Oriente, outra vez orient'a(c)ção?
«Ó céu por cima de mim, ó pureza, ó
profundeza! Ao contemplar-te estremeço de desejos divinos.
Elevar-me à tua altura – eis para mim a
profundidade! Ocultar-me no coração da tua pureza – eis a minha inocência.
(…)
E nas minhas peregrinações solitárias, de
que tinha a minha alma fome durante as noites e pelos caminhos de acaso? E
quando eu escalava montes, a quem procurei sempre nas montanhas, senão a ti?
E todas essas peregrinações, e todas essas
ascensões de montanha, que eram senão um expediente e uma maneira de iludir a
minha impotência? O que eu queria era voar,
voar em ti.»
Friedrich NIETZSCHE in Antes da Aurora (1985: 181-182)
Nicolas Roerich © Path to Shambhala (1933)
Podia-se ter passado na Ilha imaginada por
Camões o que se diz nesta citação de Henry Corbin:
«Quando Zoroastro abandonou a vida, o seu Xvarnach, essa flama emanada da luz
infinita de Deus, foi guardado nas águas do lago Kansaoya, de onde emerge a montanha das auroras, Mons
Victorialis, uma multidão de Fravartis é quem o guarda. No fim do
nosso ciclo ou Aiôn, uma jovem entrará nas águas do lago místico. A luz
gloriosa de Zoroastro penetrará no seu corpo e ela “conceberá aquele que virá
triunfar sobre todos os malefícios dos demónios e dos homens.»
Com efeito, a estrofe 42 do canto nono d’Os Lusíadas alude ao mesmo mistério
pelas palavras da deusa auroral, Vénus, rogando ao seu filho Amor, “aquele em
quem tem a sua potestade”:
Quero que haja no reino
neptudiano,
Onde eu nasci, progénie forte
e bela,
E tome exemplo o mundo vil,
malino
Quem contra tua potência se
rebela,
Para que entendam que muro
adamantino
Nem triste hipocrisia vale
contra ela.
Mal haverá na terra quem se
guarde
Se teu fogo imortal nas águas
arde.
A união pelo amor do herói e da deusa no
palácio de cristal do alto da montanha
das auroras, dando origem a uma
progénie forte e bela, só foi possível pela depuração, no Gama, do elemento
violento, da hubris, com que os
filhos da terra, os gigantes, fazem o assalto ao céu. Todos temos hoje a crua
vivência do que é o titanismo. O Adamastor é o próprio Vasco da Gama em
aparição aos seus próprios olhos. É, igualmente, o mesmo Camões na sua
“natureza terrível”, que é a que lhe atribuem por estas palavras os seus
contemporâneos. Assim se explica que seja a mesma a forma feminina desejada
pelos dois, a cristalina Tethis. Onde o filho tenebroso da terra soçobra, o
filho de Luso, agora senhor de Tirso, vê realizado o seu alto desejo. Pela dobragem do cabo, quando a rota inflecte na
direcção dos países da aurora, a natureza terrível é sublimada pelo amor.
[TELMO, 2016: 67-68]
Pedro Cuiça © no sítio (2019)
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
NIETZSCHE;
Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães Editores, 1985, pp.
376.
TELMO,
António. Viagem a Granada. Sintra: Zéfiro, 2016, pp. 476. ISBN
978.989-677-143-0
Pedro Cuiça © Quinta da Regaleira (Sintra, 2016)
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