quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

É Paisagem


Albert Bierstadt - Mont Blanc (séc. XIX)

«(…) estávamos a usar as nossas pernas para atravessar a paisagem.»
Bill BRAISON (in Cuiça, 2015: 55)

«A paisagem serve para designar a espécie de pano de fundo que acompanha as nossas deambulações sobre a superfície da terra
François BÉGUIN (1995: 8)

A história da noção de paisagem revela que a palavra surgiu de início para qualificar maneiras de ver em detrimento de maneiras de fazer (BÉGUIN, 1995: 8). Até ao século XVII predominou uma ‘visão’ subjectiva da paisagem, vinculada à acepção pictórica. Foram os pintores, depois os romancistas e os geógrafos, que criaram essa noção ‘visual’ de paisagem… O termo “paisagem”, a partir do século XIX, começa a ser utilizado pelos geógrafos, de um ponto de vista essencialmente geomorfológico e, posteriormente, também tendo em conta a componente antrópica na sua modelação. Nada de surpreendente tendo em conta que a maior parte das paisagens europeias foram construídas, são o resultado de uma longa história de intervenção humana, para além de uma muitíssimo mais longa história geológica. No século XX destaca-se o surgimento da abordagem holística da paisagem, iniciada por J. C. Smuts – autor de Holismo e Evolução (1926) –, tal como o surgimento da perspectiva ecológica e ecosófica. Neste contexto extremamente simplificado, já que ignora as concepções que sobre a matéria terão tido os humanos na Idade Média – a também designada “Idade das Trevas” (!) – e em épocas ainda mais recuadas, que se perdem na noite dos tempos (!!), facilmente se constata diferentes formas de entender/vivenciar a paisagem.

Nicholas Roerich - Mount of Five Treasures (1933)


MONTANHAS DA MENTE
No que concerne a mudanças radicais de entender/vivenciar paisagens destacamos a profunda mudança de paradigma na forma de “ver” a alta-montanha. Na segunda metade do século XVII começou a generalizar-se o sentimento do esplendor e beleza das paisagens montanhosas. Antes desse século, as montanhas eram consideradas esteticamente repelentes: excrescências, verrugas da terra, “desertos” e até mesmo – com as suas cristas labiais e vales vaginais – ‘partes pudendas da natureza’, habitats do sobrenatural, do hostil e de um bestiário a condizer (MAcFARLANE, 2004: 18). A maior parte das pessoas no final do século XVIII não gostava da natureza selvagem (wilderness) e, nesse contexto, também da alta-montanha. Somente no século XIX é que se generalizou a forma de ver “a beleza da(s) montanha(s)”, a par do interesse científico pela alta-montanha. Num período de três séculos ocorreu, portanto, uma tremenda revolução da percepção em relação às montanhas. Fenómeno que leva a questionar se quando olhamos uma paisagem vemos o que realmente lá está ou aquilo que sentimos/pensamos lá estar? O que chamamos “montanha” será uma conjunção do mundo físico com a imaginação dos humanos: na verdade, uma “montanha da mente” na feliz expressão de Robert MacFarlane (2004: 19).
Por último, não poderemos deixar de mencionar, no que concerne a esta mudança de paradigma, a genialidade pioneira de Leonardo da Vinci (1452-1519). Desde logo, o interesse científico que o levou a ascender diversas montanhas, designadamente, em 1511 ou 1516, o monte Bô (2556 m), para ver em primeira mão e “ao vivo” como era, de facto, esse meio. Interesse que, inevitavelmente, também era de cariz artístico: «se sabe que aquel genio admiró y sintió en su más profundo ser la belleza clásica de las montañas» (FAUS, 2003: 48). Leonardo ficou certamente impressionado pela forte luminosidade da montanha, pelo «potente azul del cielo, comparándolo con el de las gencianas» (ibidem: 47). Nesse contexto, «en sus pinturas dejará de vez en cuando que los Alpes figuraran como fondo» (ibidem), como no famoso quadro da Mona Lisa ou Gioconda, algo perfeitamente inovador não só em termos pictóricos como também conceptuais. Da Vinci, que abriu os olhos da humanidade para inúmeras inovações, contribuiu também para a descoberta da beleza da montanha.

Leonardo da Vinci - Mona Lisa, La Gioconda (1503-1506?)


Leonardo da Vinci - Santa Ana, a Virgem e o Menino (1510-1513)


