Continuação de
A Aventura da Sustentabilidade:
Caminhos públicos e caminhos privados
Ao nível da jurisprudência, têm
sido dois os critérios preconizados para reputar determinado caminho como
público. Um deles – expresso em Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 1970 – onde se argumenta
que “o simples uso directo e imediato dum
caminho pelos moradores das povoações não lhe concede carácter público, pois é
indispensável provar-se que foi produzido ou legitimamente apropriado por
pessoa colectiva de direito público e que por ela é administrado”. Outro - expresso
em Assento, do mesmo Supremo Tribunal de
Justiça, datado de 19 de Abril de 1989 - onde se fixou, na altura
com força obrigatória geral, que “São
públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e
imediato do público.”. Saliente-se que hoje já não vigora o regime dos
assentos a fixar doutrina com a força obrigatória geral que era instituído pelo
artigo 2º do Código Civil. De acordo com este segundo critério não será, pois,
necessário que o caminho tenha sido apropriado ou construído pelo Estado ou por
uma autarquia local e que esta tenha praticado actos de administração,
jurisdição ou conservação. Muito embora se reconheça tratar-se de matéria
sujeita a diversas interpretações, poderemos genericamente reputar um caminho
como caminho público pela circunstância de certa faixa de terreno estar afecta
à circulação da generalidade das pessoas. Mas não nos podemos esquecer de que
tal se trata de uma generalização ou simplificação.
É de fundamental importância
efectuar uma análise mais aprofundada da doutrina perfilhada no Assento do
Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Abril de 1989, tendo em conta as diversas
interpretações que possam ser avançadas e suas implicações. A qualificação de um caminho como sendo
público, face à doutrina vertida no referido assento pressupõe a verificação de
dois requisitos: a imemorialidade dessa utilização e a utilização pelo público
em geral.
Não basta, pois, a existência de um acesso aberto a pessoas
determinadas ou a um círculo determinado de pessoas para considerar a utilização
pelo público em geral, assim como também a imemorialidade do uso só se verificará
se a autoridade competente provar que o começo do uso directo e imediato pelo
público não faz parte da memória dos vivos. Nestes termos, se um determinado caminho
se encontra no uso directo e imediato do público desde tempos anteriores à
memória das pessoas vivas, que desde sempre por lá passaram sem oposição de
ninguém, estamos perante um caminho público insusceptível de apropriação
privada.
O assento de 19 de Abril de 1989 deve, porém, ser interpretado
restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua
afectação à entidade pública, ou seja, à satisfação de interesses colectivos de
certo grau ou relevância. Na
falta deste requisito e, em especial, quando se destinem apenas a fazer ligação
entre caminhos públicos por prédio particular com vista ao encurtamento não
significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros. No entanto, será de
salientar que os atravessadouros, por mais antigos que sejam, foram abolidos
pelo art. 1383.º do Código Civil, desde que não se mostrem estabelecidos
em proveito de prédios determinados, constituindo servidões. Note-se, porém, que
também são reconhecidos os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam
a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas
destinadas à sua utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os
admitidos em legislação especial (segundo o art. 1384º do Código Civil). Se a passagem se traduz num poder conferido a
um proprietário de um prédio encravado de aceder à via pública, então estaremos
perante uma servidão legal de passagem, estaremos perante um caminho de servidão.
As servidões prediais podem ser
constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de
família. (art. 1547, nº 1, do Código Civil). As servidões legais, na falta de
constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por
decisão administrativa, conforme os casos. (art. 1547, nº 2, do Código Civil). Pela
constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao
prejuízo sofrido. (art. 1554º do Código Civil). A mudança de um leito de
servidão, que passe a localizar-se em outro local ou sítio, pertencente ainda
ao mesmo prédio – mudança do locus servitutis – não implica a constituição
de uma nova servidão de passagem, por contrato. Pese embora se altere o traçado
da servidão, “o respectivo direito é o
mesmo” pelo que não se inicia uma nova situação possessória.
Por último, será conveniente
definir a noção de usucapião: “A posse do direito de propriedade ou de
outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao
possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo
exercício corresponde a sua actuação”. Invocada a usucapião, os seus efeitos
retrotraem-se à data do início da posse. Se a posse tiver sido constituída com
violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se
desde que cesse a violência ou a posse se torne pública.
