Breve ensaio sobre a(s) Via(s)…
«Não sou do ortodoxo nem do
heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a
contém no total.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 26)
«Considerando-me paradoxal,
dirigem-me o melhor elogio que eu poderei ter.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 76)
«O mundo tem tantas possibilidades
que até o impossível é possível»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 44)
No dia 13 de Fevereiro do presente ano [2018] passaram 112 anos sobre o nascimento de Agostinho da Silva e, nessa data
especial, não só tive a propensão para reflectir sobre o percurso desse ser invulgar
como o ensejo de escrever sobre três características a ele associadas – a Liberdade,
a Força e a Sabedoria/Beleza – enquanto virtudes essenciais, entre outras, no
palmilhar daquilo que se entenderá por a(s) via(s). Desiderato que conduziu
rápida e, quase diria, inexoravelmente à extrapolação daquilo que se poderá considerar
a orientação a seguir, na enteléquia do movimento, não só por “homens de génio”
mas igualmente por qualquer “comum dos mortais”.
Esse Estranhíssimo
Colosso1 que foi Agostinho, na sua multifacetada
complexidade, surge, antes de mais, como um Homem simples e humilde,
profundamente entusiasmado, culto e convicto… Um poeta à solta, exímio
conhecedor da Idade Antiga, apaixonado pela Idade Média e arauto da Idade Futura
do Espírito Santo. Um pensador que não desdenharia o epiteto de “libertário”,
porque libertador e cultor do exercício do «pensamento libérrimo» (BRANCO, 2006: 69), mas que não seria certamente
circunscrito pelo mesmo. Difícil, se não impossível de “rotular”1,
foi indubitavelmente um paladino da Liberdade, mormente no sentido de «todo
o homem (…) ser aquilo que ele tem de ser: um criador sem nenhuma espécie de
inibição» (Agostinho da Silva in MENDANHA,
1998: 56). E é precisamente essa sua faceta de paladino da Liberdade –
qual cavaleiro andante – que tomamos como ponto de partida do caminhar/caminho(s)
ou do empreender uma ou mais via(gen)s, como se queira ou possa… Lembremos
que Agostinho, tendo sido um reiterado defensor da vadiagem e
da errância – daqueles considerados «errantes, no sentido de que poderiam
andar por aqui e por acolá» (Agostinho da Silva in Conversas
Vadias) –, abordou precisamente a Liberdade num ensaio denominado “Ritmos de Marcha” (SILVA,
1990: 113-117). Titulo promissor, se tivermos em conta a importância da “gestão
do esforço”, na continuidade da demanda, que não deverá olvidar a sábia máxima «Festina
lente»2.
O pensamento de Agostinho da Silva apesar
de se (re)velar sob a forma de uma aparente simplicidade, categórica e
incisiva, oculta uma difícil e contraditória, senão paradoxal, complexidade.
Tal como a vida é difícil3, o seu pensamento não é fácil.
Facto constatável, desde logo, pela sua ascética afirmação da Liberdade «pela
conquista e domínio de si mesmo, através do caminho único que
têm apontado a experiência e os séculos: o caminho da ascese mais
rigorosa e absoluta, da oração contínua e do amor dos homens em Deus e por
Deus» (ibidem: 19).
Um caminho único, porque assente na renúncia comum – saber «ser ascético no
meio da abundância» e preferir «ao poder a santidade» (ibidem: 55)
–, e simultaneamente múltiplo, porque palmilhado por cada um de forma
diferente. Um
modo difícil e pouco usual de entender a Liberdade, nos dias de hoje, tendo em
conta que Agostinho não concebia que «se possa definir o homem como um
animal cuja característica ou cujo último fim seja o de viver feliz»,
embora considerasse que «nele seja essencial o viver alegre» (ibidem, 51).
Nas palavras de Agostinho da Silva (ibidem: 51-52):
«Os felizes passam na vida como
viajantes de trem que levassem toda a viagem dormindo; só gozam o trajecto os
que se mantêm bem despertos para entender as duas coisas fundamentais do mundo:
a implacabilidade, a cegueira, a inflexibilidade das leis mecânicas, que são
bem as representantes do Fado, e cuja grandeza verdadeira só se pode sentir no
desastre; é quando a catástrofe chega que a fatalidade se mede em tudo o que
tem de divino, e foi pena que não fosse esta a lição essencial que tivéssemos
tirado da tragédia grega; como pena foi que só tivéssemos olhado o fatalismo
dos árabes pelo seu lado superficial.
