«O QUARTO INIMIGO DO
GUERREIRO
Com efeito, pelo que me diz respeito, o sonho que vivo há oitenta
anos é constituído por uma quantidade mínima de pesadelos. De resto, o que me é
contrário deixa-me mais ou menos indiferente. A vida é um sonho. Perturba-me às
vezes pensar no que haveria de mal por detrás desses pesadelos.
Estou velho. A velhice é, segundo o famoso Índio inventado por
Castañeda, o quarto inimigo do guerreiro. Tentei sair deste “deixa andar”, depois de ter visto o meu
fracasso a escrever a Gramática para o Abel Lacerda. O I Ching aconselhou-me retomar o caminho que em tempos
pratiquei sob o impulso de Max Hölzer. Fiz várias tentativas de praticar a
meditação. Vi, mais uma vez, que a minha individualidade vocacionada para a
arte poética se dissolvia com a prática dessa meditação, em que, como sabe,
temos de deixar toda a imagem, todo o sentido, todo o pensamento.
Eu sei que sou, como é cada homem, um misterioso mágico microcosmo
que só se conhecerá tendo a coragem de descer ao poço da alma, se é que há alma
e não só corpo. Isto hoje já não me entusiasma. Além disso o Jung, apesar do
seu nome parecer chinês, está-me indicando que o caminho de um ocidental não é o do Oriente.
[TELMO, 2014: 189]
© Pedro Cuiça
António Telmo foi um sábio ancião. A leitura deste seu pequeno
texto – O quarto inimigo do guerreiro – revela de forma exemplar, para além da
sua enorme mestria e perspicácia, uma inquebrantável coragem intelectual. Quem
conhece a sua Arte Poética bem sabe
que a “poesia” a que alude é activa
demanda, feita de experiências e de vivências operativas, longe de esvaimentos e vacuidades. Tal como conhecerá
a sua alusão à inversão esotérica de oriente e ocidente…
Este seu texto lembrou-me o Zaratustra, inventado por Nietzsche,
quando, ao descer a montanha onde viveu uma década, se cruzou com um velho santo num bosque e ao se apartar deste, após
uma curta conversa, disse para si próprio: será que este santo ancião não sabe
que Deus está morto (Gott ist tot)? Uma
espécie de inopinada analogia face a outra “improvável” constatação: será que
não sabem que, a determinada escala ou ponto de vista, não existe oriente nem ocidente? No entanto, a essa escala não se poderá negar a perspectiva da imutabilidade
do Norte Geográfico… E, contudo, até essa permanência não passa de ilusão! Todavia, é possível descer às
profundezas do Nadir e ascender às elevadas altitudes do Zénite. Parar é morrer?!
© algures na Net
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Lisboa-. Guimarães Editores,
1985, pp. 376.
TELMO, António. Terra
Prometida. Sintra: Zéfiro, 2014, pp. 214. ISBN 978-989-677-115-7
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