sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O Caminho...


Tao () – O Caminho da Natureza

Tao ou Dao () é uma palavra chinesa que significa 'caminho', 'trilho', 'rota'... Em japonês pronuncia-se "Do" – o símbolo associado às artes tradicionais como o aiquido, o judo, o jodo, o kendo, o kyudo ou o chado (o caminho do chá). Tao significa a essência primordial ou verdadeira natureza fundamental do Universo (e de nós mesmos). Tao não é um 'nome' de uma 'coisa', mas a ordem natural subjacente ... É, portanto, "eternamente sem nome" e distingue-se, portanto, das inúmeras coisas 'nomeadas' (formas e estruturas visíveis) que são consideradas suas manifestações.



sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Pelo caminho que houver


«Menino, pois, vem Jesus viver com o poeta (…). Vem viver para a aldeia, exactamente como Alberto Caeiro, porque o ar da cidade se encontra demasiado corrompido pela acumulação de metafísicas, não sendo o próprio urbanismo, provavelmente, mais do que a consequência de uma falta de naturalidade; e vem viver não para ser um pregador da bondade e da justiça, ambas daninhas por serem abstracções ou sobre abstracções terem seu alicerce, mas para chapinhar nas poças de água, limpar o nariz ao braço direito e atrever-se, até, a outras mais ousadas artes. Ligada a esta, a de ser uma criança natural, tem ainda outra missão, a de ensinar o poeta a olhar para as coisas, que na flor existem ou que existem nas pedras quando devagar as tomamos e lentamente as vamos deixando ser. É ele, pegando Alberto Caeiro pela mão, que o leva de passeio, enquanto a outra mão do Menino se dá a tudo o que existe, e vão os três andando, não pelo caminho que há e em que demasiado é patente a obra e a determinação dos que pensam, mas pelo caminho que houver; o que, por ser, existir. Tão bem se dão os dois, que até nessa relação de humano a humano foi possível desaparecer o pensar: não pensam um no outro; juntos são, por um acordo íntimo.» 
[SILVA, 1996: 60-62]


«Sem se mexer, nem sequer por dentro, como dele dizia Álvaro de Campos, Fernando Pessoa agudamente se observa a si mesmo e ao grupinho que com ele tinham formado os três poetas. Era o conjunto de mais penetrante inteligência, de maior capacidade de ironia, de menor provincianismo que já mais se constituía em Portugal; no entanto, tendo tão superiormente ultrapassado a vida, podendo, por exemplo, dizer a um Sá-Carneiro que o não achavam completamente civilizado, podendo tratar a sociedade portuguesa do seu tempo com o desembaraço, o desdém e a agressividade com que a tratavam – apenas, de onde a onde, com algumas ingenuidades, como a de propor Mensagem a políticos cuja característica essencial era a de não serem nem imperiais, nem proféticos, nem épicos mas chapadamente pedestres, retrógrados, locais – o certo era que afinal o meio ambiente acabava por os vencer, com as bebidas, o fumo e os cafés de Fernando Pessoa, o exílio sem glória de Ricardo Reis, a morte prematura de Alberto Caeiro, e é fora de dúvida ser a tuberculose uma doença de ambiente, e o cansaço permanente de Álvaro de Campos. O que os abatia e afinal os unia num mesmo denominador era essa falta de uma energia que todos louvaram e todos punham como o bem mais desejável de todos os bens, mas que apenas lhe dava para escreverem seus panfletos de várias formas e os comentarem ou comentarem os dos outros à volta das mesas do Martinho.» [SILVA, 1996: 81-82]

Pedro Cuiça © Martinho da Arcada (Lisboa, 4/02/2017)

«Não haverá salvação para o mundo enquanto não entendermos e fizermos penetrar em nossas consciências este facto basilar, e enquanto as nossas escolas, transformando-se inteiramente, não forem, em lugar de máquinas de fabricar adultos, viveiros de crianças; enquanto não forem as crianças que nos levem, não pelo caminho que uma ciência fáustica previu, mas pelo que houver, dando a mão, ao mesmo tempo, a nós e às coisas: enquanto não for o Menino Jesus nosso Deus verdadeiro.» [SILVA, 1996: 87]

