Regressemos, mais uma vez, à bela prosa de Gary
Snyder ou, dito de outra forma, à sua forte originalidade, através de poderosíssimas
aproximações às origens, primais ou primevas. Afinal (ou a começo?), a busca de alguma palavra sábia plasmada n’A Prática da Natureza Selvagem (Antígona, 2018)...
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Para os povos pré-agrícolas, os locais considerados sagrados, e aos
quais se dedicavam especiais cuidados, eram obviamente selvagens. Nas primeiras
civilizações agrárias, a terra cultivada de forma ritual, ou pertencente aos
templos, era por vezes considerada sagrada. Os cultos de fertilidade dessa
época não exultavam necessariamente com a fertilidade de toda a natureza,
focando-se antes nas suas próprias colheitas. A ideia de cultivo foi
conceptualmente alargada para descrever uma espécie de adestramento em
formalidades sociais que garantiam o acesso a uma elite. Através da metáfora do
«cultivo espiritual», um homem sagrado mondou da sua própria natureza o seu
lado selvagem. Isto é teologia agrária. Mas mondar o lado selvagem da natureza
de membros dos clãs Bos e Sus – ou seja, o gado bovino e os
porcos – transformou gradualmente esses animais, que no estado selvagem são
espertos e vigilantes, em indolentes máquinas de produzir carne.
Certos bosques da floresta original sobreviveram até aos tempos
clássicos enquanto «santuários». Eram encarados com muita ambivalência pelos
governantes da metrópole. Se sobreviveram, foi porque as pessoas que
trabalhavam a terra ainda escutavam em parte o apelo dos antigos
costumes, e porque ainda se transmitiam os saberes anteriores à
agricultura. Os reis de Israel começaram a derrubar os bosques sagrados e os
cristãos remataram o serviço. A ideia de que a «natureza selvagem» podia
ser também «sagrada» reentrou no Ocidente com o Romantismo. Esta
redescoberta oitocentista da natureza selvagem constitui um complexo fenómeno
europeu – foi uma reacção ao racionalismo formalístico e ao despotismo do
iluminado, uma reacção que invocou sentimento, instinto, novos nacionalismos e
uma cultura popular sentimentalizada. Só em culturas muito antigas e centradas
num lugar é que ouvimos falar em bosques sagrados, terra sagrada, num contexto
de prática e crença genuínas. Parte desse contexto é a tradição dos comunais: a
terra «boa» torna-se propriedade privada, enquanto a selvagem e o sagrado são
partilhados.
[SNYDER, 2018: 108-109]
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Estávamos a circular de carrinha por uma pista de terra batida a
oeste de Alice Springs, na companhia de um ancião pintubi chamado Jimmy
Tjungurrayi. Enquanto rolávamos pela estrada poeirenta, sentados na caixa da carrinha,
ele começou a falar para mim muito rapidamente. Estava a falar de uma montanha
próxima, contando-me uma história sobre alguns wallabies que vieram para
essa montanha no tempo do sonho e cometeram algumas tropelias com certas
raparigas-lagarto. Ainda mal tinha terminado essa história e já estava a contar
outra a respeito daquela colina ali, e outra ainda. Eu não conseguia
acompanhá-lo. Ao fim de meia hora disto, compreendi que aquelas histórias
eram para ser contadas a caminhar, e que eu estava a ser submetido a uma
versão acelerada de algo que poderia ser contado vagarosamente, ao longo de
vários dias de caminhada. O Sr. Tjungurrayi sentiu-se benevolamente obrigado a
partilhar comigo um conjunto de saberes em virtude do simples facto de eu estar
ali.
Então, evoquemos um tempo em que se percorriam a pé centenas de
quilómetros, num passo acelerado e amiúde durante a noite, viajando de noite e
dormindo de dia à sombra das acácias, e no qual essas histórias eram contadas em andamento. Nessas viagens com alguém mais velho, a pessoa
recebia um mapa que podia memorizar, cheio de lendas e música, e também de
informações práticas. Se partisse sozinho, podia cantar aquelas músicas e
regressar. E talvez pudesse viajar para um lugar onde nunca havia estado, conduzido
pelas canções que aprendeu.
