terça-feira, 29 de maio de 2018

Libertações


A corrida interrompe-se quando o corredor se ergue. O estado erecto põe um termo, talvez provisório, à fuga para a frente da evolução animal. Vista de forma idealizada, a passagem dos pré-hominídeos, de uma marcha a quatro patas para a locomoção pedestre do homem, traduz-se por uma série de sucessivas libertações: a da cabeça, relativamente ao solo, a da mão relativamente à marcha e, num mesmo impulso de verticalidade, como uma catedral gótica liberta dos pesados pilares romanos, a da abóbada craniana relativamente ao maciço facial. Os novos arranjos ósseos crânio-faciais e o enorme espaço assim adquirido associam-se à expansão que o cérebro encontra aí para se alojar. É, aliás, interessante observar que os ossos da face derivam de células provenientes da parte anterior da crista neural e estão sob o controlo de genes homeóticos que conduzem a formação do cérebro.
Edelman defende a ideia de que o cérebro é um sistema selectivo de reconhecimento. É provável que tenha razão. O cérebro funciona na selecção de similitudes e de contrastes; estabelece relações e relações entre relações, provavelmente por intermédio de grupos neurónicos, cuja estrutura e dinâmica continuam, até à data, a ser hipotéticas. Essas relações são, por definição, abstractas, mas não mais do que o que une uma molécula viva a uma outra: trata-se, nos dois casos, de um reconhecimento de formas. Essa abstracção faz que, por vezes, se fale, erradamente, de psiquismo ou de espírito, género imaterial que vem ocupar o vazio entre formas. É razoável admitir a hipótese de que o aumento considerável do tamanho do cérebro do homem, e, designadamente, o desenvolvimento do chamado córtex associativo, estarão na origem da sua fabulosa capacidade para estabelecer essas relações e as relações entre relações, que podemos designar pelo termo genérico de pensamento.
O pensamento traduz os processos de categorização do real, dos quais é inseparável, qualquer que seja o nível de abstracção em que se situem. É falso, por sua vez, afirmar que o pensamento é responsável por essas categorizações, ou seja, que efectua um trabalho sobre as representações. Seria, como sublinha A. Pochiantz, cair numa clivagem fatal com o corpo, «reintroduzir um dualismo vitalista que separa a função do seu substrato, substituir pelo real a metáfora do ordenador e reduzir a lógica do ser vivo à lógica da matemática». As representações são realizadas em territórios cerebrais mais ou menos especializados segundo a natureza sensorial dos dados provenientes do mundo.
(…) Eis, portanto, o cérebro do homem, capaz de representar um mundo que já não é ou que ainda não é, enfim, capaz de instrumentalizar o mundo bem real que se lhe oferece. Com uma pedra, ele parte outra pedra, coloca o fragmento na extremidade de um pau; com o conjunto constrói, segundo o tamanho e a forma, uma azagaia ou um machado, ou ainda uma lança, que empresta a um outro. Mas, dentro em breve, com os sons, o homem articula palavras: ele fala!
[VINCENT, 1997: 43-46]

© Algures na Net


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
VINCENT, Jean-Didier. A Carne e o Diabo. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, pp. 260.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Venerar descalços


© Algures da Net

Todos tiraram os sapados, para, descalços, venerar a Pachamama. Sentiram-na com os pés, tocaram-na com as mãos e muitos a reverenciaram com a fronte. Depois toda a multidão voltou-se para o Oriente, o lugar onde nasce o Sol. Rezaram com o olhar. O tambor ajudou cada pessoa a entregar o louvor:

“Salve, pai divino, grande Sol, fonte das nossas vidas…
Salve, mãe da luz, energia do nosso ser e da Pachamama.”

Saudaram ainda o Oeste, depois o Norte e finalmente o Sul. Em cada ponto cardeal, receberam um dos elementos do equilíbrio da vida. Trouxeram a lhama preta até ao altar e curvaram-se em silêncio. Os sacerdotes prostraram-se diante da vítima e pediram-lhe perdão.
[BARROS, 1997: 337]

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BARROS, Marcelo. A secreta magia do caminho. Rio de Janeiro: Nova Era, 1997, pp. 416. ISBN 85-01-04750-3