PC ©


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SILVA, Agostinho da. Um Fernando Pessoa. Lisboa: Guimarães Editores, 1996, pp. 196. ISBN 972-665-345-2


quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Estados d'alma


Pedro Cuiça © Da Graça (Lisboa, 18/09/2019)

Disse [o professor suíço de estética e filosofia Henri-Frédéric] Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamarmos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.
De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim cresce erva, chove na erva que cresce, e o sol doira a extensão de erva que cresceu [está a crescer] ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certo era dizer que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tão-somente de uma metáfora.
Estas palavras casuais foram-me ditas pela grande extensão da cidade, vista à luz universal do sol, desde o alto de São Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto como uma virtude nobre o entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da outra banda são uma Suíça achatada. (…)

No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação de privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob a sola dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que é diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, ou ventos, como a de Éolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no reconhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais [que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.
[SOARES, 2014: 85-86]

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SOARES, Bernardo. O Livro do Desassossego. Porto: Assírio & Alvim, 2014, pp. 480. ISBN 978-972-37-1787-7



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Posicionamento e Navegação


Pedro Cuiça © Ermida de São Saturnino (Peninha - Sintra, 23/11/2019)

nortear, o norte ou o desnorte?...

«Poderíamos encontrar outras referências, tanto no Ocidente como nas tradições orientais, para tentar fazer compreender aquilo que é de facto uma diferença de orientação. O Ser não está necessariamente orientado para um Pólo único, o que explica as diferentes Vias Reais, que não conduzem, pois, ao mesmo Lugar-estado…

O nosso trabalho, nas sociedades tradicionais, é levar os possíveis candidatos à Aventura a percepcionar o mundo em vez de o pensar. É este “parar o mundo”, fruto da desidentificação bem sucedida do mental, que permite, por exemplo, “contrair o tempo”, competência indispensável para abordar a demanda.» [BOYER, 2011: 22]


Referência bibliográfica
BOYER, Rémi. O Quadrante do Despertar – Livro Lunar. Sintra: Zéfiro, 2011, pp. 68. ISBN 978-989-677-075-4

A Via da Montanha


Il consiglio è non spaventarsi delle oltre seicento pagine del libro, poiché uno dei pregi di questo lavoro di Francesco Tomatis, filosofo, nonché alpinista e garante scientifico di Mountain Wilderness, è la possibilità di gustarlo un po’per volta. Del resto sarebbe impossible fare altrimenti, tanti sono gli spunti e le suggestioni – dall’economia e politica all’ecologia, dall’architettura all’arte, alla cultura in senso lato. A introdurci in questo poliédrico mondo sono tanti personaggi – scrittori e poeti, politici, pensatori, studiosi, registi, pittori, musicisti, alpinisti… tutti accomunati da un orizzonte “di montagna” vissuto come esperienza direta. Quel che si compone lungo le pagine è un grande afresco che, di là dalla visione d’insieme, propone una molteplicità di singoli dettagli su cui meditare. Uno, a titolo d’esempio: la civiltà occitana, presentata qui attraverso gli studi di Simone Weil – colei che l’ha indicata come «l’única, in Europa, che abbia incarnato pari alla greca antica la vera libertà spirituale» – e gli scritti del giornalista Carlo Grande e, ancora, l’opera profondamente intrisa di natura del poeta Fréderic Mistral. Cosa si insegna dunque la montagna? Tomatis sembra suggerire che il segreto st anel cogliere i suoi elementi essenziali; e ci sprona ad ascoltarsi e indagarli non solo com gli strumenti del pensiero, ma attraverso concreti modelli di vita.
Anna Girardi,
in Montagne360, nº 86, p. 72

Livro: La Via della Montagna
Autor: Francesco TOMATIS
Editora: Bompiani (Abril de 2019)
ISBN: 9788830100107
Número de páginas: 688
Preço: 20€



Referência bibliográfica
Montagne360 – la revista del Club alpino italiano. Milão: Nov. 2019, nº 86, pp. 80.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Ética e Desporto


Tiago Lagarto © Gredos (Fev. 2004)

