sábado, 14 de fevereiro de 2015

Vês esta rocha?


«Esses trilhos sinuosos, ou trilhos dos Sonhos, são fenómenos auditivos, tanto como visíveis e tácteis, porque os Antepassados estavam a cantar os nomes das coisas e dos lugares criando a terra à medida que deambulavam por ela. De facto, cada trilho dos Antepassados é uma espécie de partitura musical que serpenteia através do continente, a partitura de uma vasta canção épica cujos versos contam as muitas aventuras do Antepassado, o modo como os vários sítios ao longo do seu caminho vieram nascer (e por isso, indirectamente, que plantas, nascentes de água ou rochas protectoras se podem encontrar nesses sítios). A distância entre dois sítios significativos ao longo do trilho do Antepassado pode ser medida, ou pode falar-se dela, como um trecho de canção, porque a canção desdobra-se numa cadeia ininterrupta de estrofes de um lado ao outro da terra, uma estrofe “para cada par de pegadas do Antepassado”. A canção é, portanto, uma espécie de mapa de estradas auditivo através da região; para percorrer o caminho que deseja através da terra, um aborígene apenas tem de cantar as estrofes locais do Sonho apropriado, a canção do Antepassado apropriado.
O continente australiano é cruzado por dezenas de sinuosas “linhas do canto” [songlines] ou “caminhos que atravessam”, de que a maior parte passa através de múltiplas áreas tribais. Um determinado canto pode assim cantar o seu caminho através de vinte ou mais línguas diferentes antes de alcançar o local onde o Antepassado “reentrou”. (…) O conhecimento de partes distantes do ciclo de um canto – embora na própria língua da pessoa – dá aparentemente a essa pessoa a capacidade de experienciar vividamente certas áreas da terra mesmo antes de ter visitado realmente esses lugares. Ensaiando juntos um longo trecho do ciclo de um canto, enquanto se sentam à noite em volta da fogueira do acampamento, os aborígenes sentem-se aparentemente jornadeando através da terra na sua imaginação colectiva – de modo muito idêntico ao do homem apache que, “dizendo nomes” de si para si, está “a cavalgar em espírito”.
Cada Antepassado, enquanto cantava o seu caminho através da terra durante o Tempo dos Sonhos, também depositou um rasto de “filhos espíritos” ao longo da linha das suas pegadas. Estas “células de vida” são filhos ainda não nascidos: estão numa espécie de estado potencial dentro do solo, à espera. Enquanto a relação sexual entre uma mulher e um homem é considerada, pelos aborígenes tradicionais, como preparando a mulher para a concepção, assume-se que a concepção efectiva ocorre muito mais tarde, quando a mulher já grávida anda por fora na sua tarefa quotidiana de colher raízes e vermes comestíveis e acontece que passa por cima (ou por perto) de uma estrofe do canto. O “filho espírito” que jaz por baixo do solo nesse local esgueira-se para dentro dela, e fecunda o feto com o canto”. Onde quer que a mulher se encontre quando sente os primeiros movimentos do feto – o primeiro pontapé dentro do seu ventre – sabe que um filho espírito acaba de entrar no seu corpo vindo da terra. E assim anota o lugar exacto em que ocorreram os primeiros movimentos e relata esse facto aos anciãos da tribo. Os anciãos examinam então a terra nesse local, discernindo qual o canto dos Antepassados que esteve envolvido e quais serão, precisamente, as estrofes do canto desse Antepassado que pertencerão à criança.
Desta maneira, cada aborígene herda, ao nascer, um trecho particular do canto como sua propriedade privada, um trecho do canto que é, por assim dizer, o seu título de direito a um pedaço de terra, ao seu local de concepção. Esta terra é a parte do Sonho de que provém a sua vida – é aquele lugar da terra a que ela pertence, e a sua essência, o seu eu mais profundo, é indiscernível desse terreno:

Nyunnyamanu:
local de sonho do dingo [cão selvagem]
país de Paddy Anatari.

O velho de olhos piscos por entre as rugas
arrastado para um sorriso na terra vasta e vermelha.
Fez de criança; caminhou cada pegada na sua areia.

“Vês aquela rocha ali?”
(O topo tinha sido polido e era
plano e macio, como se tivesse sido cortado por diamante, mas
foi feito por outra rocha
encaixada em centenas de mãos:
alarga o local para o nascimento do filhote do dingo)
e
Paddy Anatari bate outra vez na rocha

E outra vez. Diz:
Vês esta rocha?

Esta rocha sou eu!”»

David ABRAM: A Magia do Sensível – Percepção e Linguagem num mundo mais do que humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 170-172

Ó Pedro Cuiça - Grand Canyon (Arizona - USA)

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