terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A Aventura da Sustentabilidade

II. Pedestrianismo, percursos pedestres e acesso

A maior parte dos mamíferos, e até algumas aves, seguem rotinas diárias nas suas actividades gerando trilhos e outros indícios da sua passagem. Várias espécies podem contribuir para a manutenção de um mesmo trilho ao longo do tempo, o que se verifica principalmente em áreas de denso coberto vegetal ou em determinados pontos de atravessamento de cursos de água. O Homem, desde as suas origens nómadas, sempre fez parte dessas deambulações territoriais responsáveis pela génese de uma rede viária que remonta aos caminhos de pé-posto paleolíticos. A sedentarização e a agricultura terão surgido a par dos primeiros caminhos e carreteiros, daí às estradas romanas e aos caminhos medievais só foi preciso dar mais uns passos na história.
Até à segunda metade do século XVIII, altura em que entrou em serviço a malaposta para o transporte do correio, as deslocações em Portugal faziam-se a pé, com o recurso a animais e por via fluvial, confinando-se a espaços muito restritos. Deve-se aos romanos o primeiro sistema de viação que se elevou acima das comunicações locais. Algumas dessas estradas, calcetadas com grandes lajes, continuaram a servir e ainda hoje são utilizados alguns troços.
A distribuição dos lugares onde a população se concentrou, no espaço territorial português, foi um dos principais factores que determinaram o traçado dos itinerários seguidos pelos homens nas suas deslocações. Os caminhos por onde eram transportadas as principais mercadorias, que assistiram à amplitude e à direcção dos meios de comunicação ou às rotas de peregrinação (desde a Alta Idade Média, ao longo dos caminhos de Santiago ou, mais recentemente, de Fátima).
A geografia constituiu, desde sempre, uma condicionante às deslocações e, nessa medida, exerceu uma influência incontornável sobre os modos de vida das populações, facilitando ou dificultando e orientando os movimentos humanos em determinados sentidos. As serras são obstáculos evidentes à circulação, sobretudo quanto mais elevadas, mais compactas ou mais recortadas por uma rede de profundos vales encaixados. Neste caso, ultrapassam o limite regional dos estabelecimentos humanos permanentes e quedam “desertas”. Por isso: o Gerês (hoje parte do único Parque Nacional existente no País) serve de raia entre Portugal e a Galiza, o Marão separa os transmontanos dos minhotos, os habitantes das planuras a norte e a sul da serra da Estrela ignoram-se mutuamente quase por completo e os algarvios até há poucos anos pertenciam a um “reino” diferente do de Portugal.
Mas os maciços montanhosos mais circunscritos não constituíram obstáculos de monta à circulação tradicional. As vias de comunicação contornavam-nos sem grande dificuldade. Se queriam encurtar caminho, os almocreves e viajantes atravessavam-nos, mesmo em pontos agrestes, como era o caso da serra de Montejunto, que não impediu as relações do Baixo Douro com a Beira Central. Se a neve caía, no Inverno, a circulação interrompia-se durante alguns dias e os caminhantes, habituados a um ritmo contado por jornadas de peões ou de bestas, suportavam a demora sem grandes lamentações. Aparentemente, a construção de estradas e de caminhos-de-ferro, ao acentuar o contraste entre a acessibilidade dos lugares, é que veio determinar o isolamento dos povoados hoje perdidos nas serras, mas outrora, quando os habitantes estavam habituados a caminhar durante várias horas, mantinham relações frequentes e trocas constantes com a planície.
Foi nos maciços montanhosos onde se desenvolveu um sistema de migrações alternantes entre as aldeias das terras baixas (inverneiras) e os pastos ou campos de centeio e de batatas situados em altitude e apenas frequentados no Verão (brandas). Mas a amplitude destas deslocações sazonais restringia-se a apenas alguns quilómetros. No passado, essas deslocações podem ter sido mais amplas, como acontecia com as antigas transumâncias de Inverno, em torno da serra da Estrela, ou com as migrações de trabalhadores que se empregavam nas ceifas de Trás-os-Montes, e que começavam na Terra Quente para se prolongarem até ao Verão mais tardio da Terra Fria.
Por outro lado, as gargantas, pelo menos as mais íngremes, com vertentes tão escarpadas que os caminhos não conseguem vencê-las, são de facto obstáculos sérios à circulação, sobretudo quando têm no fundo um curso de água caudaloso e não navegável. Mas estes são raros. Os mais conhecidos são o Douro e o Tejo internacionais, onde se fixaram trechos de fronteira abandonados durante séculos aos contrabandistas e hoje ocupados por Parques Naturais.
As margens ribeirinhas podem oferecer um caminho fácil, por ser regular e pouco inclinado, mas também podem ser pantanosas ou escarpadas, impedindo, em ambos os casos, a passagem humana. Em muitas regiões, as vias principais fogem dos vales e escolhem os interflúvios secos, mantendo um traçado que era o preferido pelos romanos para a instalação das suas vias principais. Conseguia-se desta forma um trânsito rápido e regular. Normalmente os caminhos locais aproximavam as aldeias e vilas instaladas em terras baixas, ao passo que as relações a distância consideráveis atravessam as terras ermas e altas, mas em percursos com menos obstáculos.
Falamos do relevo e dos cursos de água como condicionantes da livre circulação de pessoas e bens, apenas como exemplo, bem expressivo, de que, para além de razões sociais (políticas ou outras), o acesso foi, desde sempre, mais ou menos condicionado. As condicionantes de acesso não são, pois, nada de novo apenas assumiram novas feições... Portanto, é fácil depreender que o exposto no Capitulo I da Constituição Portuguesa, sobre Direitos, liberdades e garantias pessoais, acerca do Direito de deslocação e de emigração (ponto 1 do Artigo 44º), será um ideal a atingir mas, se não impossível, difícil de por em prática: “A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional”.

