II. Pedestrianismo, percursos pedestres
e acesso
A maior parte dos mamíferos, e
até algumas aves, seguem rotinas diárias nas suas actividades gerando trilhos e
outros indícios da sua passagem. Várias espécies podem contribuir para a
manutenção de um mesmo trilho ao longo do tempo, o que se verifica principalmente
em áreas de denso coberto vegetal ou em determinados pontos de atravessamento
de cursos de água. O Homem, desde as suas origens nómadas, sempre fez parte
dessas deambulações territoriais responsáveis pela génese de uma rede viária
que remonta aos caminhos de pé-posto paleolíticos. A sedentarização e a
agricultura terão surgido a par dos primeiros caminhos e carreteiros, daí às
estradas romanas e aos caminhos medievais só foi preciso dar mais uns passos na
história.
Até à segunda metade do século
XVIII, altura em que entrou em serviço a malaposta para o transporte do
correio, as deslocações em Portugal faziam-se a pé, com o recurso a animais e
por via fluvial, confinando-se a espaços muito restritos. Deve-se aos romanos o
primeiro sistema de viação que se elevou acima das comunicações locais. Algumas
dessas estradas, calcetadas com grandes lajes, continuaram a servir e ainda
hoje são utilizados alguns troços.
A distribuição dos lugares onde a
população se concentrou, no espaço territorial português, foi um dos principais
factores que determinaram o traçado dos itinerários seguidos pelos homens nas
suas deslocações. Os caminhos por onde eram transportadas as principais
mercadorias, que assistiram à amplitude e à direcção dos meios de comunicação ou
às rotas de peregrinação (desde a Alta Idade Média, ao longo dos caminhos de
Santiago ou, mais recentemente, de Fátima).
A geografia constituiu, desde
sempre, uma condicionante às deslocações e, nessa medida, exerceu uma
influência incontornável sobre os modos de vida das populações, facilitando ou
dificultando e orientando os movimentos humanos em determinados sentidos. As
serras são obstáculos evidentes à circulação, sobretudo quanto mais elevadas,
mais compactas ou mais recortadas por uma rede de profundos vales encaixados.
Neste caso, ultrapassam o limite regional dos estabelecimentos humanos
permanentes e quedam “desertas”. Por isso: o Gerês (hoje parte do único Parque
Nacional existente no País) serve de raia entre Portugal e a Galiza, o Marão
separa os transmontanos dos minhotos, os habitantes das planuras a norte e a
sul da serra da Estrela ignoram-se mutuamente quase por completo e os algarvios
até há poucos anos pertenciam a um “reino” diferente do de Portugal.
Mas os maciços montanhosos mais
circunscritos não constituíram obstáculos de monta à circulação tradicional. As
vias de comunicação contornavam-nos sem grande dificuldade. Se queriam encurtar
caminho, os almocreves e viajantes atravessavam-nos, mesmo em pontos agrestes,
como era o caso da serra de Montejunto, que não impediu as relações do Baixo
Douro com a Beira Central. Se a neve caía, no Inverno, a circulação
interrompia-se durante alguns dias e os caminhantes, habituados a um ritmo
contado por jornadas de peões ou de bestas, suportavam a demora sem grandes
lamentações. Aparentemente, a construção de estradas e de caminhos-de-ferro, ao
acentuar o contraste entre a acessibilidade dos lugares, é que veio determinar
o isolamento dos povoados hoje perdidos nas serras, mas outrora, quando os habitantes
estavam habituados a caminhar durante várias horas, mantinham relações
frequentes e trocas constantes com a planície.
Foi nos maciços montanhosos onde
se desenvolveu um sistema de migrações alternantes entre as aldeias das terras
baixas (inverneiras) e os pastos ou campos de centeio e de batatas situados em
altitude e apenas frequentados no Verão (brandas). Mas a amplitude destas
deslocações sazonais restringia-se a apenas alguns quilómetros. No passado,
essas deslocações podem ter sido mais amplas, como acontecia com as antigas
transumâncias de Inverno, em torno da serra da Estrela, ou com as migrações de
trabalhadores que se empregavam nas ceifas de Trás-os-Montes, e que começavam
na Terra Quente para se prolongarem até ao Verão mais tardio da Terra Fria.
Por outro lado, as gargantas,
pelo menos as mais íngremes, com vertentes tão escarpadas que os caminhos não
conseguem vencê-las, são de facto obstáculos sérios à circulação, sobretudo
quando têm no fundo um curso de água caudaloso e não navegável. Mas estes são
raros. Os mais conhecidos são o Douro e o Tejo internacionais, onde se fixaram
trechos de fronteira abandonados durante séculos aos contrabandistas e hoje
ocupados por Parques Naturais.
As margens ribeirinhas podem
oferecer um caminho fácil, por ser regular e pouco inclinado, mas também podem
ser pantanosas ou escarpadas, impedindo, em ambos os casos, a passagem humana.
