domingo, 16 de junho de 2019

Fome de Andar

...ou andar com fome?

Hoje que é o último dia da 89ª Feira do Livro de Lisboa (16 de Junho) e na sequência da publicação de um post no dia da sua inauguração (29 de Maio) – (An)dar na Bibliofagia – e de dois posts referentes a livros comprados nas incursões cirúrgicas a que fizemos alusão – a-LUZ-cin-ação e D’a natural prática –, encerramos este ciclo de publicações com alguns apontamentos referentes a um conjunto de obras de Henry Miller. Desta feita, O Tempo dos Assassinos, da editora Antígona (2016) – a que retornámos, passados mais de 30 anos, após a primeira leitura sob a chancela da Hiena Editora (1985) –, Reflexões sobre a morte de Mishima (&etc, 1983) e Viragem aos Oitenta (Capra Press e VS – Vasco Santos Editor, 2019).

© Arthur Rimbaud (1854-1891)


Por três vezes, durante a adolescência, Rimbaud chega a Paris e a Bruxelas; por duas vezes a Londres. De Estugarda, depois de ter aprendido alemão, parte a pé, através de Vurtemberga e da Suíça, em direcção à Itália. De Milão avança para as Cíclades, via Brindisi, afinal para apanhar uma insolação e ser remetido para Marselha, via Livorno. Percorre a Escandinávia e a Dinamarca, integrado numa feira ambulante. Passa por Hamburgo, Amsterdão e Roterdão, parte para Java, alistado no exército holandês, do qual deserta rapidamente. Ao passar por Santa Helena, a bordo de um navio inglês que se recusa a atracar, salta borda fora, tendo no entanto sido apanhado e trazido para bordo antes de ter conseguido chegar à ilha. De Viena sai escoltado pela polícia até à fronteira bávara, por vagabundagem; daí, acompanhado por outra escolta, é trazido para a fronteira da Lorena. Nestas viagens e surtidas anda sempre sem dinheiro, sempre a pé, e quase sempre de estomâgo vazio. Em Civitavecchia é posto em terra, com uma febre gástrica provocada pelas paredes do estomâgo devido à fricção das costelas contra o abdómen. Causa última: ter andado em excesso. Na Abissínia cavalgou em excesso. Tudo em excesso. Esforça-se desumanamente. O objectivo está sempre mais além.
Entendo tão bem esta obsessão! Se me ponho a rever a minha vida na América, parece-me que, de facto, percorri milhares e milhares de quilómetros de estomâgo vazio. Sempre à procura de umas moedas, de uma côdea de pão, de um trabalho, de sítio para onde pudesse atirar com o corpo. E sempre à procura de um rosto amável!
Às vezes, por muita fome que tivesse, era capaz de ir para a estrada, fazer sinal a um carro e pedir ao condutor que me deixasse onde lhe apetecesse, só para poder mudar de cenário. Conheço milhares de restaurantes em Nova Iorque, não como cliente, mas por ter passado horas em pé, à porta, a olhar esfomeado para clientes sentados à mesa. Ainda consigo recordar-me do cheiro de certos carros de venda de cachorros em determinadas esquinas. Consigo ver ainda os cozinheiros vestidos de branco, por detrás das vitrinas, a fritar waffles e farturas nas frigideiras. Por vezes acredito que nasci com fome. E à fome estão associados o andar a pé, o vagabundear, o andar à procura, de um lado para o outro, febrilmente e sem saber o quê. (…) Caminhei vezes sem conta desde o centro de Brooklyn até ao coração de Manhattan, debaixo das mais variadas condições atmosféricas e com os mais variados graus de fome. Chegou a acontecer que, perfeitamente exausto, incapaz de dar mais um passo, fui obrigado a dar meia volta e voltar para trás. Não me custa nada compreender como é possível treinar homens para fazerem marchas forçadas de extensão fenomenal de barriga vazia.
Mas uma coisa é caminhar pelas ruas da nossa cidade natal por entre rostos hostis, e outra, muito diferente, é vaguear pelas estradas dos estados vizinhos. Na nossa terra a hostilidade resume-se à indiferença; mas numa cidade que nos é estranha, ou nos espaços abertos entre duas povoações, é sempre qualquer coisa claramente hostil que nos vem receber. À nossa espera estão cães selvagens, caçadeiras, sheriffs e vigilantes de todas as espécies. Se somos estranhos numa dada região, nem nos atrevemos a deitar no chão frio. Caminhamos, caminhamos, caminhamos sempre. Sente-se nas costas o cano gelado de um revólver que nos manda andar mais depressa, mais depressa, mais depressa. E não é no estrangeiro, é no nosso próprio país que isto acontece. Os japoneses serão cruéis e os hunos serão bárbaros; mas que demónios são estes que são idênticos a nós, que falam como nós, que vestem a mesma roupa, comem a mesma comida e que nos perseguem como cães? Não serão estes os piores inimigos que um homem pode ter?
[MILLER, 2016: 34-36]

© Henry Miller (1891-1980)

SE AOS OITENTA você não é aleijado ou inválido, se se mantém saudável, se ainda aprecia um bom passeio [a pé], uma boa refeição (com todos os requintes), se consegue dormir sem antes tomar um comprimido, se pássaros e flores, as montanhas e o mar ainda o inspiram, você é um indivíduo muito afortunado e devia ajoelhar-se de manhã e à noite e agradecer ao bom Senhor o seu poder conservador.
Se é jovem em anos mas já cansado em espírito, já a caminho de se transformar num autómato, pode fazer-lhe bem dizer ao seu chefe – entredentes, claro – «Vai-te foder, Jack! Tu não és o meu dono».
[MILLER, 2019: 9-10]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MILLER, Henry. Viragem aos Oitenta. Lisboa: Capra Press e VS – Vasco Santos Editor, 2019, pp. 48. ISBN 978-989-99811-6-4
MILLER, Henry. O Tempo dos Assassinos – Um estudo sobre Rimbaud. Lisboa: Antígona, 2016, pp. 160. ISBN 978-972-608-283-5
MILLER, Henry. O Tempo dos Assassinos. Lisboa: Hiena Editora, 1985, pp. 128.
MILLER, Henry. Reflexões sobre a morte de Mishima. Lisboa; &etc, 1983, pp. 60.






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