Montámos o acampamento junto de um manancial chamado Ilpili, onde
encontrámos alguns pintubis da região desértica circundante. O manancial Ilpili
tem cerca de um metro de largura e quinze centímetros de profundidade, numa pequena
depressão coberta de mato e onde abundam os tentilhões. As pessoas acampam a
quatrocentos metros de distância. Num raio de dezenas de milhares de
quilómetros quadrados, aquele é o único manancial que permanece com água em
anos de seca. Um local cujo livre acesso de todos é garantido pelo costume.
Sentados em volta de uma pequena fogueira, Jimmy e os outros velhos ficaram até
tarde a cantar para nós um ciclo de canções de viagem, percorrendo um trecho
de deserto em imaginação e através da música. Mantiveram uma batida rítmica
constante fazendo entrechocar dois bumerangues. Entre uma canção e a seguinte,
faziam uma pausa e trauteavam uma ou duas frases, debatiam brevemente as
palavras da canção e recomeçavam de novo. Um acedia a deixar o outro começar. Jimmy
explicou-me que eles têm tantos ciclos de músicas de viagem que é difícil
lembrarem-se de todos, e que têm de estar constantemente a ensaiá-los.
Todos os serões começavam com a pergunta: «O que vamos cantar?», e
a resposta era algo do género: «Vamos cantar a caminhada até Darwin.» Começavam
e debatiam e cantavam, marcando sempre o ritmo com os bumerangues. (…) Os
cantores paravam sempre que lhes apetecia. Eu perguntava ao Jimmy: «Até onde
conseguiram chegar esta noite?» E ele respondia: «Bom, já fizemos dois terços
do caminho até Darwin.» Isto pode ser visto como um exemplo, entre muitos, do
modo como paisagens, mitos e informações eram interligadas nas sociedades sem
escrita.
[SNYDER, 2018: 112-114]
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Na árida beleza das neveiras de montanha e dos glaciares nascem os
riachos que irrigam os campos da agroindústria no grande Vale Central da
Califórnia. A caminhada, passo a passo e respiração a respiração, de um
peregrino do deserto por um trilho acima, até essas neveiras, carregando tido
às costas, é um conjunto de gestos tão antigo que infunde uma profunda sensação
de júbilo físico e mental.
Isso não sucede apenas a caminheiros, claro. Acontece também a quem
navega no oceano, ou de caiaque em rios e fiordes, a quem cuida de uma horta,
descasca alhos ou simplesmente se senta numa almofada de meditação. O objectivo
é contactar intimamente com o mundo real, o eu real. O sagrado refere-se
àquilo que nos eleva (não apenas aos seres humanos) dos nossos pequenos eus
para o vasto universo mandala de montanhas-e-rios. A inspiração, a exaltação e
a compreensão não terminam à porta da igreja. Enquanto templo, a natureza
selvagem é apenas um começo. Não devemos insistir na singularidade da
experiência extraordinária, nem esperar abandonar o pântano político e entrar em
perpétuo estado de compreensão superior. O melhor propósito de tais estudos e
caminhadas é podermos regressar às terras baixas e ver toda a paisagem à nossa
volta – agrícola, suburbana, urbana – como parte do mesmo território – nunca
inteiramente destruída, nem jamais inteiramente desnaturada. A terra pode ser
restaurada, e os seres humanos podiam viver dela em números consideráveis.
Enquanto caminhamos pelas ruas de uma cidade, o Grande Uro-Pardo caminha
connosco, o Salmão sobe connosco o rio.
[SNYDER, 2018: 126-127]
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SNYDER, Gary. A Prática da Natureza Selvagem.
Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2018, pp. 256. ISBN 978-972-608-326-9
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