Em muitas regiões, as vias principais fogem dos vales e escolhem os
interflúvios secos, mantendo um traçado que era o preferido pelos romanos para
a instalação das suas vias principais. Conseguia-se desta forma um trânsito
rápido e regular. Normalmente os caminhos locais aproximavam as aldeias e vilas
instaladas em terras baixas, ao passo que as relações a distância consideráveis
atravessam as terras ermas e altas, mas em percursos com menos obstáculos.
Falamos do relevo e dos cursos de água como condicionantes da livre
circulação de pessoas e bens, apenas como exemplo, bem expressivo, de que, para
além de razões sociais (políticas ou outras), o acesso foi, desde sempre, mais
ou menos condicionado. As condicionantes de acesso não são, pois, nada de novo
apenas assumiram novas feições... Portanto, é fácil depreender que o exposto no
Capitulo I da Constituição Portuguesa,
sobre Direitos, liberdades e garantias pessoais, acerca do Direito de deslocação e de emigração (ponto 1 do Artigo 44º), será
um ideal a atingir mas, se não impossível, difícil de por em prática: “A todos os cidadãos
é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte
do território nacional”.
A rede viária nacional
Durante os séculos XVII e XVIII a
situação viária em Portugal foi muito semelhante à existente noutros países da
Europa no que respeita a vias de comunicação. Mas, nos finais do século XVIII,
enquanto outros países tomavam medidas importantes neste sector, Portugal nada
fez para alterar a situação.
Os almocreves, com as suas bestas
de carga, geralmente em número apreciável, deslocavam-se em grupo para fazerem
face aos diversos perigos a que estavam sujeitos, sobretudo os assaltos
perpetrados por homens ao serviço dos proprietários das terras por onde
passavam! Nas suas deslocações, percorriam o interior para trocar o peixe e
outros géneros de primeira necessidade por cereais e outros produtos
importantes para as povoações do litoral. Os itinerários que estabeleciam eram
bastante eficazes, não deixando qualquer lugarejo, fazenda ou monte sem uma
visita mensal, sobretudo de Março a Outubro.
Só na década de 1830 se percebeu
a importância de uma rede viária que estabelecesse ligações entre as diversas
regiões do País. É no contexto da Regeneração e através de um programa de
reformas e realizações públicas iniciado por Fontes Pereira de Melo, em
especial no domínio das Comunicações e dos Transportes, que se começam a sentir
os primeiros efeitos da Revolução Industrial.
A grande expansão do automóvel
ocorreu depois da I Guerra Mundial. Em Portugal, a expansão deste modo de
transporte no pós-guerra teve importantes consequências na organização do
território e na economia do País. Permitiu romper o isolamento de algumas
regiões com recursos consideráveis, viabilizando a sua exploração, e encurtou
distâncias-tempo entre um leque vastíssimo de origens e destinos, permitindo o
rápido escoamento de produtos agrícolas e industriais.
Os benefícios
sociais do acréscimo de riqueza pública resultantes do incremento da circulação
automóvel começaram a ser reconhecidos e institucionalmente apoiados na década
de 20. A
Junta Autónoma de Estradas (JAE) é criada em 1927, sob a tutela do Engº Duarte
Pacheco, organismo a que fica cometida a construção e manutenção de estradas do
País. Com a criação da JAE foi proposta inicialmente uma divisão das estradas
nacionais em duas classes: 1ª e 2ª classe. As estradas de 1ª classe
constituiriam a malha principal da rede, ligando Lisboa e as capitais de distrito
entre si e outros locais de importância nacional. As estradas de 2ª classe (correspondendo,
grosso modo às estradas distritais do plano de 1889) ligariam, essencialmente
as capitais de distrito às suas sedes de concelho e a outros locais de
importância distrital. Além disso continuaram a existir as estradas municipais
(ligando as sedes às outras povoações dos concelhos) e os caminhos vicinais (correspondendo
aos anteriores caminhos públicos).
Vários factores
se conjugaram para em 1944 aparecer a público o primeiro Plano Rodoviário
Nacional, revisto e aprovado no ano seguinte. No Plano Rodoviário Nacional de 1945 foram definidos, pela primeira
vez, uma série de normas e princípios que passaram a regular e a orientar toda
a construção de infra-estruturas rodoviárias até ao aparecimento, quatro
décadas depois, de um novo Plano Rodoviário Nacional (em 1985).
De acordo com o
Plano Rodoviário de 1945, a
rede de estradas portuguesa estava hierarquizada em três grandes classes, às
quais eram cometidas funções distintas. Cada uma tinha tutelas administrativas
e características técnicas específicas. A classificação usada dividia as
estradas em: estradas nacionais (de
1ª classe, de 2ª classe e de 3ª classe); estradas
municipais e caminhos públicos (municipais e vicinais).
O PRN de 1945
manteve as estradas municipais e voltou a designar por “caminhos públicos”, os
anteriores caminhos vicinais (que, mais tarde, passariam a designar-se caminhos
municipais). Para estas vias foram também atribuídas numerações.
