segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Sobre a(s) Via(s)


Breve ensaio sobre a(s) Via(s)


«Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 26)

«Considerando-me paradoxal, dirigem-me o melhor elogio que eu poderei ter.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 76)

«O mundo tem tantas possibilidades que até o impossível é possível»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 44)


No dia 13 de Fevereiro do presente ano [2018] passaram 112 anos sobre o nascimento de Agostinho da Silva e, nessa data especial, não só tive a propensão para reflectir sobre o percurso desse ser invulgar como o ensejo de escrever sobre três características a ele associadas – a Liberdade, a Força e a Sabedoria/Beleza – enquanto virtudes essenciais, entre outras, no palmilhar daquilo que se entenderá por a(s) via(s). Desiderato que conduziu rápida e, quase diria, inexoravelmente à extrapolação daquilo que se poderá considerar a orientação a seguir, na enteléquia do movimento, não só por “homens de génio” mas igualmente por qualquer “comum dos mortais”.
Esse Estranhíssimo Colosso1 que foi Agostinho, na sua multifacetada complexidade, surge, antes de mais, como um Homem simples e humilde, profundamente entusiasmado, culto e convicto… Um poeta à solta, exímio conhecedor da Idade Antiga, apaixonado pela Idade Média e arauto da Idade Futura do Espírito Santo. Um pensador que não desdenharia o epiteto de “libertário”, porque libertador e cultor do exercício do «pensamento libérrimo» (BRANCO, 2006: 69), mas que não seria certamente circunscrito pelo mesmo. Difícil, se não impossível de “rotular”1, foi indubitavelmente um paladino da Liberdade, mormente no sentido de «todo o homem (…) ser aquilo que ele tem de ser: um criador sem nenhuma espécie de inibição» (Agostinho da Silva in MENDANHA, 1998: 56). E é precisamente essa sua faceta de paladino da Liberdade – qual cavaleiro andante – que tomamos como ponto de partida do caminhar/caminho(s) ou do empreender uma ou mais via(gen)s, como se queira ou possa…  Lembremos que Agostinho, tendo sido um reiterado defensor da vadiagem e da errância – daqueles considerados «errantes, no sentido de que poderiam andar por aqui e por acolá» (Agostinho da Silva in Conversas Vadias) –, abordou precisamente a Liberdade num ensaio denominado “Ritmos de Marcha (SILVA, 1990: 113-117). Titulo promissor, se tivermos em conta a importância da “gestão do esforço”, na continuidade da demanda, que não deverá olvidar a sábia máxima «Festina lente»2.
O pensamento de Agostinho da Silva apesar de se (re)velar sob a forma de uma aparente simplicidade, categórica e incisiva, oculta uma difícil e contraditória, senão paradoxal, complexidade. Tal como a vida é difícil3, o seu pensamento não é fácil. Facto constatável, desde logo, pela sua ascética afirmação da Liberdade «pela conquista e domínio de si mesmo, através do caminho único que têm apontado a experiência e os séculos: o caminho da ascese mais rigorosa e absoluta, da oração contínua e do amor dos homens em Deus e por Deus» (ibidem: 19). Um caminho único, porque assente na renúncia comum – saber «ser ascético no meio da abundância» e preferir «ao poder a santidade» (ibidem: 55) –, e simultaneamente múltiplo, porque palmilhado por cada um de forma diferente. Um modo difícil e pouco usual de entender a Liberdade, nos dias de hoje, tendo em conta que Agostinho não concebia que «se possa definir o homem como um animal cuja característica ou cujo último fim seja o de viver feliz», embora considerasse que «nele seja essencial o viver alegre» (ibidem, 51). Nas palavras de Agostinho da Silva (ibidem: 51-52):

