Pedro Cuiça © num carro (algures, 2017)
Se a redenção da humanidade trouxesse a felicidade à medida de cada
um, como, na generalidade, essa medida tem o tamanho de um automóvel, já pouco
falta para estarmos todos salvos. Pelo contrário, se a redenção for, como tem
sido ensinado, a ressurreição dos mortos ou o acordar dos adormecidos, então
nunca estivemos tão longe dela como agora.
(…)
Foi Chesterton, um dos raros escritores que usam o humor para fazer
metafísica, quem observou ser o homem moderno, ao invés da falsa ideia que faz
de si, o menos dinâmico de toda a história da Humanidade. Desloca-se de
automóvel para todo o lado, mas fá-lo sentado e sem se mexer.
(…)
Quando eu comecei a conhecer as palavras, perturbava-me ver a
palavra automóvel aplicada a um
objecto que para se mover precisava de alguém que o pusesse em marcha. A
palavra sugere um prodígio: o de um objecto inerte que se move a si próprio.
Aos viventes chamavam os gregos autokinetoi,
porque viam terem eles o princípio do movimento em si mesmos, o que não
acontece com uma pedra que só se desloca quando sobre ela actua uma força
exterior. O prestígio da tecnologia faz-se, em grande parte, com designações
impróprias, que sugerem um prodígio onde, de facto, há uma banalidade.
Sem um humano (um macaco não serve) que o ponha a trabalhar, que o
guie por curvas e rectas, subidas e descidas, e o faça parar, não há carro que
mereça o nome de automóvel. Merece-o, porém se estiverem, como vimos que estão,
ligados um ao outro por fibras musculares e nervosas.
(…)
O que podemos começar a compreender deste modo. Também o corpo nos leva,
de lugar a lugar, mas somos nós os levados quem leva o corpo. E se se passasse
o mesmo com o mundo?
[TELMO, 2017: 55-56]
Ver: O Carro do Armando
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
TELMO, António. O
Horóscopo de Portugal e escritos afins. Sintra: Zéfiro, 2017, pp. 232. ISBN
978-989-677-152-2
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