A rede viária nacional
Durante os séculos XVII e XVIII a situação viária em Portugal foi muito semelhante à existente noutros países da Europa no que respeita a vias de comunicação. Mas, nos finais do século XVIII, enquanto outros países tomavam medidas importantes neste sector, Portugal nada fez para alterar a situação.
Os almocreves, com as suas bestas de carga, geralmente em número apreciável, deslocavam-se em grupo para fazerem face aos diversos perigos a que estavam sujeitos, sobretudo os assaltos perpetrados por homens ao serviço dos proprietários das terras por onde passavam! Nas suas deslocações, percorriam o interior para trocar o peixe e outros géneros de primeira necessidade por cereais e outros produtos importantes para as povoações do litoral. Os itinerários que estabeleciam eram bastante eficazes, não deixando qualquer lugarejo, fazenda ou monte sem uma visita mensal, sobretudo de Março a Outubro.
Só na década de 1830 se percebeu a importância de uma rede viária que estabelecesse ligações entre as diversas regiões do País. É no contexto da Regeneração e através de um programa de reformas e realizações públicas iniciado por Fontes Pereira de Melo, em especial no domínio das Comunicações e dos Transportes, que se começam a sentir os primeiros efeitos da Revolução Industrial.
A grande expansão do automóvel ocorreu depois da I Guerra Mundial. Em Portugal, a expansão deste modo de transporte no pós-guerra teve importantes consequências na organização do território e na economia do País. Permitiu romper o isolamento de algumas regiões com recursos consideráveis, viabilizando a sua exploração, e encurtou distâncias-tempo entre um leque vastíssimo de origens e destinos, permitindo o rápido escoamento de produtos agrícolas e industriais.
Os benefícios sociais do acréscimo de riqueza pública resultantes do incremento da circulação automóvel começaram a ser reconhecidos e institucionalmente apoiados na década de 20. A Junta Autónoma de Estradas (JAE) é criada em 1927, sob a tutela do Engº Duarte Pacheco, organismo a que fica cometida a construção e manutenção de estradas do País. Com a criação da JAE foi proposta inicialmente uma divisão das estradas nacionais em duas classes: 1ª e 2ª classe. As estradas de 1ª classe constituiriam a malha principal da rede, ligando Lisboa e as capitais de distrito entre si e outros locais de importância nacional. As estradas de 2ª classe (correspondendo, grosso modo às estradas distritais do plano de 1889) ligariam, essencialmente as capitais de distrito às suas sedes de concelho e a outros locais de importância distrital. Além disso continuaram a existir as estradas municipais (ligando as sedes às outras povoações dos concelhos) e os caminhos vicinais (correspondendo aos anteriores caminhos públicos).
Vários factores se conjugaram para em 1944 aparecer a público o primeiro Plano Rodoviário Nacional, revisto e aprovado no ano seguinte. No Plano Rodoviário Nacional de 1945 foram definidos, pela primeira vez, uma série de normas e princípios que passaram a regular e a orientar toda a construção de infra-estruturas rodoviárias até ao aparecimento, quatro décadas depois, de um novo Plano Rodoviário Nacional (em 1985).
De acordo com o Plano Rodoviário de 1945, a rede de estradas portuguesa estava hierarquizada em três grandes classes, às quais eram cometidas funções distintas. Cada uma tinha tutelas administrativas e características técnicas específicas. A classificação usada dividia as estradas em: estradas nacionais (de 1ª classe, de 2ª classe e de 3ª classe); estradas municipais e caminhos públicos (municipais e vicinais).
O PRN de 1945 manteve as estradas municipais e voltou a designar por “caminhos públicos”, os anteriores caminhos vicinais (que, mais tarde, passariam a designar-se caminhos municipais). Para estas vias foram também atribuídas numerações.
Mais tarde, por legislação avulsa e para promover as zonas florestais, o Governo criou um novo tipo de estradas - as estradas florestais - destinadas a dar serventia e permitir o escoamento dos produtos florestais.
O Plano Rodoviário de 1945 previa uma extensão total da rede de estradas de 59 325 quilómetros, distribuídos pelas diferentes classes; isto num total de 21 815 quilómetros de estradas nacionais (37%) e 59 325 quilómetros da rede municipal (63%), mais precisamente 17 860 quilómetros de estradas municipais (30%) e 19 650 quilómetros de caminhos municipais (33%).
