Para andar entre os mundos por vezes é preciso voar...
«Os livros sobre pessoas que se refugiam na natureza para escaparem à dor e
ao sofrimento faziam parte de uma história muito mais antiga, tão antiga que a
sua forma é tão inconsciente e invisível como respirar. Quando era estudante e
queimava as pestanas nos primeiros anos da faculdade, li um longo e belo poema
do século XIII, intitulado Sir Orfeo. É de autor anónimo, e eu
nunca mais me lembrei da sua existência. (…)
Sir Orfeo é uma nova versão do mito grego do Orfeu e do mundo inferior através
de canções celtas tradicionais acerca do outro mundo, o País das Fadas. No mito
celta, esse outro mundo não é um mundo das profundezas; está apenas a um passo
do nosso. As coisas podem existir nos dois lugares ao mesmo tempo, e podem ser
levadas de um para o outro. No poema, Heridice dorme num pomar debaixo de uma
árvore de fruto encantada e sonha que, no dia seguinte, vai ser raptada pelo
Rei das Fadas. Aterrorizada, conta o sonho ao marido, o rei. Orfeo rodei-a de
cavaleiros, mas estes não a conseguem proteger daquela ameaça do outro mundo, e
ela desaparece no ar.
Abatido pela dor, Orfeo abdica da coroa e foge para a floresta. Durante dez
anos, vive uma existência solitária e selvagem, escavando raízes, comendo
folhas e bagas, e tocando a sua harpa para encantar os animais à sua volta. A
barba cresce-lhe longa e emaranhada. Vê os grandes grupos de caçadores do Rei
das Fadas atravessarem a floresta. Não pode segui-los. Mas, um dia, sessenta senhoras
a cavalo com falcões no punho passam por ele, à caça de corvos-marinhos,
patos-reais e garças-reais. Enquanto observa os falcões a descerem em voo
picado sobre as suas presas, o mundo muda. Ele ri, deliciado, recordando o seu
amor pelo desporto – «Por minha fé!», disse ele, «que bela
recreação aquela» –, dirige-se às mulheres e vê que uma delas é a sua
esposa. Penetrou naquele outro mundo, e agora pode segui-las no seu caminho de
volta até ao castelo do Rei das Fadas, um palácio de pessoas que se pensava
estarem mortas, mas não estão. E é lá que ele toca harpa para o rei e o
convence a libertar a sua mulher. Mas foi o voo das aves de rapina e as mortes
que trouxe que o levaram a entrar nesse outro mundo e permitiram que
encontrasse a esposa, que havia perdido. E esta capacidade que têm as aves de
presa de atravessar fronteiras que os humanos não podem transpor é uma coisa
muito mais antiga do que o mito celta, mais antiga do que Orfeu, pois, nas
antigas tradições xamânicas por toda a Eurásia, as aves de rapina eram
consideradas mensageiras entre este mundo e o outro.»
[MACDONALD, 2015: 259-260]
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
MACDONALD, Helen. A
de Açor. Alfragide: Lua de Papel, 2015, pp. 344. ISBN 978-989-23-3394-6
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