A corrida interrompe-se quando o corredor se
ergue. O estado erecto põe um termo, talvez provisório, à fuga para a frente da
evolução animal. Vista de forma idealizada, a passagem dos pré-hominídeos, de uma marcha a quatro patas para a
locomoção pedestre do homem, traduz-se por uma série de sucessivas libertações:
a da cabeça, relativamente ao solo, a da mão relativamente à marcha e, num
mesmo impulso de verticalidade, como uma catedral gótica liberta dos pesados
pilares romanos, a da abóbada craniana relativamente ao maciço facial. Os novos
arranjos ósseos crânio-faciais e o enorme espaço assim adquirido associam-se à
expansão que o cérebro encontra aí para se alojar. É, aliás, interessante
observar que os ossos da face derivam de células provenientes da parte anterior
da crista neural e estão sob o controlo de genes homeóticos que conduzem a
formação do cérebro.
Edelman defende a ideia de que o cérebro é um
sistema selectivo de reconhecimento. É provável que tenha razão. O cérebro
funciona na selecção de similitudes e de contrastes; estabelece relações e
relações entre relações, provavelmente por intermédio de grupos neurónicos,
cuja estrutura e dinâmica continuam, até à data, a ser hipotéticas. Essas
relações são, por definição, abstractas, mas não mais do que o que une uma
molécula viva a uma outra: trata-se, nos dois casos, de um reconhecimento de
formas. Essa abstracção faz que, por vezes, se fale, erradamente, de psiquismo
ou de espírito, género imaterial que vem ocupar o vazio entre formas. É razoável
admitir a hipótese de que o aumento considerável do tamanho do cérebro do
homem, e, designadamente, o desenvolvimento do chamado córtex associativo,
estarão na origem da sua fabulosa capacidade para estabelecer essas relações e
as relações entre relações, que podemos designar pelo termo genérico de pensamento.
O pensamento traduz os processos de
categorização do real, dos quais é inseparável, qualquer que seja o nível de
abstracção em que se situem. É falso, por sua vez, afirmar que o pensamento é
responsável por essas categorizações, ou seja, que efectua um trabalho sobre as
representações. Seria, como sublinha A. Pochiantz, cair numa clivagem fatal com
o corpo, «reintroduzir um dualismo vitalista que separa a função do seu
substrato, substituir pelo real a metáfora do ordenador e reduzir a lógica do
ser vivo à lógica da matemática». As representações são realizadas em
territórios cerebrais mais ou menos especializados segundo a natureza sensorial
dos dados provenientes do mundo.
(…) Eis, portanto, o cérebro do homem, capaz de representar um mundo que já não é ou que ainda não é, enfim, capaz de
instrumentalizar o mundo bem real que se lhe oferece. Com uma pedra, ele parte
outra pedra, coloca o fragmento na extremidade de um pau; com o conjunto
constrói, segundo o tamanho e a forma, uma azagaia ou um machado, ou ainda uma
lança, que empresta a um outro. Mas, dentro em breve, com os sons, o homem
articula palavras: ele fala!
[VINCENT,
1997: 43-46]
© Algures na Net
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
VINCENT, Jean-Didier. A Carne e o Diabo.
Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, pp. 260.
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