quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Paranóia deambulatória

               Librairie J. N. Santon, Passage Verdeau (Paris) Ó Pedro Cuiça (Agosto de 2015)

Caminhar com o estômago vazio, caminhar com o estômago cheio, caminhar para fazer a digestão, caminhar à procura de comida, caminhar porque é a única distracção que a bolsa permite, como teve de concluir Balzac quando veio para Paris. Caminhar para abandonar o espectro. Caminhar em vez de chorar. Caminhar na esperança vã de encontrar um rosto amigo. Caminhar, caminhar, caminhar… Mas para quê continuar? Vamos arrumar o caso com um rótulo – «paranóia deambulatória».
Henry MILLER – Um Diabo no Paraíso; Lisboa: Livros do Brasil, p. 14

  Um caso de bibliofagia - Librairie Farfouille, Passage Verdeau (Paris) Ó Pedro Cuiça (Agosto de 2015)

Um simples passeio à volta de Paris-Mountrouge, Gentilly, Kremlim-Bicêtre, Ivry – era o suficiente para me desequilibrar para todo o resto do dia. Eu gostava de sentir-me desequilibrado, de perder a consciência, de me desorientar assim de manhã cedo.
(As caminhadas a que me refiro eram «passeios higiénicos» e dava-as antes do almoço. O meu espírito ficava livre e vazio, e eu preparava-me física e intelectualmente para longos trabalhos, agarrado à máquina de escrever). Seguindo pela Rue de la Tombe-Issoire, alcançava os boulevards limítrofes e depois dirigia-me para os arrabaldes e deixava os meus pés levarem-me para onde quisessem. Instintivamente, ao regressar, encaminhava-me sempre para a Place de Rungis, que misteriosamente se ligara a certas fases do filme L’Âge d’Or, e particularmente com o próprio Luis Buñuel. Aqueles nomes de rias extravagantes, aquela atmosfera irreal, a variedade de gamins, de miúdos e de monstros que pareciam vir de outro mundo, eram para mim uma vizinhança extraordinária e sedutora. Sentava-me muitas vezes num banco público, fechava os olhos durante um certo tempo, para desaparecer da superfície. Depois, abria-os de repente para observar o que se passava à minha volta com o olhar distante dos sonâmbolos. Ante os meus olhos espantados deslizavam cabras da banlieue, pranchas de navio, cintos de segurança, vigas de aço, passerelles e sautrelles, juntamente com aves degoladas, armações de veado, velhas máquinas de costura, ícones a chorar e toda uma sucessão de fenómenos inacreditáveis. Não se tratava de um bairro, mas sim de um vector, um vector muito especial, criado inteiramente para meu benefício artístico, criado expressamente para envolver num enredo emocional. Enquanto subia pela Rue de la Fontaine à Mulard, lutava freneticamente para deter o meu delírio, lutava para dominar e fixar no meu espírito (pelo menos até ao pequeno almoço) três imagens absolutamente dispares, que, se conseguisse ligar convenientemente, me permitiriam descobrir uma brecha através de uma passagem difícil (do meu livro) em que não pudera penetrar no dia anterior. A Rue Brillat-Saverin, que atravessa como uma cobra a Place de Rungis, sugere os trabalhos de Eliphas Levi, a Rue Butte aux Cailles (mais adiante) evoca os Passos da Cruz; na Rue Félicien Ropes (num outro ângulo) ouvia os sinos tocar e o bater de asas de pombos. Quando atravessava um momento de depressão, o que era frequente, todas estas associações, deformações e interpretações se tornavam ainda mais violentamente quixotescas. Nesses dias, achava natural receber, no correio da manhã, um segundo ou terceiro exemplar de I Ching, um álbum de Seriabine, um pequeno livro sobre a vida de James Ensor ou um tratado de Pico della Mirandola. Ao lado da secretária, como uma recordação de festas recentes, havia sempre garrafas de vinho cuidadosamente arrumadas: Nuits Saint-Georges, Gevrey-Chambertin, Clos-Veugeot, Vosne Romanée, Messault, Traminer, Château Haut-Brion, Chambolle-Muigny, Montrachet, Beaune, Baeujolais, Anjou e Vouvray, esse vin de prédilection de Balzac. Velhas amigas, exploradas até à última gota. Algumas ainda conservam um ligeiro aroma.
Pequeno almoço chez moi. Café forte e leite quente, dois ou três deliciosos croissants quentes com manteiga e um pouco de compota. E, com o pequeno almoço, um golo de Segóvia. Um imperador não arranjaria melhor.
Dei um pequeno arroto, palitei os dentes, tamburilei com os dedos, olhei à minha volta (como para ver se tudo estava em ordem!), fechei a porta e agarrei-me à máquina de escrever. Pronto a partir. O cérebro preparado para trabalhar.
Henry MILLER – Um Diabo no Paraíso; Lisboa: Livros do Brasil, pp. 26-28

               Café Wepler, Praça Clichy (Paris) Ó Pedro Cuiça (Agosto de 2015)

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