© Algures na Net
Na sequência do post que publicámos
acerca da 89ª Feira do Livro de Lisboa e do comentário sobre um dos livros
adquiridos no nosso primeiro raid cirúrgico a esse evento – Alucinar o Estrume, de Júlio Henriques –, é chegada a altura de levantarmos um
pouco do véu de outra extraordinária obra da mesma profícua colheita: A
Prática da Natureza Selvagem (Antígona, 2018), de Gary Snyder.
Figura grada da geração beat,
Snyder ficou imortalizado, tal como Allen Ginsberg e Jack Kerouac, em Os
Vagabundos do Dharma (escrito por este último). Gary Snyder é um activista da ecologia
profunda, escritor e tradutor, poeta e montanhista, doutorado em antropologia e
geólogo amador, estudou línguas orientais e budismo zen (no Japão e na Índia, onde
residiu), entre outros inúmeros e inusitados predicados. A Prática da
Natureza Selvagem trata-se de um “hinário”, deste ímpar mestre da
natureza primal, da qual destacamos algumas alusões à prática.
«As montanhas azuis estão sempre a caminhar.»
Gary Snyder (2018: 131)
«Se duvidas de que as montanhas caminham, desconheces o teu
próprio caminhar.»
Gary Snyder (2018: 138)
«(…) uma montanha pratica sempre em qualquer lugar.»
Gary Snyder (2018: 141)
(…)
Um outro aspecto era o da espiritualidade. A minha via pessoal é
uma espécie de budismo antigo, que permanece ligado às raízes animistas e
xamânicas. O respeito por todos os seres vivos é um elemento basilar dessa
tradição. Tentei ensinar outras pessoas a meditar e a penetrar nas áreas
selvagens da mente. Como sugiro num destes ensaios, a própria linguagem pode
ser encarada como um sistema selvagem.
Um termo-chave é «prática», que significa um esforço
intencional para nos sintonizarmos melhor com nós próprios e com o modo como o
mundo é realmente. «O mundo», com a excepção de uma minúscula intervenção
humana, é fundamentalmente um lugar selvagem. É aquele lado do nosso ser que
dirige a respiração e a digestão, e que quando observado e apreciado constitui
uma fonte de profunda inteligência. Os ensinamentos do budismo incidem
sobretudo sobre a prática, e muito pouco sobre a teoria – embora esta seja tão
cativante que, ao longo da história, levou a que muita gente se desencaminhasse
um pouco, deliciosamente.
A Prática da Natureza Selvagem sugere que nos
empenhemos em algo mais do que a virtude ambientalista, a perspicácia política
ou um activismo útil e necessário. Temos de nos enraizar na escuridão do nosso
eu mais profundo. Uma recolha de ensaios posterior, A Place in Space, propõe
que boa parte desse enraizamento ocorre em comunidades que existem, quer o
saibamos quer não, dentro das «nações naturais» formadas por cadeias de
montanhas, cursos de água, planícies e pântanos.
(…) Algo que não víamos talvez com tanta clareza era que a
realização pessoal, inclusive a iluminação, é outro aspecto do nosso lado
selvagem – uma ligação do selvagem dentro de nós com os processos (selvagens)
do universo.
[SNYDER, 2018: 8-9]
A prática no terreno, em «campo aberto», é o mais
importante. Caminhar representa a grande aventura, a primeira meditação,
um exercício de robustez e de alma essenciais para a humanidade. Caminhar é o
exacto equilíbrio de espírito e humildade. Caminhando ao ar livre, percebemos
onde existe alimento. E há tantos relatos directos e verídicos que provam que
«o teu rabo é a refeição de alguém» – o que é uma forma brusca de dizer
interdependência, interconexão, «ecologia», ao nível onde conta, e também algo
que nos ensina a estarmos atentos e preparados. Há uma instrução extraordinária
acerca das plantas e animais e seus costumes, uma instrução empírica e
irrepreensível, que nunca os reduz a objectos ou mercadorias.
[SNYDER, 2018: 30]
Há inúmeras maneiras de caminhar – desde atravessar em linha recta
o deserto a serpentear através de um matagal. Descer cristas rochosas e
escarpas abruptas é em si mesmo uma especialidade. É uma dança irregular, de
passos cambiantes, sobre lajes e cascalho. A respiração e os olhos seguem
continuamente esse ritmo desigual, que nunca é regular nem compassado, mas
flectido – com pequenos saltos, desvios, escolhendo sempre o lugar à vista para
firmar o pé na rocha, continuar, avançando em ziguezague e de forma
inteiramente intencional. O olho alerta fixado em frente, escolhendo o próximo
apoio de pé, sem nunca esquecer o presente passo. O corpo-mente está de tal
modo unido a este mundo difícil que executa estes movimentos sem esforço, desde
que tenha alguma prática. A montanha acompanha a montanha.
[SNYDER, 2018: 151]
Experimentei pela primeira vez um desses picos distantes aos quinze
anos, quando subi o monte Santa Helena. Acordando no limite florestal às três
da manhã, e levantando o acampamento para poder estar no gelo do glaciar às
seis; assistindo ao róseo amanhecer a dois mil e setecentos metros de altitude,
de pé numa ladeira gelada, com o gelo a estalar sobre os pitões* das botas de
neve – eis alguns dos prazeres esotéricos do montanhismo. Estar imerso
em gelo e rocha e frio e espaço superior é submeter-se a uma fantasmagórica,
rigorosa iniciação, a uma transformação. Estar acima de todas as nuvens com
apenas mais algumas montanhas altas, também ao sol, com o mundo humano ainda
adormecido sob a sua cinzenta manta de nuvens aurorais, constitui um dos
primeiros passos rumo àquilo a que Aldo Leopold chama «pensar como uma
montanha». Nos anos subsequentes, escalei a maior parte dos cumes do
Noroeste – monte Hood, o monte Baker, o monte Rainier, o monte Adams, o monte
Stuart, e outros.
[SNYDER, 2018: 157]
NOTA Pedestris
*A tradução correcta é “crampões”: dispositivos providos de picos
metálicos (geralmente 12 pontas) que se colocam nas botas de montanha para possibilitar a progressão em neve dura, gelo e/ou terreno misto.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SNYDER, Gary. A Prática da Natureza Selvagem. Lisboa:
Antígona Editores Refractários, 2018, pp. 256. ISBN 978-972-608-326-9
Sem comentários:
Enviar um comentário