GESTÃO COM BASE NA PAISAGEM
Para aqueles que praticam actividades de ar livre, ademais numa postura de ir ao encontro da Natureza, as três concepções da paisagem apresentadas acima, numa abordagem histórica, podem ser vivenciadas simultaneamente, aqui e agora, sob três perspectivas distintas mas, contudo, complementares: (1) estética, (2) científica e (3) ecosófica.
A primeira perspectiva centra-se nas emoções e nos sentimentos resultantes da paisagem: beleza, imensidão, pitoresco, etc.. Salienta-se, neste contexto, a apreensão das formas, cores e sons, da própria luminosidade e sombras, os estados transitórios dos dias e das estações, tal como as aspirações e inspirações individuais, como elementos indutores susceptíveis de contribuir para a revelação das paisagens (BÉGUIN, 1995: 24).
A segunda explora as realidades abióticas, bióticas e antrópicas de que a paisagem é a expressão conjunta, diremos nós que de modo predominantemente geográfico (melhor seria dizer “científico”). As “paisagens científicas” surgem, desta forma, como fisionomias que agrupam os traços e elementos mais característicos de uma região: o seu relevo, as litologias presentes, as linhas de água, o coberto vegetal, a fauna característica, a arquitectura popular, as estradas e caminhos, etc..
A terceira centra-se na leitura e interpretação das condições do meio e nas suas implicações a nível da tomada de decisões no que concerne à gestão de actividades no terreno. Cada área apresenta condições do terreno (paisagem exterior), variáveis ao longo dos dias e das estações do ano, que devem ser convenientemente interpretadas e geridas, com implicações a nível da tomada de decisões, no decurso de actividades, por parte dos envolvidos. Esta terceira abordagem – ecosófica (e que, por isso, se pretende holística) – baseia-se, como as anteriores, no “ver” (na visualização e/ou na leitura/interpretação da paisagem), mas privilegia o fazer (que decisões tomar a partir dessa “visualização” e/ou leitura/interpretação). A título de exemplo destacamos a leitura e a interpretação das “paisagens celestes” (no que concerne à meteorologia) e as suas implicações a nível da gestão de actividades no terreno.
A utilização prática destas três perspectivas de sentir/conhecer/analisar as paisagens, no âmbito da gestão de actividades de ar livre no terreno, deve decorrer em simultâneo, sem prejuízo de dar, em determinadas ocasiões, um especial relevo ou enfoque a uma ou duas delas. Por outro lado, a sequência de abordagem dessas perspectivas não tem necessariamente de decorrer na sequência histórica apresentada, ademais quando é sugerido que se processem em simultâneo ou seja conveniente invertê-la.
Na verdade, para quem esteja a iniciar-se na gestão concreta de actividades de ar livre e/ou tenha problemas de integrar as três perspectivas em simultâneo, no terreno, é preferível inverter a sequência histórica apresentada e começar precisamente pela abordagem ecosófica. Tendo em conta a pirâmide de necessidades de Maslow, é fundamental dar atenção às necessidades basilares – fisiológicas e de segurança – e, só depois, avançar rumo ao topo. Neste contexto, começa-se por estar atento à designada “paisagem ecosófica”, indissociável de uma abordagem prática (mormente técnica) de como fazer, focada numa percepção holística, tendo por base a satisfação das necessidades fisiológicas e a segurança dos envolvidos. Só depois se dará eventualmente importância à denominada “paisagem dos geógrafos”, assente numa abordagem científica, com vista a proporcionar aos envolvidos uma satisfação intelectual mediante a transmissão de um conjunto atractivo de conhecimentos sobre o meio envolvente. Por último, deverá ser dada uma particular atenção à chamada “paisagem dos artistas”, ancorada numa abordagem estética, com vista a atingir um amplo bem-estar e realização dos envolvidos, podendo mesmo ser atingidos estados elevados de satisfação e de maravilhamento. O factor humano, designadamente nos seus aspectos emocionais e intimistas (que poderemos designar por “paisagens interiores”), surge, portanto, como uma variável central e centralizadora que deve ser trabalhada desde o início até ao final de todas as actividades, e desde a base até ao topo da pirâmide de Maslow. Só nesse contexto é que será possível atingir uma percepção e gestão paisagística integral e integradora indissociável dos sentidos: não só a visão como também a audição, o olfacto, o tacto e o paladar.

PIRÂMIDE DE MASLOW


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
· AA.VV.. Manual de Monitores de Pedestrianismo. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal, 2001, pp. 136. ISBN 978-989-20-0564-5
· BÉGUIN, François. Le Paysage. Paris: Flammarion, 1995, pp. 128. ISBN 2-08-035401-9
· CUIÇA, Pedro. Passo a Passo – Manual de Caminhada e Trekking. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015, pp. 312. ISBN 978-989-626-721-6
· CUIÇA, Pedro. Guia de Montanha – Manual Técnico de Montanha I. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal/Campo Base, 2010, pp. 224, ISBN 978-989-96647-1-5
· FAUS, Agustín. Historia del Alpinismo – Montañas y Hombres: Hasta los albores del siglo XX. Cuarte: Barrabés Editorial, vol. I, 2003, pp. 304.
· FERREIRA, Conceição Coelho & SIMÕES, Natércia Neves. A Evolução do pensamento Geográfico. Lisboa: Gradiva, 1986, pp. 142.
· LEOPOLD, Aldo. Pensar Como Uma Montanha. Águas Santas: Edições Sempre-em-Pé, 2008, pp. 220. ISBN 978-972-8870-10-2
· MAcFARLANE, Robert. Mountains of the Mind – A History of a Fascination. London: Granta Books, 2004, pp. 308
· NICOD, Jean. Pays et Paysages du Calcaire. Paris: Presses Universitaires de France, 1972, pp. 244.
· SERRÃO, Adriana Veríssimo et al.. Filosofia e Arquitectura da Paisagem – Um Manual. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012, pp. 382. ISBN 978-989-8553-12-6
· SILVANO, Filomena. Antropologia do Espaço. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp. 112. ISBN 978-972-37-1534-7

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