quarta-feira, 12 de junho de 2019

D'a natural prática

© Algures na Net

Na sequência do post que publicámos acerca da 89ª Feira do Livro de Lisboa e do comentário sobre um dos livros adquiridos no nosso primeiro raid cirúrgico a esse evento – Alucinar o Estrume, de Júlio Henriques –, é chegada a altura de levantarmos um pouco do véu de outra extraordinária obra da mesma profícua colheita: A Prática da Natureza Selvagem (Antígona, 2018), de Gary Snyder. 
Figura grada da geração beat, Snyder ficou imortalizado, tal como Allen Ginsberg e Jack Kerouac, em Os Vagabundos do Dharma (escrito por este último). Gary Snyder é um activista da ecologia profunda, escritor e tradutor, poeta e montanhista, doutorado em antropologia e geólogo amador, estudou línguas orientais e budismo zen (no Japão e na Índia, onde residiu), entre outros inúmeros e inusitados predicados. A Prática da Natureza Selvagem trata-se de um “hinário”, deste ímpar mestre da natureza primal, da qual destacamos algumas alusões à prática.





«As montanhas azuis estão sempre a caminhar.»
Gary Snyder (2018: 131)

«Se duvidas de que as montanhas caminham, desconheces o teu próprio caminhar.»
Gary Snyder (2018: 138)

«(…) uma montanha pratica sempre em qualquer lugar.»
Gary Snyder (2018: 141)


(…)
Um outro aspecto era o da espiritualidade. A minha via pessoal é uma espécie de budismo antigo, que permanece ligado às raízes animistas e xamânicas. O respeito por todos os seres vivos é um elemento basilar dessa tradição. Tentei ensinar outras pessoas a meditar e a penetrar nas áreas selvagens da mente. Como sugiro num destes ensaios, a própria linguagem pode ser encarada como um sistema selvagem.
Um termo-chave é «prática», que significa um esforço intencional para nos sintonizarmos melhor com nós próprios e com o modo como o mundo é realmente. «O mundo», com a excepção de uma minúscula intervenção humana, é fundamentalmente um lugar selvagem. É aquele lado do nosso ser que dirige a respiração e a digestão, e que quando observado e apreciado constitui uma fonte de profunda inteligência. Os ensinamentos do budismo incidem sobretudo sobre a prática, e muito pouco sobre a teoria – embora esta seja tão cativante que, ao longo da história, levou a que muita gente se desencaminhasse um pouco, deliciosamente.
A Prática da Natureza Selvagem sugere que nos empenhemos em algo mais do que a virtude ambientalista, a perspicácia política ou um activismo útil e necessário. Temos de nos enraizar na escuridão do nosso eu mais profundo. Uma recolha de ensaios posterior, A Place in Space, propõe que boa parte desse enraizamento ocorre em comunidades que existem, quer o saibamos quer não, dentro das «nações naturais» formadas por cadeias de montanhas, cursos de água, planícies e pântanos.
(…) Algo que não víamos talvez com tanta clareza era que a realização pessoal, inclusive a iluminação, é outro aspecto do nosso lado selvagem – uma ligação do selvagem dentro de nós com os processos (selvagens) do universo.
[SNYDER, 2018: 8-9]

A prática no terreno, em «campo aberto», é o mais importante. Caminhar representa a grande aventura, a primeira meditação, um exercício de robustez e de alma essenciais para a humanidade. Caminhar é o exacto equilíbrio de espírito e humildade. Caminhando ao ar livre, percebemos onde existe alimento. E há tantos relatos directos e verídicos que provam que «o teu rabo é a refeição de alguém» – o que é uma forma brusca de dizer interdependência, interconexão, «ecologia», ao nível onde conta, e também algo que nos ensina a estarmos atentos e preparados. Há uma instrução extraordinária acerca das plantas e animais e seus costumes, uma instrução empírica e irrepreensível, que nunca os reduz a objectos ou mercadorias.
[SNYDER, 2018: 30]

Há inúmeras maneiras de caminhar – desde atravessar em linha recta o deserto a serpentear através de um matagal. Descer cristas rochosas e escarpas abruptas é em si mesmo uma especialidade. É uma dança irregular, de passos cambiantes, sobre lajes e cascalho. A respiração e os olhos seguem continuamente esse ritmo desigual, que nunca é regular nem compassado, mas flectido – com pequenos saltos, desvios, escolhendo sempre o lugar à vista para firmar o pé na rocha, continuar, avançando em ziguezague e de forma inteiramente intencional. O olho alerta fixado em frente, escolhendo o próximo apoio de pé, sem nunca esquecer o presente passo. O corpo-mente está de tal modo unido a este mundo difícil que executa estes movimentos sem esforço, desde que tenha alguma prática. A montanha acompanha a montanha.
[SNYDER, 2018: 151]

Experimentei pela primeira vez um desses picos distantes aos quinze anos, quando subi o monte Santa Helena. Acordando no limite florestal às três da manhã, e levantando o acampamento para poder estar no gelo do glaciar às seis; assistindo ao róseo amanhecer a dois mil e setecentos metros de altitude, de pé numa ladeira gelada, com o gelo a estalar sobre os pitões* das botas de neve – eis alguns dos prazeres esotéricos do montanhismo. Estar imerso em gelo e rocha e frio e espaço superior é submeter-se a uma fantasmagórica, rigorosa iniciação, a uma transformação. Estar acima de todas as nuvens com apenas mais algumas montanhas altas, também ao sol, com o mundo humano ainda adormecido sob a sua cinzenta manta de nuvens aurorais, constitui um dos primeiros passos rumo àquilo a que Aldo Leopold chama «pensar como uma montanha». Nos anos subsequentes, escalei a maior parte dos cumes do Noroeste – monte Hood, o monte Baker, o monte Rainier, o monte Adams, o monte Stuart, e outros.
[SNYDER, 2018: 157]



NOTA Pedestris
*A tradução correcta é “crampões”: dispositivos providos de picos metálicos (geralmente 12 pontas) que se colocam nas botas de montanha para possibilitar a progressão em neve dura, gelo e/ou terreno misto.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SNYDER, Gary. A Prática da Natureza Selvagem. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2018, pp. 256. ISBN 978-972-608-326-9

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