Havendo dúvidas sobre a qualificação da dominialidade de um caminho,
competirá aos tribunais comuns, na sequência do princípio da separação de
poderes previsto na Constituição da República Portuguesa (CRP), decidir acerca
da mesma.
Como já foi referido, a par dos caminhos
públicos municipais também existia a figura dos caminhos públicos vicinais, que
eram caminhos de mero interesse rural e não se destinavam geralmente ao
trânsito automóvel, possuindo uma largura mínima de plataforma de dois metros e
meio. No tocante aos caminhos vicinais, existe desde
há muito o entendimento fixado de que estes constituem ligações de interesse
local secundário (face aos caminhos municipais), vocacionadas para o trânsito
rural. Tais caminhos estavam a cargo das juntas de freguesia.
Neste contexto, importa abordar, do ponto de vista da legislação
existente, os caminhos no âmbito do domínio público da freguesia. O Decreto-Lei nº 34 593, de 11 de Maio de
1945, regia no sentido de caber às câmaras municipais a administração das
estradas municipais e dos caminhos municipais e que os caminhos vicinais
ficariam a cargo das juntas de freguesia. Embora este decreto-lei tenha sido
expressamente revogado pelo Decreto-Lei
nº 380/85, de 26 de Setembro e este, por sua vez, tenha sido revogado pelo Decreto-Lei nº 222/98, de 17 de Julho,
constata-se que nenhum destes dois últimos diplomas contém normas sobre os
caminhos vicinais, o que tem levado grande parte da doutrina a considerar que o
disposto Decreto-Lei nº 34 593, de 11 de
Maio de 1945, em matéria de caminhos vicinais, se encontra ainda em vigor.
Nestes
termos, existe um entendimento homologado, por despacho de 4 de Fevereiro de
2002, de Sua Excelência o então Secretário de Estado da Administração Local, de
acordo com o qual “Apesar do Decreto-Lei
nº 34 593, de 11 de Maio de 1945 (cujo artigo 6º classificava os caminhos
públicos em municipais e vicinais) ter sido expressamente revogado pelo D.L. nº
380/85, de 29/9, que aprovou o Plano Rodoviário Nacional (e que foi por sua vez
revogado pelo D.L. nº 222/98, de 17 de Julho), resulta da aplicação do
Decreto-Lei nº 42 271, de 31 de Maio de 1959, e do Decreto-Lei nº 45 552, de 30
de Janeiro de 1964, e através de um argumento a “contrário sensu”, que deverão ser considerados vicinais, e
portanto sob jurisdição das respectivas Juntas de Freguesia, todos os caminhos
públicos que não forem classificados como municipais.” Trata-se de uma
solução interpretativa uniforme em matéria de administração local, para efeitos
do disposto no Despacho nº 6695/2000 (2ª série), de Sua Excelência o então
Ministro Adjunto, publicado no Diário da República, II Série, Nº 74, de 20 de
Março de 2000.
Deve ainda acrescentar-se que o Código Administrativo dispõe ainda hoje, no seu
artigo 253º, que é atribuição das juntas de freguesia deliberar sobre a
construção, conservação e reparação dos caminhos que não estejam a cargo das
câmaras municipais. Os caminhos públicos ou vicinais aparecem
frequentemente contrapostos ao direito de propriedade privada que é
característico dos caminhos particulares,
“cuja propriedade
pertence a pessoas singulares ou colectivas e dos quais ninguém pode servir-se
a não ser essas ou outras, desde que com o seu consentimento”.
Aplicando os considerandos atrás expostos a situação
concreta, tudo indica que se está perante potencial caso de conflito sobre a
livre circulação de pessoas em caminho que atravesse propriedade particular e
que estabeleça a ligação com outros caminhos. Sendo que, alegadamente, este
tenha sido livremente utilizado pela população e com carácter contínuo desde há
várias gerações. A circunstância acabada de referir poderá legitimar, por parte
da assembleia de freguesia, por iniciativa própria ou por solicitação da junta,
uma tomada de posição que reconheça ao caminho em questão a manutenção da
qualidade de caminho vicinal (isto tendo em conta o previsto na Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, e na
redacção actualizada pela Lei nº
5-A/2002, de 11 de Janeiro). No entanto, chama-se mais uma vez a atenção
para o facto de caber aos tribunais judiciais o dirimir deste tipo de questões,
conforme decorre da muita jurisprudência conhecida sobre a matéria, de onde se
destaca o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Junho de 1942, no
qual se observa que “Os Tribunais comuns
são os competentes para decidir sobre a natureza dos caminhos, sobre se são ou
não são particulares”. Pelo que é no âmbito dos tribunais judiciais que uma
autarquia poderá reclamar a qualificação de um caminho como caminho vicinal e
tentar fazer valer os consequentes direitos de manter a sua administração e a
circulação por parte da população.