Na próxima quinta-feira (28 de Novembro) estarei na Universidade da Beira Interior (UBI), na Covilhã, para participar numa acção de formação sobre a temática Ética e Desporto – As desigualdades Desportivas, juntamente com José Sampaio e Nora, Mário Carvalho, Dulce Esteves e Catarina Carvalho. A iniciativa, organizada pela Federação de Desportos de Inverno de Portugal, decorrerá, das 11.00 às 13.00, no Departamento de Ciências do Desporto da UBI, sob a égide do Plano Nacional de Ética no Desporto. Esta trata-se de uma acção de formação contínua, validada pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), no âmbito da componente geral, correspondendo a 0.4 Unidades de Crédito para a revalidação de Títulos Profissionais de Treinador de Desporto (TPTD).
Como é hábito, irei falar sobre Ética e Deontologia em Desportos de Montanha, tal como noutras iniciativas similares nas quais fui interveniente, designadamente na Escola Superior de Desporto de Rio Maior, na Escola Superior de Desporto e Lazer (de Melgaço), na Escola Superior de Turismo e Hotelaria (de Seia) e no Centro de Formação da Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal (em Lisboa e no Porto). A acção de formação da próxima quinta-feira, na Universidade da Beira Interior, é de entrada livre e gratuita. Aqui fica o convite para estarem presentes e a mensagem de que serão muitíssimo bem-vindos.



Atalhando

Pedro Cuiça © Fojo (Arrábida, 13/09/2019)

«Por meio dos rochedos semeadas
Verei dependurar silvestres plantas
Verdes, em pedras duras sustentadas.
(...)
O que nos largos campos se passea,
Subindo nesta Serra, se caminha
Atalhando o que neles se rodea.»

Frei Agostinho da Cruz (1540-1619)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Da/Na Senda


«Ó IRMÃOS DA SENDA!
Por que tendes deixado de mencionar o Bem-Amado e permanecido longe de Sua Santa Presença? A essência da beleza está dentro do pavilhão inigualável, estabelecida no trono da glória, enquanto vos ocupais em contendas vãs. Os doces aromas da santidade emanam e o sopro da bondade se move, mas vós todos estais penosamente aflitos e privados disto. Ai de vós e dos que trilham essas veredas e seguem em vossas pegadas!»
«Que seja visto agora o que vossos esforços no caminho do desprendimento revelarão.»
Bahá’u’lláh

«Só depois de todas as revoluções – e as haverá, pois a inteligência é impotente perante os hábitos, sobretudo os maus, dos poderosos – virá a revolução que vale e em que será guia o voluntário Pobre de Assis, santo só então para os homens de todas as religiões e para os que tenham a de as não terem: a revolução do despojamento, da disponibilidade e do ascender à poesia: pois somente como poeta, isto é, criador, na arte, na ciência, na técnica, na acção e na contemplação, será o homem verdadeiramente à imagem e semelhança do Divino: centelha em nós do pensamento eterno.»
«A única revolução é a de despojar-se cada um das propriedades que o limitam e acabarão por o destruir, propriedade de coisas, propriedade de gente, propriedade de si próprio.»
Agostinho da Silva


Há cerca de 800 anos, no mês de Setembro de 1219, em plena Cruzada, Francisco de Assis promove um "encontro de paz" com o Sultão do Egipto Malik al Khamil (pintura de Mariel Manoel, F.M.M.)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bahá’u’lláh. As Palavras Ocultas de Bahá’u’lláh. Rio de Janeiro: Assembleia Epiritual Nacional dos Bahá’is do Brasil, 3ª ed., 1985, pp. 138.
SILVA, Agostinho da. Virá a Revolução! (1981) in Textos e Ensaios Filosóficos II. Lisboa: Âncora Editora, 1999, pp. 388. ISBN 978-972-780-020-3

Sobre a(s) Via(s)


Breve ensaio sobre a(s) Via(s)


«Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 26)

«Considerando-me paradoxal, dirigem-me o melhor elogio que eu poderei ter.»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 76)

«O mundo tem tantas possibilidades que até o impossível é possível»
Agostinho da Silva (BRANCO, 2006: 44)