«Os felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a viagem dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos para entender as duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade, a cegueira, a inflexibilidade das leis mecânicas, que são bem as representantes do Fado, e cuja grandeza verdadeira só se pode sentir no desastre; é quando a catástrofe chega que a fatalidade se mede em tudo o que tem de divino, e foi pena que não fosse esta a lição essencial que tivéssemos tirado da tragédia grega; como pena foi que só tivéssemos olhado o fatalismo dos árabes pelo seu lado superficial.
Por outra parte, é igualmente na desgraça que se mede a outra grande força do mundo, a da liberdade do espírito, que permite julgar o valor moral do desastre e permite superar, pelo seu aproveitamento, o toque do fatal; não creio que Prometeu estivesse alguma vez verdadeiramente encadeado: talvez o estivesse antes e depois da prisão; mas era realmente um espírito de liberdade e um portador da liberdade o que, agrilhoado à montanha, se sentiu mais livre ainda; porque podia consentir ou não no desastre, superá-lo ou não, ser alegre ou não. (…) No fundo é o seguinte: é necessário, ajudando a realizar o homem no que tem de melhor, que a mesma energia que se revelou pela física do mundo da extensão, se revele pelo espírito do mundo do pensamento e domine a primeira vaga de energia, como onda rolando sobre onda mais alto vai. E mais ainda: que pelo momento de infelicidade, o que não poderá nunca suceder no caso da felicidade, entenda o homem como as duas espécies ou os dois aspectos de energia se reúnem em Deus. Só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por aquela piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.»

Agostinho defende a liberdade da sua própria disciplina, numa «espécie de vida militar» e simultaneamente monástica, a que não estranha os votos de pobreza – «do abandono do ter (…) libertando-se da posse», – de celibato – «livrando de que outros o possuam» e «livre também de tratar o outro como se fosse» sua posse – e de obediência – «que livra a pessoa de ser possuída por ela própria e de ter a ideia de que só serve para isto ou para aquilo» (in Conversas Vadias).
E, no entanto, esse pensamento que parece marcado pela fatalidade (a ideia de fatum), de renúncia e sofrimento, surge como rampa de lançamento – atitude – para os altos voos do Espírito Santo: «a pessoa de Deus na qual está o domínio do inesperado; daquilo que parece ser a Liberdade pura e não o destino» (ibidem). Atitude é altitude! E é «nesse abrir-se ao Espírito Santo, ao talvez absolutamente imprevisível, que cada homem encontra o caminho para se cumprir a si mesmo – a única exigência que se lhe faz» (BRANCO, 2006: 93). Também poderemos ver essa atitude como opção de andar à solta ou andar ao Deus dará4, mais uma vez como se queira ou possa, sendo essa afinal (ou em princípio) uma forma de acreditar, como o faziam (e fazem) os povos primais5, na Providência Divina, pondo de lado a previdência humana: «porque não reparamos talvez ainda suficientemente na pressa com que todos nós, homens supostamente religiosos, tratamos de entesourar o que tememos que amanhã pode esquecer à Providência de Deus, da qual, no entanto, continuamos a falar abundantemente: só, porém, a falar» (SILVA, 1990: 69). Nós, os ditos “civilizados”, «estamos tão afastados do natural como do sobrenatural, quando estes deviam ser os pontos centrais da nossa existência: plenamente vivemos no artificial» (ibidem: 69). Uma caminhada liberta ou rumo à libertação passará pelo regresso às nossas origens: «temos de voltar aos povos naturais, como uma etapa necessária para o caminho do sobrenatural, e sem dúvida voltaremos, ou por nossa livre vontade ou, como tantas vezes sucede àqueles a quem Deus mais ama, pela viva e contundente força de golpes exteriores» (ibidem: 70).
É o percorrer/traçar (d)o (nosso) caminho que nos torna fortes, quando nos cumprimos na caminhada… na peregrinação. A demanda é feita de experiências e de vivências, surgindo como uma filosofia operativa e, portanto, poética – no sentido que foi explanado por António Telmo na sua Arte Poética – resultado e resultante de uma mutação interior6 (SINDE, 2005: 15-16). O caminho faz-se caminhando e o caminhar faz o caminho, no concreto e/ou na imaginação7, numa manifesta transitoriedade daquele que transita, mesmo quando tudo indica (parece!) que esse andarilho está parado. Diógenes (séc. IV a.C.), segundo consta, face à questão que lhe foi colocada sobre “se o movimento é real” ter-se-á simplesmente levantado, andado e exclamado “Solvitur ambulando” (está resolvido ao caminhar)! Como facilmente se poderá constatar existem muitas outras questões, problemas e paradoxos cujas respostas se encontrarão ou resultarão no/do caminhar. Uma via é simultaneamente caminhada/caminho, é andança e trajecto… O caminhar e o caminho podem materializar-se no terreno, mas são também metáforas ou alegorias de/da vi(d)a. Por estas e outras razões e emoções, há uma ética no andar e, claro, uma estética. Não basta Andar Bem o “talent de bien faire8 é fundamental Andar em Beleza9. E a Beleza, tal como a Sabedoria, é Amor.

