sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A Obra ao Negro

Pedro Cuiça © A Ilha Montanha (Pico, Jan. 2016)


«Para encontrar a minha imagem na verónica que o instante, como um toureiro, colhe.»
Júlio Pomar in Da Cegueira dos Pintores (1986: 24)


A Vida Errante

«Tu, nullis angustiis coercitus, pro tuo arbitrio, in cuiús manu te posui, tibi illam praefinies.»
(Mas tu, que não conheces qualquer limite, só mercê do teu arbítrio, em cujas mãos te coloquei, te defines a ti próprio.)
Pico de Mirândola (Oratio de Hominis Dignitate)

Enquanto viajava, assaltou-me uma ideia: à força de rondar pelos caminhos do espaço, de saber, Aqui, que Acolá me esperava, se bem que ainda encontrasse distante, decidi, à minha maneira, aventurar-me pelos caminhos do tempo. Acabar com o fosso que existe entre o vaticínio categórico do calculador de eclipses e o diagnóstico já mais titubeante do médico, arriscar-me, com a máxima precaução, a escorar uma mediante a outra, a premonição e a conjectura, traçar, nesse continente que ainda não atingimos, a carta dos oceanos e a das terras já imersas… É esta tentativa que me põe exausto.
[YOURCENAR, 2009: 129]

Pedro Cuiça © A Ilha Montanha (Pico, Mar. 2016)


A Vida Imóvel

«Obscurum per obscurius
Ignotum per ignotius.»
(Buscar o obscuro e o desconhecido
Através do que ainda é mais obscuro e desconhecido.)
Divisa Alquímica

SOLVE ET COAGULA… Ele sabia o que significava essa ruptura das ideias, esse vácuo no seio das coisas. Jovem clérigo, lera Nicolau Flamel, a descrição do opus nigrum, essa tentativa de calcinação e dissolução das formas, que é a parte mais difícil da Grande Obra. Dom Blas de Vela muitas vezes lhe afirmara solenemente que a operação se realizaria por si mesma, quer se quisesse quer não, quando todas as condições se cumprissem. O clérigo avidamente meditara naqueles adágios que lhe pareciam tirados de não se sabe que estranho ou talvez verídico engrimanço. Essa separação alquímica, tão perigosa que os filósofos herméticos só se lhe referiam por meias palavras, tão árdua que muitas vidas se haviam gasto em vão para a conseguir, tinha-a ele antigamente tomado por uma fácil rebelião. Rejeitando, depois, esses desconexos devaneios tão velhos como a ilusão humana, não guardando de seus mestres alquimistas mais do que algumas receitas pragmáticas, optara por dissolver e coagular a matéria no sentido de uma experimentação operada no corpo das coisas. Doravante, convergiam os dois ramos da parábola; cumprira-se a mors philosophica: o operador, queimado pelos ácidos da experiência, era, a um tempo, sujeito e objecto, frágil alambique e negro precipitado no fundo do receptáculo. A experiência, que se julgara poder confinar à oficina, estendera-se a tudo. Poder-se-ia daí concluir que as fases subsequentes da aventura alquímica fossem algo mais do que sonho e que também ele viria alguma vez a conhecer a pureza ascética da Obra ao Branco, seguida do triunfo conjugado do espírito e dos sentidos, que é característica da Obra ao Rubro? Do mais fundo da brecha nascia uma Quimera. Dizia Sim por audácia, da mesma forma que também por audácia outrora dissera Não. Estacava, de súbito, puxando violentamente as rédeas de si mesmo. A primeira fase da Obra exigira-lhe a vida inteira. Faltavam-lhe tempo e forças para poder ir mais longe, isto admitindo que houvesse realmente um caminho e que, por esse caminho, um homem pudesse passar.
[YOURCENAR, 2009: 185]

A demanda do espírito processava-se em círculo. Dantes, em Basileia, e em vários outros lugares, passara por idêntica escuridão. As mesmas verdades haviam sido reaprendidas várias vezes. Mas a experiência era cumulativa: o passo, com o tempo, tornava-se cada vez mais seguro; o olhar ganhava maior alcance no meio de certas trevas; o espírito constava, pelo menos, certas e determinadas leis. Como um homem que sobe, ou quiçá desce a falda de uma montanha, assim ele se elevava ou se enterrava sem sair do mesmo sítio; pelo menos, em cada curva, um novo abismo se erguia, ora à direita, ora à esquerda. A ascensão só podia medir-se pelo ar que ia rareando e pelos diferentes cumes que apontavam por detrás daqueles que já pareciam haver ocultado o horizonte. Era, porém, falsa a noção de ascensão ou de descida: os astros tanto brilhavam em cima como em baixo; e ele tanto se achava no fundo do abismo como no centro. O abismo estava, ao mesmo tempo, para além da esfera celeste e no interior da cúpula óssea. Tudo parecia processar-se no extremo limite de uma série infinita de curvas fechadas.
[YOURCENAR, 2009: 188-189]

Pedro Cuiça © A Ilha Montanha (Pico, Jan. 2016)


A prisão

«Meglio è morir all’anima gentile
Che suportar inevitabil danno
Che lo farria cambiar animo e stile.»
(Mais vale morrer com nobreza de ânimo
Que suportar o mal inevitável
Que lhe roubasse virtude e estilo…)
Juliano de Médicis

Caíra a noite, sem que ele soubesse se seria em si próprio, se na sua cela: tudo era noite. Também a noite se movimentava: as trevas afastavam-se para darem lugar a outras trevas, abismo sobre abismo, espesso negrume sobre espesso negrume. Mas esse negro, tão diverso daquele que com os olhos se apercebe, fremia de cores nascidas, por assim dizer, da sua própria ausência; o negro tornava-se verde lívido, depois branco puro; o branco pálido transmutava-se em ouro rubro, sem contudo perder a negrura original, tal como o lampejo dos astros e da aurora boreal cintila no meio daquilo que, apesar de tudo, é noite escura.
[YOURCENAR, 2009: 333-334]

© Jorge Maia


Referência bibliográfica
YOURCENAR, Marguerite (1968). A Obra ao Negro. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2009, 9ª edição, pp. 350. ISBN 978-972-20-3760-0

Pedro Cuiça © A Ilha Montanha (Pico, Jan. 2016)

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