Mais tarde, por
legislação avulsa e para promover as zonas florestais, o Governo criou um novo
tipo de estradas -
as estradas florestais -
destinadas a dar serventia e permitir o escoamento dos produtos florestais.
O Plano Rodoviário de 1945 previa
uma extensão total da rede de estradas de 59 325 quilómetros ,
distribuídos pelas diferentes classes; isto num total de 21 815 quilómetros
de estradas nacionais (37%) e 59 325 quilómetros
da rede municipal (63%), mais precisamente 17 860 quilómetros
de estradas municipais (30%) e 19 650 quilómetros
de caminhos municipais (33%).
A tutela administrativa das
estradas nacionais e dos caminhos florestais competia à Administração Central,
respectivamente à JAE e à Direcção-Geral de Florestas. A construção e a manutenção
das estradas e caminhos municipais competia aos municípios e juntas de
freguesia sob jurisdição da Administração Central.
Sublinhe-se que a rede
preconizada no Plano de 1945 não foi totalmente construída, atingindo-se a
década de 80 numa situação em que os recursos públicos do Orçamento de Estado
afectos à JAE eram, só por si, insuficientes para a gestão corrente do sistema
rodoviário nacional, que progressivamente se ia degradando. A insuficiente
dotação financeira para gerir a rede foi associada a outra razão de peso que
contribuiu para a revisão do Plano de 45: a extensão das estradas nacionais
(38%) era exagerada face às estradas municipais (30%) ou aos caminhos
municipais (32%).
As carências orçamentais para a
gestão da rede nacional, a necessidade de modernizar as vias segundo padrões
europeus -
por imperativo da própria adesão de Portugal ao Mercado Comum, que prevê a
rápida e livre circulação de pessoas e bens na Europa - levaram o Governo a
promulgar, em 1985, um novo Plano Rodoviário Nacional.
Em Portugal, actualmente “estrada nacional” (EN) é a designação
das estradas integradas na Rede Rodoviária Complementar da Rede Rodoviária
Nacional que não sejam classificadas como Itinerário Principal (IP). Existem
também troços desclassificados de Estradas
Nacionais que foram desintegrados da rede nacional e colocados sob
tutela dos municípios, mas cuja designação não foi alterada. Na sinalização de
trânsito, as estradas nacionais são normalmente indicadas pelo prefixo "N" seguido do número da estrada,
sendo o prefixo alternativo "EN"
utilizado muito raramente.
A denominação “estrada nacional” começou a ser
utilizada após a implantação da República, como substituição da antiga designação
de “Estrada Real”. De acordo com
o plano que havia sido estabelecido em 1889, a rede viária portuguesa incluía então as
estradas reais (de âmbito nacional),
as estradas distritais (de âmbito
regional) e as estradas municipais
(de âmbito local). Em 1910 a
antiga designação de "estrada real" foi substituída pela de
"estrada nacional". Em 1913 foi estabelecido um novo plano de
estradas, no qual a rede viária nacional passou a incluir apenas estradas
nacionais e estradas municipais. Além disso foram também incluídos na rede, os
caminhos públicos, vias rurais de interesse local.
O Plano
Rodoviário Nacional de 1985 veio reformular quase completamente o sistema de
estradas. Segundo esse plano a Rede Rodoviária passaria a ter duas componentes:
a Rede Fundamental, constituída por Itinerários Principais (IP) e a Rede
Complementar, constituída por Itinerários Complementares (IC) e outras
estradas. Este plano não se referia especificamente às estradas nacionais,
entendendo-se que estas seriam as "outras estradas". Na
sequência da implementação deste plano as antigas estradas nacionais que não
foram transformadas em IP ou IC, ou que não foram transferidas para as redes
municipais, mantiveram na prática a mesma designação e numeração.
Em 2000 foi publicado um novo Plano
Rodoviário Nacional, que consistia basicamente numa reforma do de 1985. Como
principal diferença, em relação à Rede Rodoviária Nacional, surgiu a
identificação concreta das estradas nacionais como parte da Rede Complementar.
Este plano também trouxe a novidade da criação de um novo tipo de estrada, as estradas regionais, criadas a partir da
reclassificação de parte das antigas estradas nacionais.
Parte II da palestra Pedestrianismo e Percursos Pedestres em Portugal - A Aventura da Sustentabilidade - Pedro Cuiça - IV Seminario Internacional sobre Senderismo y Territorio en Europa - situación del aceso al medio natural de los senderistas en Europa - European Ramblers Association - Málaga, 5 a 7/Jun. 2008
Referências bibliográficas
Referências bibliográficas
Martins, António Carvalho (1999):
Caminhos Públicos e Atravessadouros; 3ª Edição. Coimbra Editora, Coimbra, pp.
148.
-------- (2006):
Regulamento de Homologação de Percursos Pedestres; Federação de
Campismo e Montanhismo de Portugal.
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