«Amar é fazermo-nos ao mar.»
Agostinho da Silva


Pedro Cuiça, 29 de Junho de 2018







NOTAS
1- Título da biografia de Agostinho da Silva, escrita por António Cândido Franco (Quetzal, 2015), em que, na contracapa, esse Colosso é caracterizado nos seguintes moldes: «prosador de altíssimos dons, narrador inventivo, cronista subtil, biógrafo monumental, pedagogo de largo esforço, monitor de fina manha, professor de sucesso, pensador destemido, poeta bissexto, gramático de muita língua, estóico severo, homem de desleixada túnica, entomologista, tradutor, criador do Centro de Estudos Afro-Orientais, escândalo bíblico, trickster, ogã de terreiro baiano, patriarca de larga tribo, povoador, amante, perrexil, poliglota, sonhador, farsante, polígamo, explicador, joaquimita, gato, galo, sábio, escuteiro, pop-star, colosso, bandeirante, franciscano anormal, homem do tá-tá-tá, aprendiz de valsa, cidadão do mundo, aldeão antigo, monstro, vadio truculento, marau divino, criança eterna, biógrafo de Miguel Ângelo, homem de cinco cabeças e dez instrumentos (…), o optimista, o entusiasta, sem a mais pequena mancha de desânimo no futuro.»
2- «Devagar, que temos pressa» (VICENTE, 2010: 121) ou «apressa-te devagar». Segundo transmissão pessoal de Pedro Teixeira da Mota, a máxima do legendário impressor e humanista Aldus Manutius, hoje ainda proferida e assumida por alguns peregrinos, caminheiros e alpinistas.
3- A VIDA É DIFÍCIL: é a frase com que começa o livro, de M. Scott Peck, O Caminho Menos Percorrido (Sinais de Fogo, 1999). Tal torna-se perfeitamente óbvio, na concepção de Agostinho da Silva, ao tratar-se a vida de uma luta pela santidade – de uma guerra santa – e, portanto, «contra o diabo, sendo este identificado como a fatalidade, isto é, contra aquilo que constitui uma oposição à liberdade» (SINDE, 2013: 72). «Entretanto deve o homem ir trabalhando duplamente: no sentido da sua santificação e no de ajudar a criar as condições que possibilitem a santificação dos outros. A este duplo trabalho poderíamos chamar, seguindo bem de perto a terminologia simbólica de Agostinho da Silva, a circulatura do quadrado. Por quadrado entendamos a terra e por círculo o céu, tal como se tradicionalmente entendem.» (ibidem: 80)
4- «(…) sabendo que muitas vezes Deus dá, tirando.» (SINDE, 2013)
5- Para não utilizar a palavra “primitivos” pela carga pejorativa que, em geral, se lhe associa!
6- A palavra poesia deriva do grego poieín (acção) mas de uma acção que deve partir de uma mutação interior (SINDE, 2005: 15-16).
7- Imaginação enquanto “mundo imaginal”, “nação de imagens”. · «(…) o «mundus imaginalis», não é fantasia ou mentira nascida na mente, mas um mundo tão real como o sensível, intermediário dele para com o mundo inteligível. Os sufis designam-no por Malakut, os cabalistas por Malcuth! (…) Prevendo a sua confusão com a fantasia, costuma-se dar à imaginação o epíteto de criadora ou criatriz. A realidade por ela percebida é objectiva, no sentido de que se alguém a revela, outro nas mesmas condições verá o mesmo. A única diferença para com o mundo sensível, com o que aí é visto e logo contado por distintos observadores, consiste em que, além, a visão fixa um universo movente.» [TELMO, 2015: 35· Malcuth trata-se do primeiro da «série cabalística dos mundos: Malcuth, Yetsirah, Beriah, Aziluth; ou sufi: Nahut, Malakuth, Jabarut, Lahut» (ibidem: 57). · Aquilo que no contexto muito reservado do esoterismo Bahá’i é expresso como a “ontologia dos mundos divinos”: NāsūtMalakūtJabarūtLāhūt e Hāhūt. O termo “Malakūt” surge três vezes no Alcorão mas não as outras palavras que provieram das tradições judaica e cristã através de outras fontes. Originalmente a palavra “Malakūt”, no contexto do Islão, não estava associada à dimensão angélica (malak) mas sim ao conceito de soberania (mamlaka). Na verdade, essa palavra deve ser entendida sob duas perspectivas, por um lado enquanto Manifestação e por outro enquanto “mundo das imagens” (‘ālam al-mithāl), que é o mundo intermediário entre Jabarūt e o mundo humano da mortalidade (Nāsūt): entre os “céus” e a “terra”. No contexto Bahá’i, Malakūt surge como uma dimensão do mundo contingente (‘ālam-i mumkināt), onde as almas residem, e é o desenvolvimento espiritual atingido em Nāsūt que permitirá a essas almas a representação simbólica – poderemos dizer “as imagens” – das suas “funcionalidades” em MalakūtNāsūt e Malakūt não são dois mundos separados mas fazem parte de uma realidade maior que pode ser apelidada de “o mundo da criação” (‘ālam-i khalq) ou “o mundo contingente” (‘ālam-i mumkināt) e ambos são governados por leis semelhantes. Compreender-se-á, a esta luz, a famosa frase de Hermes Trismegisto de um modo muito particular: «O que está em cima é como o que está em baixo». Ou dito de outra forma: o mundo que está em cima é a imagem do mundo que está em baixo, e mais além… Afinal, aquilo que António Telmo vislumbra nos versos de Luís Vaz de Camões é a «profunda solicitação» de «ver o invisível» (ibidem: 58); de, através do natural (da natureza), ver o sobrenatural.
8- “O talento de Bem-fazer”: inscrição que se encontra no túmulo do Infante D. Henrique, o Navegador (1394-1460)…
9- E será a beleza que nos remete para o maravilhamento ou encantamento? · «A definição de Leonardo Coimbra contém o limite de ser uma definição matemática. Se dissermos que a Beleza é a forma íntima da luz manifesta aos sentidos pela transcendência das coisas em que está presente, indicamos aquele misterioso elemento também dominante na Força, enquanto fascínio, e na Sabedoria, enquanto iluminação interior. Referimo-nos à luz. A unidade na variedade é a Beleza porque é uma irradiação.
Vê-se assim, por esta compresença na mesma substância, que a Sabedoria, a Força e a Beleza constituem uma tríade de componentes indissociáveis. Daqui termos dito, há momentos, que a ligação da Beleza à fantasia e ao supérfluo é uma ilusão do espírito. Aparece-nos, pelo contrário, a Beleza como o corpo da Verdade e pressentimos que a forma de uma flor ou de uma gota matinal de orvalho escondem profundidades insondáveis.» [TELMO, 2015: 54]; que o mesmo será dizer altitudes insondáveis – o negrito é de nossa autoria · Noutra “corrente” (que será a mesma sob outra forma?), diz-se igual sob outra expressão: «unidade na diversidade».