A tutela administrativa das estradas nacionais e dos caminhos florestais competia à Administração Central, respectivamente à JAE e à Direcção-Geral de Florestas. A construção e a manutenção das estradas e caminhos municipais competia aos municípios e juntas de freguesia sob jurisdição da Administração Central.
Sublinhe-se que a rede preconizada no Plano de 1945 não foi totalmente construída, atingindo-se a década de 80 numa situação em que os recursos públicos do Orçamento de Estado afectos à JAE eram, só por si, insuficientes para a gestão corrente do sistema rodoviário nacional, que progressivamente se ia degradando. A insuficiente dotação financeira para gerir a rede foi associada a outra razão de peso que contribuiu para a revisão do Plano de 45: a extensão das estradas nacionais (38%) era exagerada face às estradas municipais (30%) ou aos caminhos municipais (32%).
As carências orçamentais para a gestão da rede nacional, a necessidade de modernizar as vias segundo padrões europeus - por imperativo da própria adesão de Portugal ao Mercado Comum, que prevê a rápida e livre circulação de pessoas e bens na Europa - levaram o Governo a promulgar, em 1985, um novo Plano Rodoviário Nacional.
Em Portugal, actualmente “estrada nacional” (EN) é a designação das estradas integradas na Rede Rodoviária Complementar da Rede Rodoviária Nacional que não sejam classificadas como Itinerário Principal (IP). Existem também troços desclassificados de Estradas Nacionais que foram desintegrados da rede nacional e colocados sob tutela dos municípios, mas cuja designação não foi alterada. Na sinalização de trânsito, as estradas nacionais são normalmente indicadas pelo prefixo "N" seguido do número da estrada, sendo o prefixo alternativo "EN" utilizado muito raramente.
A denominação “estrada nacional” começou a ser utilizada após a implantação da República, como substituição da antiga designação de “Estrada Real”. De acordo com o plano que havia sido estabelecido em 1889, a rede viária portuguesa incluía então as estradas reais (de âmbito nacional), as estradas distritais (de âmbito regional) e as estradas municipais (de âmbito local). Em 1910 a antiga designação de "estrada real" foi substituída pela de "estrada nacional". Em 1913 foi estabelecido um novo plano de estradas, no qual a rede viária nacional passou a incluir apenas estradas nacionais e estradas municipais. Além disso foram também incluídos na rede, os caminhos públicos, vias rurais de interesse local.
O Plano Rodoviário Nacional de 1985 veio reformular quase completamente o sistema de estradas. Segundo esse plano a Rede Rodoviária passaria a ter duas componentes: a Rede Fundamental, constituída por Itinerários Principais (IP) e a Rede Complementar, constituída por Itinerários Complementares (IC) e outras estradas. Este plano não se referia especificamente às estradas nacionais, entendendo-se que estas seriam as "outras estradas". Na sequência da implementação deste plano as antigas estradas nacionais que não foram transformadas em IP ou IC, ou que não foram transferidas para as redes municipais, mantiveram na prática a mesma designação e numeração.
Em 2000 foi publicado um novo Plano Rodoviário Nacional, que consistia basicamente numa reforma do de 1985. Como principal diferença, em relação à Rede Rodoviária Nacional, surgiu a identificação concreta das estradas nacionais como parte da Rede Complementar. Este plano também trouxe a novidade da criação de um novo tipo de estrada, as estradas regionais, criadas a partir da reclassificação de parte das antigas estradas nacionais.

© DR

Parte II da palestra Pedestrianismo e Percursos Pedestres em Portugal - A Aventura da Sustentabilidade - Pedro Cuiça - IV Seminario Internacional sobre Senderismo y Territorio en Europa - situación del aceso al medio natural de los senderistas en Europa - European Ramblers Association - Málaga, 5 a 7/Jun. 2008


Referências bibliográficas
Martins, António Carvalho (1999): Caminhos Públicos e Atravessadouros; 3ª Edição. Coimbra Editora, Coimbra, pp. 148.
-------- (2006): Regulamento de Homologação de Percursos PedestresFederação de Campismo e Montanhismo de Portugal.

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