Albert Bierstadt - Mont Blanc (séc. XIX)
«(…) estávamos a usar
as nossas pernas para atravessar a paisagem.»
Bill BRAISON (in Cuiça, 2015: 55)
«A paisagem serve
para designar a espécie de pano de fundo que acompanha as nossas deambulações
sobre a superfície da terra.»
François BÉGUIN
(1995: 8)
A história da noção de paisagem revela que a palavra surgiu
de início para qualificar maneiras de ver em detrimento de maneiras de fazer
(BÉGUIN, 1995: 8). Até ao século XVII predominou uma ‘visão’ subjectiva da
paisagem, vinculada à acepção pictórica. Foram os pintores, depois os romancistas
e os geógrafos, que criaram essa noção ‘visual’ de paisagem… O termo
“paisagem”, a partir do século XIX, começa a ser utilizado pelos geógrafos, de
um ponto de vista essencialmente geomorfológico e, posteriormente, também tendo
em conta a componente antrópica na sua modelação. Nada de surpreendente tendo
em conta que a maior parte das paisagens europeias foram construídas, são o
resultado de uma longa história de intervenção humana, para além de uma
muitíssimo mais longa história geológica. No século XX destaca-se o surgimento
da abordagem holística da paisagem, iniciada por J. C. Smuts – autor de Holismo e Evolução (1926) –, tal como o
surgimento da perspectiva ecológica e ecosófica. Neste contexto extremamente
simplificado, já que ignora as concepções que sobre a matéria terão tido os
humanos na Idade Média – a também designada “Idade das Trevas” (!) – e em
épocas ainda mais recuadas, que se perdem na noite dos tempos (!!), facilmente
se constata diferentes formas de entender/vivenciar a paisagem.
Nicholas Roerich - Mount of Five Treasures (1933)
MONTANHAS DA MENTE
No que concerne a mudanças radicais de entender/vivenciar
paisagens destacamos a profunda mudança de paradigma na forma de “ver” a
alta-montanha. Na segunda metade do século XVII começou a generalizar-se o
sentimento do esplendor e beleza das paisagens montanhosas. Antes desse século,
as montanhas eram consideradas esteticamente repelentes: excrescências, verrugas
da terra, “desertos” e até mesmo – com as suas cristas labiais e vales vaginais
– ‘partes pudendas da natureza’, habitats
do sobrenatural, do hostil e de um bestiário a condizer (MAcFARLANE, 2004: 18).
A maior parte das pessoas no final do século XVIII não gostava da natureza
selvagem (wilderness) e, nesse
contexto, também da alta-montanha. Somente no século XIX é que se generalizou a
forma de ver “a beleza da(s) montanha(s)”, a par do interesse científico pela
alta-montanha. Num período de três séculos ocorreu, portanto, uma tremenda
revolução da percepção em relação às montanhas. Fenómeno que leva a questionar
se quando olhamos uma paisagem vemos o que realmente lá está ou aquilo que
sentimos/pensamos lá estar? O que chamamos “montanha” será uma conjunção do mundo
físico com a imaginação dos humanos: na verdade, uma “montanha da mente” na
feliz expressão de Robert MacFarlane (2004: 19).
Por último, não poderemos deixar de mencionar, no que
concerne a esta mudança de paradigma, a genialidade pioneira de Leonardo da
Vinci (1452-1519). Desde logo, o interesse científico que o levou a ascender
diversas montanhas, designadamente, em 1511 ou 1516, o monte Bô (2556 m), para
ver em primeira mão e “ao vivo” como era, de facto, esse meio. Interesse que, inevitavelmente,
também era de cariz artístico: «se sabe
que aquel genio admiró y sintió en su más profundo ser la belleza clásica de
las montañas» (FAUS, 2003: 48). Leonardo ficou certamente impressionado
pela forte luminosidade da montanha, pelo «potente azul del cielo, comparándolo
con el de las gencianas» (ibidem: 47).
Nesse contexto, «en sus pinturas dejará
de vez en cuando que los Alpes figuraran como fondo» (ibidem), como no famoso quadro da Mona Lisa ou Gioconda, algo
perfeitamente inovador não só em termos pictóricos como também conceptuais. Da
Vinci, que abriu os olhos da humanidade para inúmeras inovações, contribuiu
também para a descoberta da beleza da montanha.
Leonardo da Vinci - Mona Lisa, La Gioconda (1503-1506?)
Leonardo da Vinci - Santa Ana, a Virgem e o Menino (1510-1513)
GESTÃO COM BASE NA
PAISAGEM
Para aqueles que praticam actividades de ar livre, ademais
numa postura de ir ao encontro da Natureza, as três concepções da paisagem
apresentadas acima, numa abordagem histórica, podem ser vivenciadas
simultaneamente, aqui e agora, sob três perspectivas distintas mas, contudo,
complementares: (1) estética, (2) científica e (3) ecosófica.
A primeira perspectiva centra-se nas emoções e nos sentimentos
resultantes da paisagem: beleza, imensidão, pitoresco, etc.. Salienta-se, neste contexto, a apreensão das formas, cores e sons,
da própria luminosidade e sombras, os estados transitórios dos dias e das
estações, tal como as aspirações e inspirações individuais, como elementos
indutores susceptíveis de contribuir para a revelação das paisagens (BÉGUIN,
1995: 24).
