ao mundo. Basta-me saber que o sagrado com ela se
identifica, que a sua altitude, como uma divindade telúrica, marca as
modalidades do tempo climatérico e o horizonte da minha vida e do meu
pensamento, que ela acolherá o meu corpo na morte. Na Montanha me dissolverei
como um budista acredita dissolver-se na eternidade cósmica do Nada. O
cemitério onde repousarei conterá, por baixo, a lava primitiva da ilha e, por
cima, as escorrências milenarias vivas da sua erosão, transformadas em pedra
negra. Assentarei definitivamente entre dois deuses naturais – a lava de pedra
e a terra da vida –, como se assentasse no colo de deus, protegida pelos seus
braços e o seu hálito. Não preciso de outro deus, chega-me a Montanha. Entendo
o Espírito Santo como o Espírito da Montanha, sempre presente na ilha,
modelando-a geograficamente e modelando o viver dos homens em torno do mar. A Montanha é o meu Espírito Santo, a
morada da minha alma, em vida e na morte. Dissolvendo o meu corpo na Montanha,
serei eterna através dela, do seu ritmo cósmico e das suas manifestações de
vida. Como religião, a Montanha chega-me – de manhã, quando corro as cortinas e
a vejo, é como se o meu quarto se tivesse transformado num altar de adoração ao
Senhor. O Senhor é a Montanha.»
(FRANCO, 2014: 24-25)
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FRANCO, Luísa. A Montanha e o Titanic. Lisboa:
Edições Parsifal, 2014, pp. 196. ISBN 978-989-98521-3-6
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