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Platão compara a alma a um carro puxado por cavalos, no qual vai um
homem que segura as rédeas. Há relações diabólicas: também os automóveis são
movidos por uma força que se mede em “cavalos”1.
[TELMO, 2017: 56]
Já atrás passei pelo Fedro,
onde Platão compara a alma a um carro
puxado por cavalos e guiado por um auriga. Bem compreendida a imagem,
segue-se o seguinte: o homem não tem um só cérebro, mas três. Um conhece pelas noções, outro pelas emoções, o terceiro pelos movimentos. Na verdade, ao dizermos cérebros, não fazemos mais do que
apresentar em termos modernos a doutrina clássica das três almas intelectiva, sensitiva e vegetativa.
Na imagem do carro puxado por cavalos, ao primeiro centro corresponde
o auriga que o conduz, ao segundo os cavalos, ao terceiro a armação de ferro e
de madeira assente sobre as rodas. As emoções sugerem os movimentos que o corpo
imita, o pensamento dirige as emoções. Até aqui estamos perante uma correlação
do domínio comum. Mas agora, vamos introduzir na imagem um factor que Platão
talvez tenha preferido não mensionar: o passageiro.
É ele que diz ao condutor para onde quer que ele vá, o que deve fazer, o
caminho de deve tomar, o destino da viagem. Imaginemos que o condutor não
conhece a região por onde o mandam. Está, no entanto, disposto, para ganhar a vida, a ir por um caminho que
não conhece, com risco até de ser assaltado pelo desconhecido.
Nem sempre, porém, o condutor e o carro estão em condições de
fazerem o que é mandado. Uma viagem por vales aprazíveis, com boas estradas de
alcatrão exige menos do taxista, do motor e do carro do que uma viagem pelas
altas montanhas e por caminhos de pedras e de buracos, correndo ao lado de
precipícios. Se, numa estrada fácil, com um destino mais ou menos conhecido
para a viagem, nada mais se exige do que cumprir automaticamente as ordens
vindas de trás, o mesmo não acontece num caminho difícil, com curvas e
contracurvas, desvios por sítios perdidos, que só o passageiro conhece. É,
então, necessária uma perfeita atenção às indicações que nos vão sendo dadas,
confiança no passageiro que nos guia, e ainda o completo domínio das rédeas ou
do volante num carro em que tudo esteja ajustado.
A analogia, não se
esqueça o leitor, é a do homem com as
suas três almas com o carro e as suas três componentes: auriga, cavalos e o
carro propriamente dito. Se não o esquecermos, então a analogia conduz ao
seguinte: no homem que está apenas habituado a pensar, a sentir e a pisar
caminhos fáceis, qualquer coisa que venha alterar a costumada convivência entre
as três almas é instintivamente repelida. É certo que do modo como intimamente
convivem ele nada sabe ou sabe muito pouco. Até naqueles que julgam comandar as
emoções e escolher as acções, a alma
dominante é a subdiafragmática. Tudo neles, de facto, deriva da vida instintiva do corpo, sem cessar produzindo em modo inconsciente emoções e
formações mentais. São ordenados de baixo para cima. Neste sentido, parecem
ter tido razão Freud e Marx, mestres apenas sub
diafragma, quando explicam, um pelo cio outro pela fome, pelos dois
instintos que formam a carne, as acções, os sentimentos e os pensamentos do
homem, por mais elevados e desinteressados que se afigurem.
O homem, porém, fez-se para viajar. Assim eram os portugueses
antigos que se fizeram aos mares. Só viajando do mesmo modo, um ser pode transmudar-se num espírito superior,
aberto às emanações divinas e ordenado de cima para baixo, que é aqui o mesmo
que dizer do centro para a periferia, porque, em português marítimo, o alto é igual ao profundo2.
[TELMO, 2017: 58-59]
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NOTAS Pedestris
1- Há, de facto, relações diabólicas: e.g. tomar diacetilmorfina, vulgarmente denominada “cavalo” ou “heroína” (!), – uma droga artificial
sintetizada, no século XIX, a partir da morfina (um produto natural derivado da
papoila do ópio) – para atingir estados alterados de (in)consciência ou,
digamos de outro modo, para baralhar a relação veículo, condutor, conduzido e…
2- Porque, pela lei hermética da correspondência: o que está em cima
e como o que está em baixo e o que está dentro é como o que está fora. Atitude
é altitude e, portanto, também será profundidade.
· O destaque de
palavras a negrito (bold) é de nossa “autoria”.
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
TELMO, António. O
Horóscopo de Portugal e escritos afins. Sintra: Zéfiro, 2017, pp. 232.
ISBN 978-989-677-152-2
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