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Picos



A progressão em terrenos escorregadios, designadamente em neveiros, vertentes enlameadas e/ou com erva molhada, apresenta exigências técnicas e o perigo de queda de praticantes que deverão ser tidos em conta e geridos convenientemente com vista à sua resolução e/ou mitigação.
O uso de spikes revela-se uma interessante e efectiva solução de progressão com níveis acrescídos de segurança, face a condições de ocorrência de neve e gelo pontualmente em terrenos montanhosos ou em trajectos pedestres, no âmbito da prática de caminhada e de running (sky ou trail). São fáceis e rápidos de colocar em qualquer tipo de calçado e proporcionam uma boa tracção na maior parte dos terrenos escorregadios.  Por outro lado, são muito leves e pouco volumosos tornando-se muitíssimo apetecíveis para quem pretende andar rápido e (ultra)leve. No contexto nacional, serão certamente interessantes opções, sob determinadas condições de neve e gelo, na montanha do Pico ou na Serra da Estrela, tal como noutras áreas com terrenos escorregadios.
Os “picos” snowline Chaisen, comercializados pela casa austríaca Koch alpin GmbH, apresentam uma elevada qualidade e vários modelos, para diferentes actividades, de que destacamos o Chainsen Light, pela sua leveza (230 a 265 gramas/par, consoante os tamanhos disponíveis: M, L e XL) e pela sua eficácia. Neste momento estamos em fase de testes, com diversos modelos, e os resultados são bastante satisfatórios, sendo certamente uma opção a ter em conta, quer por praticantes, quer por treinadores. Para mais informações, consulte o site da Koch alpin.

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Longo Curso

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A iniciativa do Centro de Formação da Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal/Escola Nacional de Montanhismo (FCMP/ENM) denominada Palestras da Montanha realizou-se, no mês de Maio, sob um formato diferente daquele que é usual. Em vez da já tradicional palestra mensal, foi concretizado um “workshop dois-em-um”, nos dias 22 e 24, na sala de formação da FCMP, acerca de Percursos Pedestres de Longo Curso, sob duas temáticas distintas mas complementares: (1) Estratégias de Progressão Rápida e (Ultra)leve e (2) Desempenho, Saúde e Bem-estar. A razão pela qual estas acções de formação foram consideradas workshops deveu-se ao seu cariz eminentemente de aplicação prática e, sobretudo, pelo desafio final dos praticantes efectuarem um conjunto de experiências num percurso concreto com cerca de 50 quilómetros de extensão.
O primeiro workshop, sobre Estratégias de progressão rápida e (ultra)leve, centrou-se na escolha criteriosa do equipamento a utilizar, desde as abordagens clássicas a opções (ultra)leves, com base na satisfação de um conjunto de necessidades fisiológicas e de segurança, e simultaneamente na redução (muito) significativa do peso e do volume. No primeiro dia também foram abordadas algumas regras base para incrementar o ritmo de marcha, tal como métodos e estratégias a implementar com vista a uma optimização do desempenho em percursos de longo curso, isso depois de um enquadramento sobre a determinação de horários e dificuldade de percursos pedestres.
O segundo workshop, sobre Desempenho, Saúde e Bem-estar, continuou e aprofundou a temática da “aula” anterior sobre o equipamento, designadamente no que concerne às necessidades a satisfazer, com um especial enfoque no calçado e formas de mitigar e/ou evitar problemas de saúde. Temática que constituiu a ponte para o ensino de metodologias de treino  direccionadas a percursos de longo curso (nas suas componentes física, psicológica, técnica e táctica), a alimentação e a hidratação, a gestão do esforço e formas de prevenir e de tratar algumas das lesões mais comuns, designadamente entorses e luxações, caibrãs, flictenas, fasceíte plantar, hematoma subungueal, pé de trincheira e pé de atleta.
Ambas as acções de formação contínua foram alvo de acreditação por parte do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) para atribuição de Unidades de Crédito com vista à revalidação do Título Profissional de Treinador de Desporto (TPTD) nas modalidades de Pedestrianismo e de Montanhismo nos seus diversos graus (I, II e III).

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quinta-feira, 24 de maio de 2018

Do (c)A(r)mando III


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Só mais uma palavra sobre o que se seguirá. Muito do que ficará dito resulta de um pensamento sempre em busca da experiência, naquele sentido de filosofia operativa que tem sido explicado por António Telmo desde a sua ARTE POÉTICA. O leitor tirará mais proveito deste livro se o ler pensando nele como o de uma filosofia poética, lembrando-se que o termo poesia deriva do grego poieín, acção, mas de uma acção que deve partir de uma mutação interior. O único interesse que o livro pode ter está na inquietação com que foi escrito. As contradições que se possa encontrar e que não rejeito advêm dessa mesma inquietação, que é, como se sabe, desde Álvaro Ribeiro, o gesto de uma alma que está em movimento, em demanda.
[SINDE, 2005: 15-16]

