«Eu
O canto
Caminho aqui»
[canto modoc in ABRAM, 2007: 92]
Hoje é fácil para
a maior parte de nós, vivendo no meio das construções em constante mutação da
civilização literata e tecnológica, conceber e até sentir, por detrás de todas as recorrências sazonais no terreno
sensível, a inexorável arremetida de um tempo linear e irreversível. Mas para
as culturas sem escrita simplesmente não existe um ponto de observação de onde
ver e anotar as subtis mutações e variações nos infindáveis ciclos da natureza.
As mudanças que são observadas são frequentemente assumidas como fazendo parte
de outros ciclos mais vastos. Porque a trajectória global do mundo visível e
tangível – o mundo desvendado à humanidade pelos nossos sentidos sem a ajuda de
instrumentos – é circular.
(…)
A curvatura do
tempo nas culturas orais é muito difícil de articular na página, porque desafia
a linearidade da linha impressa. Todavia envolver-nos completamente,
sensorialmente, com a terra circundante é descobrir-nos num mundo de ciclos
dentro de ciclos.
(…)
Mircea Eliade, na
sua importante e enigmática obra Cosmos e
História: O Mito do Eterno Retorno, mostrou tão bem como qualquer outro
estudioso em que medida os povos indígenas habitam um tempo cíclico periodicamente
regenerado através da repetição ritual de acontecimentos míticos. Dentro das
culturas “arcaicas” (o termo é de Eliade), cada actividade efectiva – desde caçar,
pescar e colher plantas a conquistar um parceiro sexual, construir um lar ou
dar à luz – é uma recorrência de um acontecimento arquétipo posto em cena por
poderes ancestrais ou totémicos nos tempos míticos.
(…)
Executando essas
actividades com cuidado, empregando exactamente as mesmas frases e os mesmos
gestos revelado no Tempo Mítico, o indivíduo converte-se realmente no ser
ancestral e assim rejuvenesce a ordem emergente do mundo (tal como o homem da
tribu pintupi na Deambulação, caminhando nas pegadas do seu antepassado totem,
está a cantar o mundo, trazendo-o de volta à existência).
[ABRAM, 2007:
190-191]
Paulo Cabrita © Mandala (Serra de Sintra, 7/12/2015)
Referência bibliográfica
ABRAM, David. A Magia do Sensível – Percepção
e Linguagem num mundo mais do que humano. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, pp. 340. ISBN 978-972-31-1184-2
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