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
· BRANCO, João Maria de Freitas. Agostinho da Silva – Um Perfil Filosófico. Sintra: Zéfiro, 2006, pp. 118. ISBN 972-8958-19-6
· BORGES, Paulo. Tempos de Ser Deus – A Espiritualidade Ecuménica de Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora Editora, 2006, pp. 208. ISBN 978-972-780-177-0
· FRANCO, António Cândido Franco. O Estranhíssimo Colosso – Uma Biografia de Agostinho da Silva. Lisboa: Quetzal, 2015, pp. 736. ISBN 978-989-722-186-6
· MEDANHA, Victor. Conversas com Agostinho da Silva. Lisboa: Pergaminho, 1998, 9ª ed., pp. 128. ISBN 972-711-057-6
· SILVA, Agostinho da. As Aproximações. Lisboa: Relógio d’Água, 1990, pp. 132. ISBN 972-708-110-X
· SINDE, Pedro. Sete Sábios Portugueses. Chaves: Tartaruga, 2013, pp. 232. ISBN 978-989-8057-39-6
· SINDE, Pedro. Terra Lúcida. Matosinhos: Publicações Pena Perfeita, 2005, pp. 160. ISBN 972-8925-05-0
· TELMO, António. Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas. Sintra: Zéfiro, 2015, pp. 374. ISBN 978-989-677-129-4.
· VICENTE, António Balcão. O Templário d’El-Rei. Lisboa: Ésquilo, 2010, pp. 430. ISBN 978-989-8092-88-5

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