quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Cantaminhar o mundo

«Eu
O canto
Caminho aqui»
[canto modoc in ABRAM, 2007: 92]

Hoje é fácil para a maior parte de nós, vivendo no meio das construções em constante mutação da civilização literata e tecnológica, conceber e até sentir, por detrás de todas as recorrências sazonais no terreno sensível, a inexorável arremetida de um tempo linear e irreversível. Mas para as culturas sem escrita simplesmente não existe um ponto de observação de onde ver e anotar as subtis mutações e variações nos infindáveis ciclos da natureza. As mudanças que são observadas são frequentemente assumidas como fazendo parte de outros ciclos mais vastos. Porque a trajectória global do mundo visível e tangível – o mundo desvendado à humanidade pelos nossos sentidos sem a ajuda de instrumentos – é circular.
(…)
A curvatura do tempo nas culturas orais é muito difícil de articular na página, porque desafia a linearidade da linha impressa. Todavia envolver-nos completamente, sensorialmente, com a terra circundante é descobrir-nos num mundo de ciclos dentro de ciclos.
(…)
Mircea Eliade, na sua importante e enigmática obra Cosmos e História: O Mito do Eterno Retorno, mostrou tão bem como qualquer outro estudioso em que medida os povos indígenas habitam um tempo cíclico periodicamente regenerado através da repetição ritual de acontecimentos míticos. Dentro das culturas “arcaicas” (o termo é de Eliade), cada actividade efectiva – desde caçar, pescar e colher plantas a conquistar um parceiro sexual, construir um lar ou dar à luz – é uma recorrência de um acontecimento arquétipo posto em cena por poderes ancestrais ou totémicos nos tempos míticos.
(…)
Executando essas actividades com cuidado, empregando exactamente as mesmas frases e os mesmos gestos revelado no Tempo Mítico, o indivíduo converte-se realmente no ser ancestral e assim rejuvenesce a ordem emergente do mundo (tal como o homem da tribu pintupi na Deambulação, caminhando nas pegadas do seu antepassado totem, está a cantar o mundo, trazendo-o de volta à existência).
[ABRAM, 2007: 190-191]

Paulo Cabrita © Mandala (Serra de Sintra, 7/12/2015)


Referência bibliográfica
ABRAM, David. A Magia do Sensível – Percepção e Linguagem num mundo mais do que humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, pp. 340. ISBN 978-972-31-1184-2

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