Por outra parte, é igualmente na desgraça
que se mede a outra grande força do mundo, a da liberdade do espírito, que
permite julgar o valor moral do desastre e permite superar, pelo seu
aproveitamento, o toque do fatal; não creio que Prometeu estivesse alguma vez
verdadeiramente encadeado: talvez o estivesse antes e depois da prisão; mas era
realmente um espírito de liberdade e um portador da liberdade o que, agrilhoado
à montanha, se sentiu mais livre ainda; porque podia consentir ou não no
desastre, superá-lo ou não, ser alegre ou não. (…) No fundo é o seguinte: é
necessário, ajudando a realizar o homem no que tem de melhor, que a mesma
energia que se revelou pela física do mundo da extensão, se revele pelo
espírito do mundo do pensamento e domine a primeira vaga de energia, como onda
rolando sobre onda mais alto vai. E mais ainda: que pelo momento de
infelicidade, o que não poderá nunca suceder no caso da felicidade, entenda o
homem como as duas espécies ou os dois aspectos de energia se reúnem em Deus.
Só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por
aquela piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se
deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça e a sua
superação.»
Agostinho defende a liberdade da
sua própria disciplina, numa «espécie de vida militar» e
simultaneamente monástica, a que não estranha os votos de pobreza – «do abandono do ter (…) libertando-se da posse», –
de celibato – «livrando de que
outros o possuam» e «livre também de tratar o outro como se fosse»
sua posse – e de obediência – «que
livra a pessoa de ser possuída por ela própria e de ter a ideia de que só serve
para isto ou para aquilo» (in Conversas Vadias).
E, no entanto, esse pensamento que parece
marcado pela fatalidade (a ideia de fatum), de renúncia e
sofrimento, surge como rampa de lançamento – atitude – para os altos voos do
Espírito Santo: «a pessoa de Deus na qual está o domínio do inesperado;
daquilo que parece ser a Liberdade pura e não o destino» (ibidem).
Atitude é altitude! E é «nesse abrir-se ao Espírito Santo, ao talvez
absolutamente imprevisível, que cada homem encontra o caminho para se
cumprir a si mesmo – a única exigência que se lhe faz»
(BRANCO, 2006: 93).
Também poderemos ver essa atitude como opção de andar à solta ou andar
ao Deus dará4, mais
uma vez como se queira ou possa, sendo essa afinal (ou em princípio) uma forma
de acreditar, como o faziam (e fazem) os povos primais5, na
Providência Divina, pondo de lado a previdência humana: «porque não
reparamos talvez ainda suficientemente na pressa com que todos nós, homens
supostamente religiosos, tratamos de entesourar o que tememos que amanhã pode
esquecer à Providência de Deus, da qual, no entanto, continuamos a falar
abundantemente: só, porém, a falar» (SILVA, 1990: 69). Nós, os ditos “civilizados”, «estamos
tão afastados do natural como do sobrenatural, quando estes deviam ser os
pontos centrais da nossa existência: plenamente vivemos no artificial» (ibidem: 69).
Uma caminhada liberta ou rumo à libertação passará pelo regresso às nossas
origens: «temos de voltar aos povos naturais, como uma etapa necessária para
o caminho do sobrenatural, e sem dúvida voltaremos, ou por nossa livre vontade
ou, como tantas vezes sucede àqueles a quem Deus mais ama, pela viva e
contundente força de golpes exteriores» (ibidem: 70).
É o percorrer/traçar (d)o (nosso) caminho que nos
torna fortes, quando nos cumprimos na caminhada… na peregrinação. A
demanda é feita de experiências e de vivências, surgindo como uma filosofia
operativa e, portanto, poética – no sentido que
foi explanado por António Telmo na sua Arte
Poética – resultado e resultante de uma mutação interior6 (SINDE,
2005: 15-16). O caminho faz-se caminhando e o caminhar faz o
caminho, no concreto e/ou na imaginação7, numa manifesta
transitoriedade daquele que transita, mesmo quando tudo indica (parece!) que
esse andarilho está parado. Diógenes (séc. IV a.C.), segundo consta,
face à questão que lhe foi colocada sobre “se o movimento é real” ter-se-á
simplesmente levantado, andado e exclamado “Solvitur ambulando”
(está resolvido ao caminhar)! Como facilmente se poderá constatar existem
muitas outras questões, problemas e paradoxos cujas respostas se encontrarão ou
resultarão no/do caminhar. Uma via é simultaneamente caminhada/caminho, é
andança e trajecto… O caminhar e o caminho podem materializar-se no terreno,
mas são também metáforas ou alegorias de/da vi(d)a. Por estas e outras razões e
emoções, há uma ética no andar e, claro, uma estética. Não basta Andar Bem – o “talent
de bien faire”8 – é fundamental Andar
em Beleza9. E a Beleza, tal como a Sabedoria, é Amor.