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O primeiro passo, na perspectiva ocidental, é a alma descobrir em si a causa da sua ignorância.
(…) Há quem adie, constantemente esta metanóia para o pós-morte, mas nós já estamos mortos, já estamos para onde nos queremos encaminhar; já estamos e não estamos. A morte é já aqui; é, por isso, já aqui que a obra começa – aliás, a obra já começou e estamos a perder tempo sempre que ficamos prostrados no marasmo da ignorância, no paralisante spleen que [Sampaio] Bruno tão bem descreve. Já estamos no transcendente porque algo em nós nunca de lá saiu, nunca o esqueceu e, por isso, não o ignora. Se não fosse essa raiz no alto não haveria forma de regresso. A cisão é extrema mas não é radical, porque algo em nós, último Satã, aspira ao regresso.
A sensação de Presença, de que tratarei mais à frente, traz consigo a certeza de que estamos já no transcendente. A vida, isto é, o viver, é já transcendente. Todavia vivemos como se: como se estivessemos separados, como se fôssemos autónomos; e, no entanto, de algum modo, estamos e somos.
Os nossos clássicos são ainda o ponto em que podemos encontrar a cura:

Planta sois e caminheira
Que, ainda que estais, vos is
Donde viestes.

Assim diz o mestre Gil Vicente, no AUTO DA ALMA, e continua por este modo:

Vossa pátria verdadeira
He ser herdeira
Da glória que conseguis:
Andae prestes.
Alma bem-aventurada,
Dos anjos tanto querida.
Não durmaes;
Hum ponto não esteis parada,
Que a jornada he fenecida,
Se atentaes.

A alma, para Gil Vicente, tem a sua origem no outro mundo e vem a este para dar celestes flores:

Planta neste valle posta
Pera dar celestes flores
Olorosas,
E pera serdes treposta
Em a alta costa
Onde se criam primores
Mais que rosas

(…) Se a alma é uma planta, o caminho da regeneração, da demanda da vida nova, é o que deve percorrer o neófito, que etimologicamente significa “nova planta”. Mas exploremos esta metáfora e vejamos até onde nos leva. Todas as plantas têm raízes, que correspondem a dois tipos de alimento: uma raiz alimenta-se da humidade da treva, do mineral e a outra da luz do céu; só por distracção chamamos ramos às raízes do alto. É do encontro das duas raízes que nascem a flor e o fruto. A planta realiza-se, como uma sizígia, no seu duplo enraizamento, a sua realização é a flor e o fruto, a semente que perpetua a cadeia áurea das plantas. Nesta reunião dos dois tipos de alimentos a planta aproxima o céu da terra e a terra do céu, realiza uma obra de criação pela transmutação do mineral escuro e disforme e do inefável invisível da luz informe na forma maravilhosa da flor.
O homem é também essa dupla raiz mas, ao contrário da planta, tem uma raiz visível na terra e a invisível no céu. E é também do encontro de uma com a outra que ele se realiza – nem só terra, nem só céu, porque o homem tem uma missão criadora a realizar aqui (…). A sua missão é a de aproximar a terra, subtilizando-a, do céu.
[SINDE, 2005: 27-29]