A segunda explora as realidades abióticas, bióticas e
antrópicas de que a paisagem é a expressão conjunta, diremos nós que de modo
predominantemente geográfico (melhor seria dizer “científico”). As “paisagens
científicas” surgem, desta forma, como fisionomias que agrupam os traços e
elementos mais característicos de uma região: o seu relevo, as litologias
presentes, as linhas de água, o coberto vegetal, a fauna característica, a
arquitectura popular, as estradas e caminhos, etc..
A terceira centra-se na leitura e interpretação das
condições do meio e nas suas implicações a nível da tomada de decisões no que
concerne à gestão de actividades no terreno. Cada área apresenta condições do
terreno (paisagem exterior), variáveis ao longo dos dias e das estações do ano,
que devem ser convenientemente interpretadas e geridas, com implicações a nível
da tomada de decisões, no decurso de actividades, por parte dos envolvidos. Esta
terceira abordagem – ecosófica (e que, por isso, se pretende holística) – baseia-se,
como as anteriores, no “ver” (na visualização e/ou na leitura/interpretação da
paisagem), mas privilegia o fazer (que decisões tomar a partir dessa “visualização”
e/ou leitura/interpretação). A título de exemplo destacamos a leitura e a
interpretação das “paisagens celestes” (no que concerne à meteorologia) e as
suas implicações a nível da gestão de actividades no terreno.
A utilização prática destas três perspectivas de sentir/conhecer/analisar
as paisagens, no âmbito da gestão de actividades de ar livre no terreno, deve
decorrer em simultâneo, sem prejuízo de dar, em determinadas ocasiões, um
especial relevo ou enfoque a uma ou duas delas. Por outro lado, a sequência de
abordagem dessas perspectivas não tem necessariamente de decorrer na sequência
histórica apresentada, ademais quando é sugerido que se processem em simultâneo
ou seja conveniente invertê-la.
Na verdade, para quem esteja a iniciar-se na gestão concreta
de actividades de ar livre e/ou tenha problemas de integrar as três
perspectivas em simultâneo, no terreno, é preferível inverter a sequência
histórica apresentada e começar precisamente pela abordagem ecosófica. Tendo em
conta a pirâmide de necessidades de Maslow, é fundamental dar atenção às necessidades
basilares – fisiológicas e de segurança – e, só depois, avançar rumo ao topo. Neste
contexto, começa-se por estar atento à designada “paisagem ecosófica”,
indissociável de uma abordagem prática (mormente técnica) de como fazer, focada
numa percepção holística, tendo por base a satisfação das necessidades
fisiológicas e a segurança dos envolvidos. Só depois se dará eventualmente importância
à denominada “paisagem dos geógrafos”, assente numa abordagem científica, com
vista a proporcionar aos envolvidos uma satisfação intelectual mediante a
transmissão de um conjunto atractivo de conhecimentos sobre o meio envolvente.
Por último, deverá ser dada uma particular atenção à chamada “paisagem dos
artistas”, ancorada numa abordagem estética, com vista a atingir um amplo bem-estar
e realização dos envolvidos, podendo mesmo ser atingidos estados elevados de
satisfação e de maravilhamento. O factor humano, designadamente nos seus aspectos
emocionais e intimistas (que poderemos designar por “paisagens interiores”),
surge, portanto, como uma variável central e centralizadora que deve ser
trabalhada desde o início até ao final de todas as actividades, e desde a base
até ao topo da pirâmide de Maslow. Só nesse contexto é que será possível
atingir uma percepção e gestão paisagística integral e integradora indissociável
dos sentidos: não só a visão como também a audição, o olfacto, o tacto e o
paladar.
PIRÂMIDE DE MASLOW
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
· AA.VV.. Manual de Monitores de Pedestrianismo.
Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal, 2001, pp. 136. ISBN
978-989-20-0564-5
· BÉGUIN,
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· CUIÇA,
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dos Livros, 2015, pp. 312. ISBN 978-989-626-721-6
· CUIÇA,
Pedro. Guia de Montanha – Manual Técnico de Montanha I. Lisboa:
Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal/Campo Base, 2010, pp. 224, ISBN
978-989-96647-1-5
· FAUS,
Agustín. Historia del Alpinismo – Montañas y Hombres: Hasta los albores
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· FERREIRA,
Conceição Coelho & SIMÕES,
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· LEOPOLD,
Aldo. Pensar Como Uma Montanha. Águas Santas: Edições Sempre-em-Pé,
2008, pp. 220. ISBN 978-972-8870-10-2
· MAcFARLANE, Robert. Mountains of the Mind – A History of a
Fascination. London: Granta Books, 2004, pp. 308
· NICOD,
Jean. Pays et Paysages du Calcaire. Paris: Presses Universitaires de
France, 1972, pp. 244.
· SERRÃO,
Adriana Veríssimo et al.. Filosofia e Arquitectura da Paisagem – Um Manual.
Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012, pp. 382. ISBN
978-989-8553-12-6
· SILVANO,
Filomena. Antropologia do Espaço. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp.
112. ISBN 978-972-37-1534-7
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