quarta-feira, 23 de maio de 2018

Do (c)A(r)mando

Pedro Cuiça © num carro (algures, 2017)

Se a redenção da humanidade trouxesse a felicidade à medida de cada um, como, na generalidade, essa medida tem o tamanho de um automóvel, já pouco falta para estarmos todos salvos. Pelo contrário, se a redenção for, como tem sido ensinado, a ressurreição dos mortos ou o acordar dos adormecidos, então nunca estivemos tão longe dela como agora.
(…)
Foi Chesterton, um dos raros escritores que usam o humor para fazer metafísica, quem observou ser o homem moderno, ao invés da falsa ideia que faz de si, o menos dinâmico de toda a história da Humanidade. Desloca-se de automóvel para todo o lado, mas fá-lo sentado e sem se mexer.
(…)
Quando eu comecei a conhecer as palavras, perturbava-me ver a palavra automóvel aplicada a um objecto que para se mover precisava de alguém que o pusesse em marcha. A palavra sugere um prodígio: o de um objecto inerte que se move a si próprio.
Aos viventes chamavam os gregos autokinetoi, porque viam terem eles o princípio do movimento em si mesmos, o que não acontece com uma pedra que só se desloca quando sobre ela actua uma força exterior. O prestígio da tecnologia faz-se, em grande parte, com designações impróprias, que sugerem um prodígio onde, de facto, há uma banalidade.
Sem um humano (um macaco não serve) que o ponha a trabalhar, que o guie por curvas e rectas, subidas e descidas, e o faça parar, não há carro que mereça o nome de automóvel. Merece-o, porém se estiverem, como vimos que estão, ligados um ao outro por fibras musculares e nervosas.
(…)
O que podemos começar a compreender deste modo. Também o corpo nos leva, de lugar a lugar, mas somos nós os levados quem leva o corpo. E se se passasse o mesmo com o mundo?
[TELMO, 2017: 55-56]

Cláudia Damas © Museu da Tapeçaria Guy Fino (Portalegre, 2015)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
TELMO, António. O Horóscopo de Portugal e escritos afins. Sintra: Zéfiro, 2017, pp. 232. ISBN 978-989-677-152-2



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