A caminhada faz-se desde o corpo até ao espírito a partir da alma. A “chegada” ao espírito implica a simultânea descida. O corpo subtiliza-se, torna-se anímico e a alma espiritualiza-se.
(…) O corpo é o nosso ponto de apoio, o local a partir do qual iniciamos, se iniciarmos, um processo de ascensão ou iluminação, apenas porque é o lugar de alma que nos foi dado habitar sensivelmente. A sensação de presença pode ter portanto no estado de corporeidade o ponto de apoio, mas aquilo que a alma sente na presença não é o corpo, a alma sente-se a si mesma no estado corpóreo e é por esta razão que lhe pode servir de apoio; por outras palavras, este estado é contido pela alma, é o seu lugar no mundo sensível, terá outro no estado psíquico e outro ainda no estado noético. É possível a convergência dos três estados num só lugar e este parece ser o fim do processo gnósico que avança acrescentando algo que não havia, quer dizer, do corpo ao espírito não se pode perder o corpo, há que ganhar o espírito. Assim também para a percepção sensível que deve sair enriquecida pela percepção animada, não se perde nada na passagem de uma a outra, pelo contrário, a percepção sensível é amplificada em profundidade pelo elemento anímico.
Um primeiro momento de sensação de presença no corpo é iluminador de quanto ele é imenso, ou melhor, da dimensão da alma, porque ele serve-lhe de espelho; se vivido por dentro, vem a ser percebido como algo de vasto e subtil, tem alguma coisa de mágico. A melhor expressão para dizer esta sensação, encontrei-a em António Telmo: o corpo é uma imagem animada.
(…) Passa em nós essa corrente da vida que é viriditas, na excelente expressão de Hidelgarda de Bigen. Todavia, esta força verde, reverdescente e ressuscitante, é também destruidora; é como um fogo que ilumina e para tal desfaz em cinza toda a matéria perecível em que se apoia. Não é casual que o radical etimológico do termo vegetal seja fogo, como o de animal seja ar1.
A presença no corpo é precisamente a deslocação da nossa atenção, da nossa identificação com o elemento ígneo que arde em nós, que nos transmuta necessariamente. A velhice tem já algo de secura porque todo o elemento húmido evaporou – é o equivalente antropológico do Outono, que chega depois do fogo e do calor do Verão intenso terem consumido a humidade. O cheiro doce da decomposição outonal é já o indicador de que a vida que esteve nas folhas se subtilizou, se retirou, se tornou “aérea”, manifestando a sua presença no ar, o equivalente antropológico do odor de santidade.
[SINDE, 2005: 34-35]


NOTAS Pedestris
1- E o homem seja terra: o étimo de humano em latim é humus (terra), tal como se verifica um parentesco entre a palavra hebraica  adam (homem) e adamah (terra). Todavia o ser humano é constituído por mais de 70% de água, anima-o um fogo interior e não vive sem ar.
· O destaque de palavras a negrito (bold) é de nossa “autoria”.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SINDE, Pedro. Terra Lúcida – A intimidade do Homem com a Natureza. Matosinhos: Publicações Pena Perfeita, 2005, pp. 160. ISBN 972-8925-05-0



Do (c)A(r)mando II


DR © 

Platão compara a alma a um carro puxado por cavalos, no qual vai um homem que segura as rédeas. Há relações diabólicas: também os automóveis são movidos por uma força que se mede em “cavalos1.
[TELMO, 2017: 56]

Já atrás passei pelo Fedro, onde Platão compara a alma a um carro puxado por cavalos e guiado por um auriga. Bem compreendida a imagem, segue-se o seguinte: o homem não tem um só cérebro, mas três. Um conhece pelas noções, outro pelas emoções, o terceiro pelos movimentos. Na verdade, ao dizermos cérebros, não fazemos mais do que apresentar em termos modernos a doutrina clássica das três almas intelectiva, sensitiva e vegetativa.
Na imagem do carro puxado por cavalos, ao primeiro centro corresponde o auriga que o conduz, ao segundo os cavalos, ao terceiro a armação de ferro e de madeira assente sobre as rodas. As emoções sugerem os movimentos que o corpo imita, o pensamento dirige as emoções. Até aqui estamos perante uma correlação do domínio comum. Mas agora, vamos introduzir na imagem um factor que Platão talvez tenha preferido não mensionar: o passageiro. É ele que diz ao condutor para onde quer que ele vá, o que deve fazer, o caminho de deve tomar, o destino da viagem. Imaginemos que o condutor não conhece a região por onde o mandam. Está, no entanto, disposto, para ganhar a vida, a ir por um caminho que não conhece, com risco até de ser assaltado pelo desconhecido.
Nem sempre, porém, o condutor e o carro estão em condições de fazerem o que é mandado. Uma viagem por vales aprazíveis, com boas estradas de alcatrão exige menos do taxista, do motor e do carro do que uma viagem pelas altas montanhas e por caminhos de pedras e de buracos, correndo ao lado de precipícios. Se, numa estrada fácil, com um destino mais ou menos conhecido para a viagem, nada mais se exige do que cumprir automaticamente as ordens vindas de trás, o mesmo não acontece num caminho difícil, com curvas e contracurvas, desvios por sítios perdidos, que só o passageiro conhece. É, então, necessária uma perfeita atenção às indicações que nos vão sendo dadas, confiança no passageiro que nos guia, e ainda o completo domínio das rédeas ou do volante num carro em que tudo esteja ajustado.
A analogia, não se esqueça o leitor, é a do homem com as suas três almas com o carro e as suas três componentes: auriga, cavalos e o carro propriamente dito. Se não o esquecermos, então a analogia conduz ao seguinte: no homem que está apenas habituado a pensar, a sentir e a pisar caminhos fáceis, qualquer coisa que venha alterar a costumada convivência entre as três almas é instintivamente repelida. É certo que do modo como intimamente convivem ele nada sabe ou sabe muito pouco. Até naqueles que julgam comandar as emoções e escolher as acções, a alma dominante é a subdiafragmática. Tudo neles, de facto, deriva da vida instintiva do corpo, sem cessar produzindo em modo inconsciente emoções e formações mentais. São ordenados de baixo para cima. Neste sentido, parecem ter tido razão Freud e Marx, mestres apenas sub diafragma, quando explicam, um pelo cio outro pela fome, pelos dois instintos que formam a carne, as acções, os sentimentos e os pensamentos do homem, por mais elevados e desinteressados que se afigurem.
O homem, porém, fez-se para viajar. Assim eram os portugueses antigos que se fizeram aos mares. Só viajando do mesmo modo, um ser pode transmudar-se num espírito superior, aberto às emanações divinas e ordenado de cima para baixo, que é aqui o mesmo que dizer do centro para a periferia, porque, em português marítimo, o alto é igual ao profundo2.
[TELMO, 2017: 58-59]

