quinta-feira, 24 de maio de 2018

Do (c)A(r)mando III


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Só mais uma palavra sobre o que se seguirá. Muito do que ficará dito resulta de um pensamento sempre em busca da experiência, naquele sentido de filosofia operativa que tem sido explicado por António Telmo desde a sua ARTE POÉTICA. O leitor tirará mais proveito deste livro se o ler pensando nele como o de uma filosofia poética, lembrando-se que o termo poesia deriva do grego poieín, acção, mas de uma acção que deve partir de uma mutação interior. O único interesse que o livro pode ter está na inquietação com que foi escrito. As contradições que se possa encontrar e que não rejeito advêm dessa mesma inquietação, que é, como se sabe, desde Álvaro Ribeiro, o gesto de uma alma que está em movimento, em demanda.
[SINDE, 2005: 15-16]

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O primeiro passo, na perspectiva ocidental, é a alma descobrir em si a causa da sua ignorância.
(…) Há quem adie, constantemente esta metanóia para o pós-morte, mas nós já estamos mortos, já estamos para onde nos queremos encaminhar; já estamos e não estamos. A morte é já aqui; é, por isso, já aqui que a obra começa – aliás, a obra já começou e estamos a perder tempo sempre que ficamos prostrados no marasmo da ignorância, no paralisante spleen que [Sampaio] Bruno tão bem descreve. Já estamos no transcendente porque algo em nós nunca de lá saiu, nunca o esqueceu e, por isso, não o ignora. Se não fosse essa raiz no alto não haveria forma de regresso. A cisão é extrema mas não é radical, porque algo em nós, último Satã, aspira ao regresso.
A sensação de Presença, de que tratarei mais à frente, traz consigo a certeza de que estamos já no transcendente. A vida, isto é, o viver, é já transcendente. Todavia vivemos como se: como se estivessemos separados, como se fôssemos autónomos; e, no entanto, de algum modo, estamos e somos.
Os nossos clássicos são ainda o ponto em que podemos encontrar a cura:

Planta sois e caminheira
Que, ainda que estais, vos is
Donde viestes.

Assim diz o mestre Gil Vicente, no AUTO DA ALMA, e continua por este modo:

Vossa pátria verdadeira
He ser herdeira
Da glória que conseguis:
Andae prestes.
Alma bem-aventurada,
Dos anjos tanto querida.
Não durmaes;
Hum ponto não esteis parada,
Que a jornada he fenecida,
Se atentaes.

A alma, para Gil Vicente, tem a sua origem no outro mundo e vem a este para dar celestes flores:

Planta neste valle posta
Pera dar celestes flores
Olorosas,
E pera serdes treposta
Em a alta costa
Onde se criam primores
Mais que rosas

(…) Se a alma é uma planta, o caminho da regeneração, da demanda da vida nova, é o que deve percorrer o neófito, que etimologicamente significa “nova planta”. Mas exploremos esta metáfora e vejamos até onde nos leva. Todas as plantas têm raízes, que correspondem a dois tipos de alimento: uma raiz alimenta-se da humidade da treva, do mineral e a outra da luz do céu; só por distracção chamamos ramos às raízes do alto. É do encontro das duas raízes que nascem a flor e o fruto. A planta realiza-se, como uma sizígia, no seu duplo enraizamento, a sua realização é a flor e o fruto, a semente que perpetua a cadeia áurea das plantas. Nesta reunião dos dois tipos de alimentos a planta aproxima o céu da terra e a terra do céu, realiza uma obra de criação pela transmutação do mineral escuro e disforme e do inefável invisível da luz informe na forma maravilhosa da flor.
O homem é também essa dupla raiz mas, ao contrário da planta, tem uma raiz visível na terra e a invisível no céu. E é também do encontro de uma com a outra que ele se realiza – nem só terra, nem só céu, porque o homem tem uma missão criadora a realizar aqui (…). A sua missão é a de aproximar a terra, subtilizando-a, do céu.
[SINDE, 2005: 27-29]


A caminhada faz-se desde o corpo até ao espírito a partir da alma. A “chegada” ao espírito implica a simultânea descida. O corpo subtiliza-se, torna-se anímico e a alma espiritualiza-se.
(…) O corpo é o nosso ponto de apoio, o local a partir do qual iniciamos, se iniciarmos, um processo de ascensão ou iluminação, apenas porque é o lugar de alma que nos foi dado habitar sensivelmente. A sensação de presença pode ter portanto no estado de corporeidade o ponto de apoio, mas aquilo que a alma sente na presença não é o corpo, a alma sente-se a si mesma no estado corpóreo e é por esta razão que lhe pode servir de apoio; por outras palavras, este estado é contido pela alma, é o seu lugar no mundo sensível, terá outro no estado psíquico e outro ainda no estado noético. É possível a convergência dos três estados num só lugar e este parece ser o fim do processo gnósico que avança acrescentando algo que não havia, quer dizer, do corpo ao espírito não se pode perder o corpo, há que ganhar o espírito. Assim também para a percepção sensível que deve sair enriquecida pela percepção animada, não se perde nada na passagem de uma a outra, pelo contrário, a percepção sensível é amplificada em profundidade pelo elemento anímico.
Um primeiro momento de sensação de presença no corpo é iluminador de quanto ele é imenso, ou melhor, da dimensão da alma, porque ele serve-lhe de espelho; se vivido por dentro, vem a ser percebido como algo de vasto e subtil, tem alguma coisa de mágico. A melhor expressão para dizer esta sensação, encontrei-a em António Telmo: o corpo é uma imagem animada.
(…) Passa em nós essa corrente da vida que é viriditas, na excelente expressão de Hidelgarda de Bigen. Todavia, esta força verde, reverdescente e ressuscitante, é também destruidora; é como um fogo que ilumina e para tal desfaz em cinza toda a matéria perecível em que se apoia. Não é casual que o radical etimológico do termo vegetal seja fogo, como o de animal seja ar1.
A presença no corpo é precisamente a deslocação da nossa atenção, da nossa identificação com o elemento ígneo que arde em nós, que nos transmuta necessariamente. A velhice tem já algo de secura porque todo o elemento húmido evaporou – é o equivalente antropológico do Outono, que chega depois do fogo e do calor do Verão intenso terem consumido a humidade. O cheiro doce da decomposição outonal é já o indicador de que a vida que esteve nas folhas se subtilizou, se retirou, se tornou “aérea”, manifestando a sua presença no ar, o equivalente antropológico do odor de santidade.
[SINDE, 2005: 34-35]


NOTAS Pedestris
1- E o homem seja terra: o étimo de humano em latim é humus (terra), tal como se verifica um parentesco entre a palavra hebraica  adam (homem) e adamah (terra). Todavia o ser humano é constituído por mais de 70% de água, anima-o um fogo interior e não vive sem ar.
· O destaque de palavras a negrito (bold) é de nossa “autoria”.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SINDE, Pedro. Terra Lúcida – A intimidade do Homem com a Natureza. Matosinhos: Publicações Pena Perfeita, 2005, pp. 160. ISBN 972-8925-05-0



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