Renoir © Trilho na Floresta (1875)
Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da
floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos,
na macieza estalante das folhas, que juncavam, amarelas e meio-verdes, a
irregularidade do chão. Mas iam também disjuntos porque éramos dois
pensamentos, nem havia entre nós de comum senão que o que éramos pisava
uníssono o mesmo solo ouvido.
Tinha entrado já o princípio do outono, e, além das folhas que
pisávamos, ouvíamos cair continuamente, no acompanhamento brusco do vento,
outras folhas, ou sons de folhas, por toda a parte onde íamos ou havíamos ido.
Não havia mais paisagem senão a floresta que velava todas. Bastava, porém, como
sítio e lugar para os que, como nós, não tínhamos por vida senão o caminhar
uníssono e diverso sobre um solo mortiço. Era – creio – o fim de um dia, ou de
qualquer dia, ou porventura de todos os dias, num outono todos os outonos, na
floresta simbólica e verdadeira.
Que casas, que deveres, que amores havíamos largado – nós mesmos o
não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o
que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas
nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do
vento incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois não
sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos ou chegávamos.
E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista, o som das folhas que
escombravam adormeciam de tristeza a floresta.
Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele
prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um
de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o outro,
e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda
clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a
falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes,
e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo,
na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.
Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um? Não sabíamos nem o
perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um
fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir,
pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse
ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores
anónimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussurro, ora brusco ora
suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas,
um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora – a
floresta, os dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era
ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca
mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as
folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um
sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.
28/11/1932
[PESSOA, 1986:
160-161]
Pedro Cuiça © Mont'santo (Lisboa, 4/12/2016)
Referência bibliográfica
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego, por Bernardo Soares - 1ª Parte. Mem Martins: Publicações
Europa-América, 1986, p.318
Pedro Cuiça © Mont'santo (Lisboa, 4/12/2016)
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