«Claro que sou cristão; e
outras coisas, por exemplo budista, o que é, para tantos, ser ateísta; ou,
outro exemplo, pagão. O que, tudo junto, dá português, na sua plena forma
brasileira.»
[Agostinho da Silva in BORGES: 2006: 192]
Cremos, todavia, que esta visão e experiência surge, em Agostinho,
como o aprofundamento e o culminar da sua prática de uma determinada via, o
catolicismo cristão, embora mediante uma leitura e sensibilidade paraclética
que tende a extravasar das fronteiras ortodoxas, não sendo porventura possível
se desde o início procurasse caminhar por todas as vias, o que seria uma forma
de não seguir afinal por nenhuma. Sendo um ponto de chegada, torna-se difícil
que esta experiência e visão seja um ponto de partida, o que implicaria a
capacidade, certamente rara, embora não impossível, de desde o início alguém se
colocar (ou se reconhecer) no cume da montanha – mediante uma experiência real
e não meramente mental, que geralmente não produz senão a atitude diletante e
indiferente da maioria dos intelectuais em relação à verdadeira espiritualidade
–, livre disso que condiciona o haver caminho, ou seja, a subjectividade
cindida da plenitude. Neste sentido, embora relativas à luz do seu fim último,
e cada vez mais relativizáveis à medida que por elas se avança, as diversas
vias, religiosas ou não, revelam-se afinal de uma importância fundamental para
aqueles que as percorrem e enquanto as percorrem. Sobretudo a via a cada um mais
adequada para chegar ao fim último, pois é ela, e não por outra, que melhor
pode caminhar, e mais rapidamente – o que não quer dizer facilmente, mas antes
o inverso, pois só as dificuldades obrigam à superação e transformação de si na
qual consiste o avanço –, em direcção a ele. Com efeito, não tendo a capacidade
de voar de imediato para o cume da montanha, ou seja, de se reconhecer desde
sempre lá, nunca aí chegará aquele que desde o início queira percorrer todas as
veredas que até ele conduzem. Não o vemos senão dando alguns passos numa, para
logo voltar atrás, ensaiar caminho por outra e assim sucessivamente. Ou então
abandonando uma após algum progresso nela para, sem regressar atrás, tentar
mudar-se para outra, o que implica o risco de se extraviar no denso matagal que
as separa, sem encontrar outra vereda ou sem saber se, mesmo encontrando-a,
nela lhe será de algum proveito o progresso feito na anterior, pois diferentes
são, em função das diferenças de cada indivíduo, quer as características e exigências
de cada caminho, quer as qualidades que ao percorrer cada um deles, embora
convergentes para um mesmo fim, se desenvolvem. Claro que existirão muitas e
dignas excepções, mas o quadro mais provável para alguém que deste modo se
comporte é o de desperdiçar o precioso e limitado tempo de uma vida humana a
andar em círculos, ou de um lado para outro, subindo e descendo sem se afastar
muito do sopé da montanha, a entrar e a sair das diferentes veredas, ou ainda
perdido a meio da subida, sem saber por que vereda continuar ou, abandonada
uma, sem conseguir encontrar outra ou nela se integrar, até que o cansaço, a frustração,
o desalento, o tédio, a descrença, o desespero ou a morte o surpreendam e lhe
retirem toda a possibilidade de chegar ao cume, realizando-se plenamente. Pelo
contrário, aquele que firme e decididamente, após averiguar qual a vereda que
melhor lhe corresponde, e reconhecendo a equivalência de todas as demais como
as mais correspondentes a outros, por ela caminhe sem distracção nem hesitação,
quanto mais por ela ascender mais vai verificar e sentir a aproximação e
convergência de todas as demais, e de todos os outros caminhantes, para o mesmo
destino: o cume da montanha em cujo limiar todos finalmente em júbilo se
encontram, dialogam, comungam ou mesmo, um passo adiante, fundem, descobrindo
que um só é o sentido de vias múltiplas. O que não implica que todas as vias
num dado momento e lugar sócio-geográfico e sócio-cultural existentes ou
disponíveis conduzam exactamente, e com a mesma rapidez e proveito, ao cume,
tornando-se legítima e desejável a mudança para os caminhantes que constatem a
limitação, para si e para as suas aspirações, de algumas delas, por exemplo por
se deterem no que consideram cume, e não é senão um patamar da ascensão ou por
não permitirem desenvolver todas as qualidades que a partir de um determinado
estádio da subida se requerem. O que, todavia, nos parece que mais evidente e
necessário se torna em níveis superiores do caminho e não tanto nos seus passos
iniciais.
Se Agostinho predominantemente nos fala a partir desse cume onde
todas as vias autênticas, mais exigentes e profundas convergem, ou do seu
vivido vislumbre, o que supõe um estádio avançado no caminho por si percorrido,
parece-nos fundamental enfatizar estas observações para obviar uma leitura da
sua visão conducente ao que nos parece mais uma das tendências e equívocos
fundamentais de uma certa e suposta “espiritualidade” contemporânea, conhecida
como New Age (sem negar o que nela
corresponde a uma autêntica busca de espiritualidade mais livre dos limites
dogmáticos e confessionais em que tendem a enquistar-se as religiões
tradicionais), em que muitas vezes não se vende senão todo o tipo de “cocktails”
espirituais, inventados à medida da imaginação do criador e da curiosidade ou
necessidade do consumidor, quimérica via que procura conciliar o que haja de
mais agradável e excitante, para o ego que deseja sempre resultados rápidos,
por meios fáceis e agradáveis, em todas as vias tradicionais. Vias essas, ao
contrário, de eficácia comprovada por haverem sido o, ou nascido do, percurso
de inúmeros homens que por elas foram até ao cume, verdadeiramente se
realizaram e assim se converteram em guias, nelas, para os demais,
mostrando-lhes o caminho e as suas exigências e precavendo-os dos riscos e
desvios. Seguir uma via fabricada à medida das necessidades de gratificação e
promoção do ego, e não em função da necessidade de o superar, sem outro mestre
senão ele mesmo, não pode, naturalmente, mais do que levar ao seu reforço do
aprisionamento nele do ser mais profundo.
[BORGES: 2006: 192-194]
Referência
bibliográfica
BORGES, Paulo. Tempo de Ser Deus – A espiritualidade
ecuménica de Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora Editora, 2006, pp. 208.
ISBN 978-972-780-177-0
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