No dia 13 de Fevereiro do presente ano [2018] passaram 112 anos sobre o nascimento de Agostinho da Silva e, nessa data especial, não só tive a propensão para reflectir sobre o percurso desse ser invulgar como o ensejo de escrever sobre três características a ele associadas – a Liberdade, a Força e a Sabedoria/Beleza – enquanto virtudes essenciais, entre outras, no palmilhar daquilo que se entenderá por a(s) via(s). Desiderato que conduziu rápida e, quase diria, inexoravelmente à extrapolação daquilo que se poderá considerar a orientação a seguir, na enteléquia do movimento, não só por “homens de génio” mas igualmente por qualquer “comum dos mortais”.
Esse Estranhíssimo Colosso1 que foi Agostinho, na sua multifacetada complexidade, surge, antes de mais, como um Homem simples e humilde, profundamente entusiasmado, culto e convicto… Um poeta à solta, exímio conhecedor da Idade Antiga, apaixonado pela Idade Média e arauto da Idade Futura do Espírito Santo. Um pensador que não desdenharia o epiteto de “libertário”, porque libertador e cultor do exercício do «pensamento libérrimo» (BRANCO, 2006: 69), mas que não seria certamente circunscrito pelo mesmo. Difícil, se não impossível de “rotular”1, foi indubitavelmente um paladino da Liberdade, mormente no sentido de «todo o homem (…) ser aquilo que ele tem de ser: um criador sem nenhuma espécie de inibição» (Agostinho da Silva in MENDANHA, 1998: 56). E é precisamente essa sua faceta de paladino da Liberdade – qual cavaleiro andante – que tomamos como ponto de partida do caminhar/caminho(s) ou do empreender uma ou mais via(gen)s, como se queira ou possa…  Lembremos que Agostinho, tendo sido um reiterado defensor da vadiagem e da errância – daqueles considerados «errantes, no sentido de que poderiam andar por aqui e por acolá» (Agostinho da Silva in Conversas Vadias) –, abordou precisamente a Liberdade num ensaio denominado “Ritmos de Marcha (SILVA, 1990: 113-117). Titulo promissor, se tivermos em conta a importância da “gestão do esforço”, na continuidade da demanda, que não deverá olvidar a sábia máxima «Festina lente»2.
O pensamento de Agostinho da Silva apesar de se (re)velar sob a forma de uma aparente simplicidade, categórica e incisiva, oculta uma difícil e contraditória, senão paradoxal, complexidade. Tal como a vida é difícil3, o seu pensamento não é fácil. Facto constatável, desde logo, pela sua ascética afirmação da Liberdade «pela conquista e domínio de si mesmo, através do caminho único que têm apontado a experiência e os séculos: o caminho da ascese mais rigorosa e absoluta, da oração contínua e do amor dos homens em Deus e por Deus» (ibidem: 19). Um caminho único, porque assente na renúncia comum – saber «ser ascético no meio da abundância» e preferir «ao poder a santidade» (ibidem: 55) –, e simultaneamente múltiplo, porque palmilhado por cada um de forma diferente. Um modo difícil e pouco usual de entender a Liberdade, nos dias de hoje, tendo em conta que Agostinho não concebia que «se possa definir o homem como um animal cuja característica ou cujo último fim seja o de viver feliz», embora considerasse que «nele seja essencial o viver alegre» (ibidem, 51). Nas palavras de Agostinho da Silva (ibidem: 51-52):

«Os felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a viagem dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos para entender as duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade, a cegueira, a inflexibilidade das leis mecânicas, que são bem as representantes do Fado, e cuja grandeza verdadeira só se pode sentir no desastre; é quando a catástrofe chega que a fatalidade se mede em tudo o que tem de divino, e foi pena que não fosse esta a lição essencial que tivéssemos tirado da tragédia grega; como pena foi que só tivéssemos olhado o fatalismo dos árabes pelo seu lado superficial.
Por outra parte, é igualmente na desgraça que se mede a outra grande força do mundo, a da liberdade do espírito, que permite julgar o valor moral do desastre e permite superar, pelo seu aproveitamento, o toque do fatal; não creio que Prometeu estivesse alguma vez verdadeiramente encadeado: talvez o estivesse antes e depois da prisão; mas era realmente um espírito de liberdade e um portador da liberdade o que, agrilhoado à montanha, se sentiu mais livre ainda; porque podia consentir ou não no desastre, superá-lo ou não, ser alegre ou não. (…) No fundo é o seguinte: é necessário, ajudando a realizar o homem no que tem de melhor, que a mesma energia que se revelou pela física do mundo da extensão, se revele pelo espírito do mundo do pensamento e domine a primeira vaga de energia, como onda rolando sobre onda mais alto vai. E mais ainda: que pelo momento de infelicidade, o que não poderá nunca suceder no caso da felicidade, entenda o homem como as duas espécies ou os dois aspectos de energia se reúnem em Deus. Só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por aquela piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.»