«Amar é fazermo-nos ao mar.»
Agostinho da Silva
Pedro
Cuiça, 29 de Junho de 2018
NOTAS
1-
Título da biografia de Agostinho da Silva, escrita por António Cândido Franco
(Quetzal, 2015), em que, na contracapa, esse Colosso é
caracterizado nos seguintes moldes: «prosador
de altíssimos dons, narrador inventivo, cronista subtil, biógrafo monumental,
pedagogo de largo esforço, monitor de fina manha, professor de sucesso,
pensador destemido, poeta bissexto, gramático de muita língua, estóico severo,
homem de desleixada túnica, entomologista, tradutor, criador do Centro de
Estudos Afro-Orientais, escândalo bíblico, trickster, ogã de terreiro baiano, patriarca de larga tribo,
povoador, amante, perrexil, poliglota, sonhador, farsante, polígamo,
explicador, joaquimita, gato, galo, sábio, escuteiro, pop-star, colosso, bandeirante, franciscano anormal, homem do
tá-tá-tá, aprendiz de valsa, cidadão do mundo, aldeão antigo, monstro, vadio
truculento, marau divino, criança eterna, biógrafo de Miguel Ângelo, homem de
cinco cabeças e dez instrumentos (…), o optimista, o entusiasta, sem a mais
pequena mancha de desânimo no futuro.»
2- «Devagar, que temos pressa» (VICENTE, 2010: 121) ou «apressa-te devagar». Segundo
transmissão pessoal de Pedro Teixeira da Mota, a máxima do legendário impressor
e humanista Aldus Manutius, hoje ainda proferida e assumida por alguns peregrinos,
caminheiros e alpinistas.
3-
A VIDA É DIFÍCIL: é a frase com que começa o livro, de M. Scott Peck, O
Caminho Menos Percorrido (Sinais de Fogo, 1999). Tal torna-se
perfeitamente óbvio, na concepção de Agostinho da Silva, ao tratar-se a vida de
uma luta pela santidade – de uma guerra santa – e, portanto, «contra o diabo, sendo este identificado como
a fatalidade, isto é, contra aquilo que constitui uma oposição à liberdade»
(SINDE, 2013: 72).
«Entretanto deve o homem ir trabalhando
duplamente: no sentido da sua santificação e no de ajudar a criar as condições
que possibilitem a santificação dos outros. A este duplo trabalho poderíamos
chamar, seguindo bem de perto a terminologia simbólica de Agostinho da Silva, a
circulatura do quadrado. Por quadrado
entendamos a terra e por círculo o céu, tal como se tradicionalmente entendem.»
(ibidem: 80)
4-
«(…) sabendo que muitas vezes Deus dá,
tirando.» (SINDE, 2013)
5-
Para não utilizar a palavra “primitivos” pela carga pejorativa que, em geral,
se lhe associa!
6-
A palavra poesia deriva
do grego poieín (acção) mas de uma acção que deve
partir de uma mutação interior (SINDE, 2005: 15-16).
7- Imaginação
enquanto “mundo imaginal”, “nação de imagens”. · «(…) o «mundus imaginalis», não
é fantasia ou mentira nascida na mente, mas um mundo tão real como o sensível,
intermediário dele para com o mundo inteligível. Os sufis designam-no por
Malakut, os cabalistas por Malcuth! (…) Prevendo a sua confusão com a fantasia,
costuma-se dar à imaginação o epíteto de criadora ou criatriz.
A realidade por ela percebida é objectiva, no sentido de que se alguém a
revela, outro nas mesmas condições verá o mesmo. A única diferença para com o
mundo sensível, com o que aí é visto e logo contado por distintos observadores,
consiste em que, além, a visão fixa um universo movente.»
[TELMO, 2015: 35] · Malcuth
trata-se do primeiro da «série cabalística dos mundos: Malcuth, Yetsirah,
Beriah, Aziluth; ou sufi: Nahut, Malakuth, Jabarut, Lahut» (ibidem: 57). · Aquilo
que no contexto muito reservado do esoterismo Bahá’i é expresso como a
“ontologia dos mundos divinos”: Nāsūt, Malakūt, Jabarūt, Lāhūt e Hāhūt.
O termo “Malakūt” surge três vezes no Alcorão mas não as outras palavras
que provieram das tradições judaica e cristã através de outras fontes.
