Pedro Cuiça © Da Graça (Lisboa, 18/09/2019)
Disse [o professor suíço de
estética e filosofia Henri-Frédéric] Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil.
Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é
criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em
fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamarmos ver em vez de lhe chamarmos
sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.
De resto, de que servem estas especulações de
psicologia verbal? Independentemente de mim cresce erva, chove na erva que
cresce, e o sol doira a extensão de erva que cresceu [está a crescer] ou
vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o
mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certo era dizer
que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter
a mentira de uma teoria, mas tão-somente de uma metáfora.
Estas palavras casuais foram-me ditas pela
grande extensão da cidade, vista à luz universal do sol, desde o alto de São
Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me
abandono do metro e setenta de altura, e sessenta quilos de peso, em que
fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que
sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto como uma
virtude nobre o entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da
outra banda são uma Suíça achatada. (…)
No alto ermo dos montes naturais temos, quando
chegamos, a sensação de privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura,
do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar,
fica-nos sob a sola dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno
de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o
erguimento e o píncaro que somos.
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura
que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura.
Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de
que somos mais altos.
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais
livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno
monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou
levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
Grande, porém, é o que considera que do vale ao
céu, ou do monte ao céu, a distância que é diferença não faz diferença. Quando
o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de
Deus fosse raios, como a de Júpiter, ou ventos, como a de Éolo, o abrigo seria
o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da
altura nos músculos e a negação de subir no reconhecimento. Ele
tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que
doura os píncaros dourá-los-á para ele mais [que] para quem ali o sofre; e o
palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao
que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
Com estas reflexões me consolo, pois que me não
posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando,
transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os
altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um
sol que já nem está no poente.
[SOARES, 2014: 85-86]
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SOARES, Bernardo. O Livro do Desassossego.
Porto: Assírio & Alvim, 2014, pp. 480. ISBN 978-972-37-1787-7
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