Agostinho defende a liberdade da sua própria disciplina, numa «espécie de vida militar» e simultaneamente monástica, a que não estranha os votos de pobreza – «do abandono do ter (…) libertando-se da posse», – de celibato – «livrando de que outros o possuam» e «livre também de tratar o outro como se fosse» sua posse – e de obediência – «que livra a pessoa de ser possuída por ela própria e de ter a ideia de que só serve para isto ou para aquilo» (in Conversas Vadias).
E, no entanto, esse pensamento que parece marcado pela fatalidade (a ideia de fatum), de renúncia e sofrimento, surge como rampa de lançamento – atitude – para os altos voos do Espírito Santo: «a pessoa de Deus na qual está o domínio do inesperado; daquilo que parece ser a Liberdade pura e não o destino» (ibidem). Atitude é altitude! E é «nesse abrir-se ao Espírito Santo, ao talvez absolutamente imprevisível, que cada homem encontra o caminho para se cumprir a si mesmo – a única exigência que se lhe faz» (BRANCO, 2006: 93). Também poderemos ver essa atitude como opção de andar à solta ou andar ao Deus dará4, mais uma vez como se queira ou possa, sendo essa afinal (ou em princípio) uma forma de acreditar, como o faziam (e fazem) os povos primais5, na Providência Divina, pondo de lado a previdência humana: «porque não reparamos talvez ainda suficientemente na pressa com que todos nós, homens supostamente religiosos, tratamos de entesourar o que tememos que amanhã pode esquecer à Providência de Deus, da qual, no entanto, continuamos a falar abundantemente: só, porém, a falar» (SILVA, 1990: 69). Nós, os ditos “civilizados”, «estamos tão afastados do natural como do sobrenatural, quando estes deviam ser os pontos centrais da nossa existência: plenamente vivemos no artificial» (ibidem: 69). Uma caminhada liberta ou rumo à libertação passará pelo regresso às nossas origens: «temos de voltar aos povos naturais, como uma etapa necessária para o caminho do sobrenatural, e sem dúvida voltaremos, ou por nossa livre vontade ou, como tantas vezes sucede àqueles a quem Deus mais ama, pela viva e contundente força de golpes exteriores» (ibidem: 70).
É o percorrer/traçar (d)o (nosso) caminho que nos torna fortes, quando nos cumprimos na caminhada… na peregrinação. A demanda é feita de experiências e de vivências, surgindo como uma filosofia operativa e, portanto, poética – no sentido que foi explanado por António Telmo na sua Arte Poética – resultado e resultante de uma mutação interior6 (SINDE, 2005: 15-16). O caminho faz-se caminhando e o caminhar faz o caminho, no concreto e/ou na imaginação7, numa manifesta transitoriedade daquele que transita, mesmo quando tudo indica (parece!) que esse andarilho está parado. Diógenes (séc. IV a.C.), segundo consta, face à questão que lhe foi colocada sobre “se o movimento é real” ter-se-á simplesmente levantado, andado e exclamado “Solvitur ambulando” (está resolvido ao caminhar)! Como facilmente se poderá constatar existem muitas outras questões, problemas e paradoxos cujas respostas se encontrarão ou resultarão no/do caminhar. Uma via é simultaneamente caminhada/caminho, é andança e trajecto… O caminhar e o caminho podem materializar-se no terreno, mas são também metáforas ou alegorias de/da vi(d)a. Por estas e outras razões e emoções, há uma ética no andar e, claro, uma estética. Não basta Andar Bem o “talent de bien faire8 é fundamental Andar em Beleza9. E a Beleza, tal como a Sabedoria, é Amor.