DR © 

NOTAS Pedestris
1- Há, de facto, relações diabólicas: e.g. tomar diacetilmorfina, vulgarmente denominada “cavalo” ou “heroína” (!), – uma droga artificial sintetizada, no século XIX, a partir da morfina (um produto natural derivado da papoila do ópio) – para atingir estados alterados de (in)consciência ou, digamos de outro modo, para baralhar a relação veículo, condutor, conduzido e…
2- Porque, pela lei hermética da correspondência: o que está em cima e como o que está em baixo e o que está dentro é como o que está fora. Atitude é altitude e, portanto, também será profundidade.
· O destaque de palavras a negrito (bold) é de nossa “autoria”.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
TELMO, António. O Horóscopo de Portugal e escritos afins. Sintra: Zéfiro, 2017, pp. 232. ISBN 978-989-677-152-2



quarta-feira, 23 de maio de 2018

Do (c)A(r)mando

Pedro Cuiça © num carro (algures, 2017)

Se a redenção da humanidade trouxesse a felicidade à medida de cada um, como, na generalidade, essa medida tem o tamanho de um automóvel, já pouco falta para estarmos todos salvos. Pelo contrário, se a redenção for, como tem sido ensinado, a ressurreição dos mortos ou o acordar dos adormecidos, então nunca estivemos tão longe dela como agora.
(…)
Foi Chesterton, um dos raros escritores que usam o humor para fazer metafísica, quem observou ser o homem moderno, ao invés da falsa ideia que faz de si, o menos dinâmico de toda a história da Humanidade. Desloca-se de automóvel para todo o lado, mas fá-lo sentado e sem se mexer.
(…)
Quando eu comecei a conhecer as palavras, perturbava-me ver a palavra automóvel aplicada a um objecto que para se mover precisava de alguém que o pusesse em marcha. A palavra sugere um prodígio: o de um objecto inerte que se move a si próprio.
Aos viventes chamavam os gregos autokinetoi, porque viam terem eles o princípio do movimento em si mesmos, o que não acontece com uma pedra que só se desloca quando sobre ela actua uma força exterior. O prestígio da tecnologia faz-se, em grande parte, com designações impróprias, que sugerem um prodígio onde, de facto, há uma banalidade.
Sem um humano (um macaco não serve) que o ponha a trabalhar, que o guie por curvas e rectas, subidas e descidas, e o faça parar, não há carro que mereça o nome de automóvel. Merece-o, porém se estiverem, como vimos que estão, ligados um ao outro por fibras musculares e nervosas.
(…)
O que podemos começar a compreender deste modo. Também o corpo nos leva, de lugar a lugar, mas somos nós os levados quem leva o corpo. E se se passasse o mesmo com o mundo?
[TELMO, 2017: 55-56]

Cláudia Damas © Museu da Tapeçaria Guy Fino (Portalegre, 2015)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
TELMO, António. O Horóscopo de Portugal e escritos afins. Sintra: Zéfiro, 2017, pp. 232. ISBN 978-989-677-152-2



segunda-feira, 21 de maio de 2018

O Pilar


Pedro Cuiça © Terra Chã (Alcobertas/PNSAC, 19 de Maio de 2018)