Originalmente a palavra “Malakūt”, no contexto do Islão, não estava
associada à dimensão angélica (malak) mas sim ao conceito de soberania (mamlaka).
Na verdade, essa palavra deve ser entendida sob duas perspectivas, por um lado
enquanto Manifestação e por outro enquanto “mundo das imagens” (‘ālam
al-mithāl), que é o mundo intermediário entre Jabarūt e o
mundo humano da mortalidade (Nāsūt): entre os “céus” e a “terra”. No
contexto Bahá’i, Malakūt surge como uma dimensão do mundo
contingente (‘ālam-i mumkināt), onde as almas residem, e é o
desenvolvimento espiritual atingido em Nāsūt que permitirá a
essas almas a representação simbólica – poderemos dizer “as imagens” – das suas
“funcionalidades” em Malakūt. Nāsūt e Malakūt não
são dois mundos separados mas fazem parte de uma realidade maior que pode ser
apelidada de “o mundo da criação” (‘ālam-i khalq) ou “o mundo
contingente” (‘ālam-i mumkināt) e ambos são governados por leis
semelhantes. Compreender-se-á, a esta luz, a famosa frase de Hermes Trismegisto
de um modo muito particular: «O que está em cima é como o que está em baixo».
Ou dito de outra forma: o mundo que está em cima é a imagem do mundo que está
em baixo, e mais além… Afinal, aquilo que António Telmo vislumbra nos versos de
Luís Vaz de Camões é a «profunda solicitação» de «ver o invisível»
(ibidem:
58); de, através do natural (da natureza), ver o sobrenatural.
8- “O talento de Bem-fazer”: inscrição que se
encontra no túmulo do Infante D. Henrique, o Navegador (1394-1460)…
9- E será a beleza que nos remete para o
maravilhamento ou encantamento? · «A
definição de Leonardo Coimbra contém o limite de ser uma definição matemática.
Se dissermos que a Beleza é a forma íntima da luz manifesta aos sentidos pela
transcendência das coisas em que está presente, indicamos aquele misterioso
elemento também dominante na Força, enquanto fascínio, e na Sabedoria, enquanto
iluminação interior. Referimo-nos à luz. A unidade na variedade é
a Beleza porque é uma irradiação.
Vê-se assim, por esta compresença na mesma substância,
que a Sabedoria, a Força e a Beleza constituem uma tríade de componentes
indissociáveis. Daqui termos dito, há momentos, que a ligação da Beleza à
fantasia e ao supérfluo é uma ilusão do espírito. Aparece-nos, pelo contrário,
a Beleza como o corpo da Verdade e pressentimos que a forma de uma flor ou de
uma gota matinal de orvalho escondem profundidades insondáveis.» [TELMO,
2015: 54]; que o mesmo será dizer altitudes insondáveis – o negrito é de
nossa autoria ·
Noutra “corrente” (que será a mesma sob outra forma?), diz-se igual sob outra
expressão: «unidade na diversidade».
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
· BRANCO, João Maria de
Freitas. Agostinho da Silva – Um Perfil Filosófico. Sintra:
Zéfiro, 2006, pp. 118. ISBN 972-8958-19-6
· BORGES, Paulo. Tempos de Ser Deus – A Espiritualidade Ecuménica de
Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora Editora, 2006, pp. 208. ISBN
978-972-780-177-0
· FRANCO, António Cândido Franco. O Estranhíssimo Colosso
– Uma Biografia de Agostinho da Silva. Lisboa: Quetzal, 2015, pp. 736.
ISBN 978-989-722-186-6
· MEDANHA, Victor. Conversas com
Agostinho da Silva. Lisboa: Pergaminho, 1998, 9ª ed., pp. 128. ISBN
972-711-057-6
· SILVA, Agostinho da. As
Aproximações. Lisboa: Relógio d’Água, 1990, pp. 132. ISBN 972-708-110-X
· SINDE, Pedro. Sete
Sábios Portugueses. Chaves: Tartaruga, 2013, pp. 232. ISBN 978-989-8057-39-6
· SINDE, Pedro. Terra
Lúcida. Matosinhos: Publicações Pena Perfeita, 2005, pp. 160. ISBN
972-8925-05-0
· TELMO, António. Luís
de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas. Sintra: Zéfiro, 2015, pp. 374.
ISBN 978-989-677-129-4.
· VICENTE,
António Balcão. O Templário d’El-Rei. Lisboa: Ésquilo, 2010,
pp. 430. ISBN 978-989-8092-88-5
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