«Esses trilhos sinuosos, ou trilhos dos Sonhos, são
fenómenos auditivos, tanto como visíveis e tácteis, porque os Antepassados estavam
a cantar os nomes das coisas e dos lugares criando a terra à medida que
deambulavam por ela. De facto, cada trilho dos Antepassados é uma espécie de
partitura musical que serpenteia através do continente, a partitura de uma
vasta canção épica cujos versos contam as muitas aventuras do Antepassado, o
modo como os vários sítios ao longo do seu caminho vieram nascer (e por isso,
indirectamente, que plantas, nascentes de água ou rochas protectoras se podem
encontrar nesses sítios). A distância entre dois sítios significativos ao longo
do trilho do Antepassado pode ser medida, ou pode falar-se dela, como um trecho
de canção, porque a canção desdobra-se numa cadeia ininterrupta de estrofes de
um lado ao outro da terra, uma estrofe “para cada par de pegadas do Antepassado”.
A canção é, portanto, uma espécie de mapa de estradas auditivo através da
região; para percorrer o caminho que deseja através da terra, um aborígene
apenas tem de cantar as estrofes locais do Sonho apropriado, a canção do
Antepassado apropriado.
O continente australiano é cruzado por dezenas de
sinuosas “linhas do canto” [songlines]
ou “caminhos que atravessam”, de que a maior parte passa através de múltiplas áreas
tribais. Um determinado canto pode assim cantar o seu caminho através de vinte
ou mais línguas diferentes antes de alcançar o local onde o Antepassado “reentrou”.
(…) O conhecimento de partes distantes do ciclo de um canto – embora na própria
língua da pessoa – dá aparentemente a essa pessoa a capacidade de experienciar
vividamente certas áreas da terra mesmo antes de ter visitado realmente esses
lugares. Ensaiando juntos um longo trecho do ciclo de um canto, enquanto se
sentam à noite em volta da fogueira do acampamento, os aborígenes sentem-se
aparentemente jornadeando através da terra na sua imaginação colectiva – de modo
muito idêntico ao do homem apache que, “dizendo nomes” de si para si, está “a
cavalgar em espírito”.
Cada Antepassado, enquanto cantava o seu caminho
através da terra durante o Tempo dos Sonhos, também depositou um rasto de “filhos
espíritos” ao longo da linha das suas pegadas. Estas “células de vida” são
filhos ainda não nascidos: estão numa espécie de estado potencial dentro do solo,
à espera. Enquanto a relação sexual entre uma mulher e um homem é considerada,
pelos aborígenes tradicionais, como preparando
a mulher para a concepção, assume-se que a concepção efectiva ocorre muito mais tarde, quando a mulher já
grávida anda por fora na sua tarefa quotidiana de colher raízes e vermes
comestíveis e acontece que passa por cima (ou por perto) de uma estrofe do
canto. O “filho espírito” que jaz por baixo do solo nesse local esgueira-se
para dentro dela, e fecunda o feto com o canto”. Onde quer que a mulher se
encontre quando sente os primeiros
movimentos do feto – o primeiro pontapé dentro do seu ventre – sabe que um
filho espírito acaba de entrar no seu corpo vindo da terra. E assim anota o
lugar exacto em que ocorreram os primeiros movimentos e relata esse facto aos
anciãos da tribo. Os anciãos examinam então a terra nesse local, discernindo
qual o canto dos Antepassados que esteve envolvido e quais serão, precisamente,
as estrofes do canto desse Antepassado que pertencerão à criança.
Desta maneira, cada aborígene herda, ao nascer, um
trecho particular do canto como sua propriedade privada, um trecho do canto que
é, por assim dizer, o seu título de direito a um pedaço de terra, ao seu local
de concepção. Esta terra é a parte do Sonho de que provém a sua vida – é aquele
lugar da terra a que ela pertence, e a sua essência, o seu eu mais profundo, é indiscernível
desse terreno:
Nyunnyamanu:
local de sonho do dingo [cão selvagem]
país de Paddy Anatari.
O velho de olhos piscos por entre as rugas
arrastado para um sorriso na terra vasta e vermelha.
Fez de criança; caminhou cada pegada na sua areia.
“Vês aquela rocha ali?”
(O topo tinha sido polido e era
plano e macio, como se tivesse sido cortado por
diamante, mas
foi feito por outra rocha
encaixada em centenas de mãos:
alarga o local para o nascimento do filhote do
dingo)
e
Paddy Anatari bate outra vez na rocha
E outra vez. Diz:
Vês esta rocha?
Esta rocha sou eu!”»
David ABRAM: A
Magia do Sensível – Percepção e Linguagem num mundo mais do que humano.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 170-172
Ó Pedro Cuiça - Grand Canyon (Arizona - USA)
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