«Na verdade, tudo se conjuga para se poder afirmar que o mundo, a realidade empírica, a representação que dela fazemos na nossa consciência, é largamente uma invenção do nosso cérebro, mas é uma invenção coerente e útil, pois torna possível a vida do organismo no seu mundo próprio, mundo que o animal percepciona criando imagens que diferem de espécie para espécie, pois cada uma tem o seu ambiente, o seu nicho particular, e portanto a imagem da realidade que lhe é própria. Uma série considerável de observações e de experiências dá um forte apoio à conclusão fundamental de que o homem reconstrói, dá forma à sua «realidade» com as informações recebidas pelos seus sentidos, e com o seu cérebro e com a sua linguagem fazendo a «criação mental de mundos possíveis».
A evolução dos organismos é basicamente um processo de acumulação de informações, nos genes e na ontogenia («programa hereditário»), devido fundamentalmente ao trabalho da selecção natural, repetindo-se a cada geração (ou série de gerações) a aquisição realizada. É a memória genética do passado de opções determinadas pela selecção. Ora, este princípio tanto se aplica às estruturas e formas do organismo como ao seu comportamento. O organismo transforma impressões recebidas do ambiente em partes da sua interioridade. Interactua com o ambiente, havendo no animal como que uma tendência para interiorizar o mundo, quer pelo alimento que ingere1 quer pela representação que faz desse mesmo mundo. Houve uma propensão ao enriquecimento interior, à complicação em profundidade, o que exigiu, como compensação, uma superfície protectora-receptora muito elaborada, particularmente nos grupos mais evolucionados.
A evolução do sistema nervoso e a sua complexificação permitiram respostas cada vez mais elaboradas e seleccionadas da parte do organismo. Tudo entrou em diferenciação a partir da sensibilidade básica, nomeadamente as células nervosas, os receptores e condutores de estímulos e a complicação em centros nervosos, etc. Com os comportamentos inatos surgiram também formas de flexibilidade, de maleabilidade do comportamento. Com a complexidade dos sistemas nervosos e com as memórias que eles possuem, quer dizer, com a capacidade de acumular informações e de o animal se recordar delas, desenvolveram-se, naturalmente, formas elaboradas de aprendizagem individual criadora, nomeadamente com os reflexos condicionados. Um dos passos decisivos foi a «representação central do espaço», quer dizer, a capacidade de «reflectir de olhos fechados sobre o que a memória contém», ou seja, a aptidão de lembrar o que está registado na memória e de ponderar outras alternativas. Este passo fundamental está provavelmente na origem da autoconsciência. Mesmo o desenvolvimento das noções de relações temporais fez-se provavelmente em associação ou na dependência da capacidade de representação do espaço. E com esta aptidão nasceu a possibilidade de fazer experiências mentais, aventurar hipóteses de comportamento em cenários de risco, em determinadas situações ecológicas (reais ou imaginárias), com a vantagem de não se arriscar a pele, porque quem se expõe e morre é, por assim dizer, a hipótese, substituindo na aventura aquele que a fez. Ora, esta aquisição é provavelmente um dos pilares fundamentais da origem e evolução do espírito humano.»
[SACARRÃO, 1991: 248-250]

Por isso, e muito mais, vamos mas é escalar!...

Pedro Cuiça © Terra Chã (Alcobertas/PNSAC, 19 de Maio de 2018)

NOTA Pedestris
1- Interiorizar o mundo pelo alimento que ingere ou através do ar que inspira, mas que também expira, entre muitas outras interacções entre o indivíduo (?) e o meio que (supostamente) o rodeia, de modo que se torna virtualmente impossível delimitar, ou definir onde acaba e começa, a fronteira entre-ser indivíduo e ambiente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SACARRÃO, Germano da Fonseca. Ecologia e Biologia do Ambiente – II As Interdependências e o Homem. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1991, vol. II, pp. 322.

Se...

Se às vezes digo que as flores sorriem

Danielle Barlow © The Primrose Glamouring (2018)

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios…
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos…
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.

Alberto Caeiro – heterónimo de Fernando Pessoa – in O Guardador de Rebanhos (1914)


Pedro Cuiça © Terra Chã (Alcobertas/PNSAC, 19 de Maio de 2018)

Pedro Cuiça © Terra Chã (Alcobertas/PNSAC, 19 de Maio de 2018)

Pedro Cuiça © Terra Chã (Alcobertas/PNSAC, 19 de Maio de 2018)

Pedro Cuiça © Terra Chã (Alcobertas/PNSAC, 19 de Maio de 2018)