Dado que o domínio público dos caminhos vicinais está, por
natureza, fora do comércio por não poder ser objecto de direitos privados
(conforme preceitua o Código Civil por força do seu artigo 202º, número 2), se
a junta ponderar favoravelmente a pretensão de um particular alterar um caminho
vicinal torna-se necessário que esta proponha à assembleia de freguesia a
prática de um acto administrativo de desafectação do actual traçado por forma a
que este passe a integrar o domínio privado da autarquia. Com este acto, poderá
a freguesia dispor da faixa de terreno em causa, podendo, designadamente,
torná-la objecto de permuta com a faixa assumida como alternativa para o novo
traçado.
Na medida em que venha a concretizar-se a permuta dos
terrenos correspondentes a essas faixas (ou outro tipo de negócio que implique
a mudança do direito de propriedade), deve a autarquia, seguidamente, proceder
à afectação do novo traçado ao seu domínio público. Compete à assembleia de
freguesia deliberar sobre a afectação e desafectação de bens do domínio público
da autarquia – tal decorre do preceituado na Lei nº 169/99, de 18 de Setembro,
na redacção que actualmente lhe é conferida pela Lei nº 5-A/2002, de 11 de
Janeiro.
Estamos em crer, que tanto as câmaras municipais como as
juntas de freguesia apenas podem eliminar, respectivamente, os caminhos
municipais e vicinais mediante a constatação do não uso do caminho pela
generalidade da população havendo assim lugar a uma desafectação tácita do caminho
em causa do domínio público, sendo necessário no entanto, a nosso ver, uma
deliberação da respectiva assembleia municipal ou assembleia de freguesia nesse
sentido. Da mesma forma, e tal como já referimos, também para que determinado
caminho seja considerado do domínio público há que por acto administrativo
afectá-lo a este domínio, competindo também à assembleia de freguesia
pronunciar-se sobre este assunto. Assim sendo, parece-nos não poder um
particular fechar um caminho público, já que a competência para tal acto é da
câmara municipal ou da junta de freguesia.
Por seu lado, para
que um caminho outrora particular se converta em público é necessário que pelo
abandono do proprietário este deixe prescrever os seus direitos e que o Estado
ou outra pessoa colectiva de direito público pratiquem actos ou factos que
representam, através da conservação, reparação, regulamentação de trânsito, etc., a intenção ou o "animus" sem o qual não há posse
jurídica. Era entendido pelos seguidores desta tese (em resultado do artigo
380º do Código Civil de 1867, conjugado com o artigo 1º, alínea g, do
Decreto-Lei nº 23565, de 12 de Fevereiro de 1934) que resulta não bastar o uso
público para caracterizar a dominialidade pública dos caminhos. De acordo com o
artigo 380º, nº 1, do citado Código Civil de 1867, pertencem à categoria das
coisas públicas as estradas, pontes e viadutos construídos e mantidos a
expensas públicas, municipais ou paroquiais. Porém, o actual Código Civil não
se refere às coisas públicas, limitando-se, no artigo 202º, nº 2, a estabelecer que se
consideram fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de
direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que
são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
Sendo entendimento geral no domínio do Direito Real ou
Direito das Coisas que, como a dominialidade de certas coisas não está definida
na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas são
públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade
pública que lhes está inerente. Desta forma, será suficiente para que uma coisa
seja pública o seu uso directo e imediato pelo público desde tempos imemoriais,
não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição
por pessoa colectiva de direito público; sendo público o caminho que seja
utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da
pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.
Este critério de distinção entre caminhos públicos e
privados é aquele que foi seguido pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça
de 1989. Em nosso entender, também este segundo critério é o que melhor se
adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar
registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo
administração e conservação dos caminhos, e, desta forma, se obstar à
apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse
público por interesses privados. Sendo por isso suficiente para a qualificação
de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar
afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação.