Não, este não
se trata, de todo, de um livro sobre caminhadas e, muito menos, sobre
pedestrianismo, apesar de nele surgirem alguns inveterados andarilhos e de
abordar diversas andanças… Nem sequer se trata de um livro campestre, pese embora muito do que aí é dito se passar em cenários de retorno ao campo, ademais
quando a urbanidade surge de forma explicita ou mais ou menos (re)velada.
Segundo os Editores Refractários desta obra, o personagem principal – Estêvão
Vao –, se assim é lícito nos pronunciarmos, «exprime uma oposição liminar à
demência do astronauta, ao paradigma que corporiza a indigente ambição de viver
na Terra fora da terra». Aí – nesse preciso paradigma – reside a idiossincrasia
societária dos humanos que, em diversos tempos e espaços coetâneos, surgem
travestidos e/ou alienados sob roupagens (pós)modernas ou, bem mais importante
que isso – porque para além (ou aquém?) do dito paradigma –, são a expressão de
uma cultura milenar…
EMPREENDEDORISMO
AGRÁRIO
Estêvão Vao1 ia a descer a mui inclinada Rua do
Comércio, por onde não passam veículos automóveis, quando a meio da bruma
espectral inserida no mês em curso julgou perceber que à sua frente caminhavam
duas senhoras. Ao descortina-las, as duas figuras remeteram-no para o Bucha e
Estica, porque uma era assaz volumosa e a outra bastante magra, parecendo esta
ter-se esquecido de desligar o programa de emagrecimento. Notou que caminhavam
como patos coxos, ou meio coxos. Porém, ao notá-lo, viu desprender-se delas uma
nuvem de perfume chique e agoniante que logo o abocanhou, fazendo-o cair numa
das ratoeiras em que se revela pródigo o mundo urbano.
Empreendendo um apreciável esforço cerebral para
identificar a estranheza da andadura das senhoras, apercebeu-se de que iam
montadas sobre umas botas de salto alto e fino, primor de elegância que as
obrigava a apalpar terreno, para não se estatelarem na calçada. (…)
(HENRIQUES, 2017: 9-10)
ALDEIAS SEM ESTRUME,
S.A.
(…) Nesse dia, na Câmara Municipal de Xispeteó já tinha
começado de manhã uma importantíssima reunião regional aonde aportara um bom
número de autarcas, conclave destinado a ultimar um «projecto estratégico»,
como rezava o documento jazente na vasta mesa, que no intervalo para o almoço
(opíparo e prolongado, como é de lei em tão sacras circunstâncias) a nossa
amiga F. teve oportunidade de ler, por mero acaso, ao extraviar-se pelos
meandros da Câmara em busca do gabinete de obras.
Esse documento punha em letra de forma uma excelsa ideia
que há tempos começara a tossir alto por aquelas bandas, em entrevistas de
autarcas a jornais e rádios de todo o território e até já chegara ao altar
televisivo: a criação de uma rede de aldeias sem estrume. O «sem estrume»
sintetizava várias outras medidas do mesmo jaez, sendo os habitantes das
aldeias incitados a denunciar «às autoridades competentes», não só a presença
desse material orgânico, mas também, por exemplo, casas que ainda tivessem
janelas, portas ou corrimões em alumínio. Tratava-se, lambiam-se já os beiços
criativos, de uma magnífica operação de limpeza étnica destinada a embelezar as
aldeias, de modo a estas poderem figurar, em várias línguas, nos folhetos
turísticos de promoção, cartazes, brochuras, vídeos e demais propaganda
publicitária a que o Turismo recorre, gulosamente, com a sua costumeira
histeria fotográfica, videográfica e escritográfica.
Para anunciar sem tardança ao apetecido público-alvo
(«turistas de qualidade»)2 as impecáveis características das aldeias
a integrar na Grande Panaceia das economias locais3, fora decidido
dar à organização um nome de marcante sabor: Rede de Aldeias Sem Estrume, S.A..
(…)
(HENRIQUES, 2017: 36-37)
CAMINHO PARA UM NOVO SOL
(…) Convém dizer que Estêvão considerava com brando
cepticismo os entusiastas do «regresso ao campo» que alardeiam grandes coisas
sem as aplicarem no terreno, desprovidos da indispensável coerência entre o que
é dito e o que é feito; intuía neles ambíguas ambições, cujo móbil parecia
consistir, sob simpáticos ademanes, e pôr a trabalhar na roça quem caísse na
rede, amiúde embrulhada em esoterismos fumosos, pozinhos de perlimpimpim, gurus
e outros santos milagreiros; ou que se enfatuavam com transições destinadas tão-somente a envernizar o mundo e a fazer
currículos. Adriano, quanto a ele, andava a trabalhar em prol de uma autonomia
que começava pela alimentar; não se espraiava em devaneantes optimismos segundo
os quais podia desde já viver-se «fora do capitalismo» bastando para tal a
vontade de um «espírito superior»; e também não idealizava beatamente o mundo
camponês, ou o que por aqui restava dele, sabendo todavia – questão prévia –
que se trata de uma cultura milenar e que uma cultura destas, como diz John
Berger, não se pode deitar fora como quem risca contas saldadas. Estêvão
sentia-o confiante, mas em algo que era preciso construir a partir de baixo,
com a cabeça, sim, mas igualmente com as mãos; e que implicava um esforço
incitativo em trabalho braçal e competências afins, aberto a uma diversidade de
experiências com provas dadas e a outras que cometiam erros por estarem a ser
feitas no terreno, correndo riscos. A sociedade vigente estava a rebentar pelas
costuras e não eram bem-vindas as gentis
propostas conducentes a remendar com panos quentes tais costuras. Era diversa e
mais funda a perspectiva por ele perfilhada: sair desta civilização, contribuir
para a parição de uma outra – sem que isso, contudo, significasse uma inteira
tábua rasa: anteriores culturas perseguidas continuavam, agora mesmo, a sua
luta pela existência de um mundo plural. Fosse como fosse, em muitos lugares da
Terra essa perspectiva estava a caminhar em busca de um novo sol. (…)
(HENRIQUES, 2017: 96-97)
NOTAS DO AUTOR
1 · De seu nome completo Francisco Hermes Estêvão
Vao (do antigo ramo dos Vaos, ou Vaus, de Entre Douro e Minho) de Alencastre
Reboredo e Souza. Inspirado na obra do grande geógrafo anarquista Élisée
Reclus, aplicou a parca fortuna que lhe coube em herança em infindáveis
caminhadas de naturalista, que o levaram do Norte da Galiza ao Levante, e daí,
depois, a todo o litoral mediterrânico, o que lhe deu uma invejável estrutura
muscular de caminheiro, deslocando-se a pé por todo o lado. Isso mesmo se verá,
se Deus quiser (se Não Quiser está o caldo entornado), em próximos capítulos
das suas ígneas aventuras.
2 · A expressão «turismo de qualidade» significa,
traduzida em miúdos, o turismo destinado a gente com contas bancárias chorudas,
de preferência estrangeiros oriundos de «países bons». Para as restantes
multidões, o turismo não tem de ser «de qualidade», basta ser uma merda
qualquer.
3 · Grande Panaceia é um sinónimo pós-moderno de
Turismo, já devidamente dicionarizado.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
HENRIQUES, Júlio. Alucinar
o Estrume. Lisboa: Antígona – Editores Refractários, 2017, pp. 176.
ISBN 978-972-608-287-3
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