«Amar é fazermo-nos ao mar.»
Agostinho da Silva


Pedro Cuiça, 29 de Junho de 2018







NOTAS
1- Título da biografia de Agostinho da Silva, escrita por António Cândido Franco (Quetzal, 2015), em que, na contracapa, esse Colosso é caracterizado nos seguintes moldes: «prosador de altíssimos dons, narrador inventivo, cronista subtil, biógrafo monumental, pedagogo de largo esforço, monitor de fina manha, professor de sucesso, pensador destemido, poeta bissexto, gramático de muita língua, estóico severo, homem de desleixada túnica, entomologista, tradutor, criador do Centro de Estudos Afro-Orientais, escândalo bíblico, trickster, ogã de terreiro baiano, patriarca de larga tribo, povoador, amante, perrexil, poliglota, sonhador, farsante, polígamo, explicador, joaquimita, gato, galo, sábio, escuteiro, pop-star, colosso, bandeirante, franciscano anormal, homem do tá-tá-tá, aprendiz de valsa, cidadão do mundo, aldeão antigo, monstro, vadio truculento, marau divino, criança eterna, biógrafo de Miguel Ângelo, homem de cinco cabeças e dez instrumentos (…), o optimista, o entusiasta, sem a mais pequena mancha de desânimo no futuro.»
2- «Devagar, que temos pressa» (VICENTE, 2010: 121) ou «apressa-te devagar». Segundo transmissão pessoal de Pedro Teixeira da Mota, a máxima do legendário impressor e humanista Aldus Manutius, hoje ainda proferida e assumida por alguns peregrinos, caminheiros e alpinistas.
3- A VIDA É DIFÍCIL: é a frase com que começa o livro, de M. Scott Peck, O Caminho Menos Percorrido (Sinais de Fogo, 1999). Tal torna-se perfeitamente óbvio, na concepção de Agostinho da Silva, ao tratar-se a vida de uma luta pela santidade – de uma guerra santa – e, portanto, «contra o diabo, sendo este identificado como a fatalidade, isto é, contra aquilo que constitui uma oposição à liberdade» (SINDE, 2013: 72). «Entretanto deve o homem ir trabalhando duplamente: no sentido da sua santificação e no de ajudar a criar as condições que possibilitem a santificação dos outros. A este duplo trabalho poderíamos chamar, seguindo bem de perto a terminologia simbólica de Agostinho da Silva, a circulatura do quadrado. Por quadrado entendamos a terra e por círculo o céu, tal como se tradicionalmente entendem.» (ibidem: 80)
4- «(…) sabendo que muitas vezes Deus dá, tirando.» (SINDE, 2013)
5- Para não utilizar a palavra “primitivos” pela carga pejorativa que, em geral, se lhe associa!
6- A palavra poesia deriva do grego poieín (acção) mas de uma acção que deve partir de uma mutação interior (SINDE, 2005: 15-16).
7- Imaginação enquanto “mundo imaginal”, “nação de imagens”. · «(…) o «mundus imaginalis», não é fantasia ou mentira nascida na mente, mas um mundo tão real como o sensível, intermediário dele para com o mundo inteligível. Os sufis designam-no por Malakut, os cabalistas por Malcuth! (…) Prevendo a sua confusão com a fantasia, costuma-se dar à imaginação o epíteto de criadora ou criatriz. A realidade por ela percebida é objectiva, no sentido de que se alguém a revela, outro nas mesmas condições verá o mesmo. A única diferença para com o mundo sensível, com o que aí é visto e logo contado por distintos observadores, consiste em que, além, a visão fixa um universo movente.» [TELMO, 2015: 35· Malcuth trata-se do primeiro da «série cabalística dos mundos: Malcuth, Yetsirah, Beriah, Aziluth; ou sufi: Nahut, Malakuth, Jabarut, Lahut» (ibidem: 57). · Aquilo que no contexto muito reservado do esoterismo Bahá’i é expresso como a “ontologia dos mundos divinos”: NāsūtMalakūtJabarūtLāhūt e Hāhūt. O termo “Malakūt” surge três vezes no Alcorão mas não as outras palavras que provieram das tradições judaica e cristã através de outras fontes. Originalmente a palavra “Malakūt”, no contexto do Islão, não estava associada à dimensão angélica (malak) mas sim ao conceito de soberania (mamlaka). Na verdade, essa palavra deve ser entendida sob duas perspectivas, por um lado enquanto Manifestação e por outro enquanto “mundo das imagens” (‘ālam al-mithāl), que é o mundo intermediário entre Jabarūt e o mundo humano da mortalidade (Nāsūt): entre os “céus” e a “terra”. No contexto Bahá’i, Malakūt surge como uma dimensão do mundo contingente (‘ālam-i mumkināt), onde as almas residem, e é o desenvolvimento espiritual atingido em Nāsūt que permitirá a essas almas a representação simbólica – poderemos dizer “as imagens” – das suas “funcionalidades” em MalakūtNāsūt e Malakūt não são dois mundos separados mas fazem parte de uma realidade maior que pode ser apelidada de “o mundo da criação” (‘ālam-i khalq) ou “o mundo contingente” (‘ālam-i mumkināt) e ambos são governados por leis semelhantes. Compreender-se-á, a esta luz, a famosa frase de Hermes Trismegisto de um modo muito particular: «O que está em cima é como o que está em baixo». Ou dito de outra forma: o mundo que está em cima é a imagem do mundo que está em baixo, e mais além… Afinal, aquilo que António Telmo vislumbra nos versos de Luís Vaz de Camões é a «profunda solicitação» de «ver o invisível» (ibidem: 58); de, através do natural (da natureza), ver o sobrenatural.
8- “O talento de Bem-fazer”: inscrição que se encontra no túmulo do Infante D. Henrique, o Navegador (1394-1460)…
9- E será a beleza que nos remete para o maravilhamento ou encantamento? · «A definição de Leonardo Coimbra contém o limite de ser uma definição matemática. Se dissermos que a Beleza é a forma íntima da luz manifesta aos sentidos pela transcendência das coisas em que está presente, indicamos aquele misterioso elemento também dominante na Força, enquanto fascínio, e na Sabedoria, enquanto iluminação interior. Referimo-nos à luz. A unidade na variedade é a Beleza porque é uma irradiação.
Vê-se assim, por esta compresença na mesma substância, que a Sabedoria, a Força e a Beleza constituem uma tríade de componentes indissociáveis. Daqui termos dito, há momentos, que a ligação da Beleza à fantasia e ao supérfluo é uma ilusão do espírito. Aparece-nos, pelo contrário, a Beleza como o corpo da Verdade e pressentimos que a forma de uma flor ou de uma gota matinal de orvalho escondem profundidades insondáveis.» [TELMO, 2015: 54]; que o mesmo será dizer altitudes insondáveis – o negrito é de nossa autoria · Noutra “corrente” (que será a mesma sob outra forma?), diz-se igual sob outra expressão: «unidade na diversidade».

