sexta-feira, 31 de maio de 2019

a-LUZ-cin-ação


Não, este não se trata, de todo, de um livro sobre caminhadas e, muito menos, sobre pedestrianismo, apesar de nele surgirem alguns inveterados andarilhos e de abordar diversas andanças… Nem sequer se trata de um livro campestre, pese embora muito do que aí é dito se passar em cenários de retorno ao campo, ademais quando a urbanidade surge de forma explicita ou mais ou menos (re)velada. Segundo os Editores Refractários desta obra, o personagem principal – Estêvão Vao –, se assim é lícito nos pronunciarmos, «exprime uma oposição liminar à demência do astronauta, ao paradigma que corporiza a indigente ambição de viver na Terra fora da terra». Aí – nesse preciso paradigma – reside a idiossincrasia societária dos humanos que, em diversos tempos e espaços coetâneos, surgem travestidos e/ou alienados sob roupagens (pós)modernas ou, bem mais importante que isso – porque para além (ou aquém?) do dito paradigma –, são a expressão de uma cultura milenar…





EMPREENDEDORISMO AGRÁRIO

Estêvão Vao1 ia a descer a mui inclinada Rua do Comércio, por onde não passam veículos automóveis, quando a meio da bruma espectral inserida no mês em curso julgou perceber que à sua frente caminhavam duas senhoras. Ao descortina-las, as duas figuras remeteram-no para o Bucha e Estica, porque uma era assaz volumosa e a outra bastante magra, parecendo esta ter-se esquecido de desligar o programa de emagrecimento. Notou que caminhavam como patos coxos, ou meio coxos. Porém, ao notá-lo, viu desprender-se delas uma nuvem de perfume chique e agoniante que logo o abocanhou, fazendo-o cair numa das ratoeiras em que se revela pródigo o mundo urbano.
Empreendendo um apreciável esforço cerebral para identificar a estranheza da andadura das senhoras, apercebeu-se de que iam montadas sobre umas botas de salto alto e fino, primor de elegância que as obrigava a apalpar terreno, para não se estatelarem na calçada. (…)
(HENRIQUES, 2017: 9-10)


ALDEIAS SEM ESTRUME, S.A.

(…) Nesse dia, na Câmara Municipal de Xispeteó já tinha começado de manhã uma importantíssima reunião regional aonde aportara um bom número de autarcas, conclave destinado a ultimar um «projecto estratégico», como rezava o documento jazente na vasta mesa, que no intervalo para o almoço (opíparo e prolongado, como é de lei em tão sacras circunstâncias) a nossa amiga F. teve oportunidade de ler, por mero acaso, ao extraviar-se pelos meandros da Câmara em busca do gabinete de obras.
Esse documento punha em letra de forma uma excelsa ideia que há tempos começara a tossir alto por aquelas bandas, em entrevistas de autarcas a jornais e rádios de todo o território e até já chegara ao altar televisivo: a criação de uma rede de aldeias sem estrume. O «sem estrume» sintetizava várias outras medidas do mesmo jaez, sendo os habitantes das aldeias incitados a denunciar «às autoridades competentes», não só a presença desse material orgânico, mas também, por exemplo, casas que ainda tivessem janelas, portas ou corrimões em alumínio. Tratava-se, lambiam-se já os beiços criativos, de uma magnífica operação de limpeza étnica destinada a embelezar as aldeias, de modo a estas poderem figurar, em várias línguas, nos folhetos turísticos de promoção, cartazes, brochuras, vídeos e demais propaganda publicitária a que o Turismo recorre, gulosamente, com a sua costumeira histeria fotográfica, videográfica e escritográfica.
Para anunciar sem tardança ao apetecido público-alvo («turistas de qualidade»)2 as impecáveis características das aldeias a integrar na Grande Panaceia das economias locais3, fora decidido dar à organização um nome de marcante sabor: Rede de Aldeias Sem Estrume, S.A.. (…)
(HENRIQUES, 2017: 36-37)


CAMINHO PARA UM NOVO SOL

(…) Convém dizer que Estêvão considerava com brando cepticismo os entusiastas do «regresso ao campo» que alardeiam grandes coisas sem as aplicarem no terreno, desprovidos da indispensável coerência entre o que é dito e o que é feito; intuía neles ambíguas ambições, cujo móbil parecia consistir, sob simpáticos ademanes, e pôr a trabalhar na roça quem caísse na rede, amiúde embrulhada em esoterismos fumosos, pozinhos de perlimpimpim, gurus e outros santos milagreiros; ou que se enfatuavam com transições destinadas tão-somente a envernizar o mundo e a fazer currículos. Adriano, quanto a ele, andava a trabalhar em prol de uma autonomia que começava pela alimentar; não se espraiava em devaneantes optimismos segundo os quais podia desde já viver-se «fora do capitalismo» bastando para tal a vontade de um «espírito superior»; e também não idealizava beatamente o mundo camponês, ou o que por aqui restava dele, sabendo todavia – questão prévia – que se trata de uma cultura milenar e que uma cultura destas, como diz John Berger, não se pode deitar fora como quem risca contas saldadas. Estêvão sentia-o confiante, mas em algo que era preciso construir a partir de baixo, com a cabeça, sim, mas igualmente com as mãos; e que implicava um esforço incitativo em trabalho braçal e competências afins, aberto a uma diversidade de experiências com provas dadas e a outras que cometiam erros por estarem a ser feitas no terreno, correndo riscos. A sociedade vigente estava a rebentar pelas costuras e não eram bem-vindas as gentis propostas conducentes a remendar com panos quentes tais costuras. Era diversa e mais funda a perspectiva por ele perfilhada: sair desta civilização, contribuir para a parição de uma outra – sem que isso, contudo, significasse uma inteira tábua rasa: anteriores culturas perseguidas continuavam, agora mesmo, a sua luta pela existência de um mundo plural. Fosse como fosse, em muitos lugares da Terra essa perspectiva estava a caminhar em busca de um novo sol. (…)
(HENRIQUES, 2017: 96-97)



NOTAS DO AUTOR
1 · De seu nome completo Francisco Hermes Estêvão Vao (do antigo ramo dos Vaos, ou Vaus, de Entre Douro e Minho) de Alencastre Reboredo e Souza. Inspirado na obra do grande geógrafo anarquista Élisée Reclus, aplicou a parca fortuna que lhe coube em herança em infindáveis caminhadas de naturalista, que o levaram do Norte da Galiza ao Levante, e daí, depois, a todo o litoral mediterrânico, o que lhe deu uma invejável estrutura muscular de caminheiro, deslocando-se a pé por todo o lado. Isso mesmo se verá, se Deus quiser (se Não Quiser está o caldo entornado), em próximos capítulos das suas ígneas aventuras.
2 · A expressão «turismo de qualidade» significa, traduzida em miúdos, o turismo destinado a gente com contas bancárias chorudas, de preferência estrangeiros oriundos de «países bons». Para as restantes multidões, o turismo não tem de ser «de qualidade», basta ser uma merda qualquer.
3 · Grande Panaceia é um sinónimo pós-moderno de Turismo, já devidamente dicionarizado.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
HENRIQUES, Júlio. Alucinar o Estrume. Lisboa: Antígona – Editores Refractários, 2017, pp. 176. ISBN 978-972-608-287-3

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