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
· BRANCO, João Maria de Freitas. Agostinho da Silva – Um Perfil Filosófico. Sintra: Zéfiro, 2006, pp. 118. ISBN 972-8958-19-6
· BORGES, Paulo. Tempos de Ser Deus – A Espiritualidade Ecuménica de Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora Editora, 2006, pp. 208. ISBN 978-972-780-177-0
· FRANCO, António Cândido Franco. O Estranhíssimo Colosso – Uma Biografia de Agostinho da Silva. Lisboa: Quetzal, 2015, pp. 736. ISBN 978-989-722-186-6
· MEDANHA, Victor. Conversas com Agostinho da Silva. Lisboa: Pergaminho, 1998, 9ª ed., pp. 128. ISBN 972-711-057-6
· SILVA, Agostinho da. As Aproximações. Lisboa: Relógio d’Água, 1990, pp. 132. ISBN 972-708-110-X
· SINDE, Pedro. Sete Sábios Portugueses. Chaves: Tartaruga, 2013, pp. 232. ISBN 978-989-8057-39-6
· SINDE, Pedro. Terra Lúcida. Matosinhos: Publicações Pena Perfeita, 2005, pp. 160. ISBN 972-8925-05-0
· TELMO, António. Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas. Sintra: Zéfiro, 2015, pp. 374. ISBN 978-989-677-129-4.
· VICENTE, António Balcão. O Templário d’El-Rei. Lisboa: Ésquilo, 2010, pp. 430. ISBN 978-989-8092-88-5