sábado, 15 de setembro de 2018

A viar

Pedro Cuiça © Colegiata de Alquézar (Aragão, 31 de Outubro de 2016)

«A Cruz de Cristo, implantada como heráldica primeiro no lábaro de Constatino, projecta uma sombra de paz. A conversão é um arrebatamento: toda a gente anseia pela viagem ao Oriente, para ver a terra que o filho do homem pisou. É um vaivém de pessoas que acorre da Hispânia para Oriente. A peregrinatio hierosolymitana assume-se promessa, ou propositum, do qual só o Padre Santo pode ilibar. Essa peregrinatio supõe a ida e a volta, mas, por vezes, envolve a fixação definitiva – inde ad propria nunquam reversu, como quem diz, ir e não voltar. Há, nas tendências tradicionalistas do paganismo, anseio de viagem a Ocidente, por isso que, mesmo antes do culto santiaguino, Compostela seja propósito. É a viagem peregrina à Finisterra, à procura da estrela, do comput, através de um caminho que depois se chamaria francês, não por ser porta de importação, mas por ser via de chegada de franceses em procura do que não traziam, mas buscavam: atingir o Atlântico pela via mais curta, em busca dos mitos heráldicos: Hércules, Noé, a Atlântida. Noutros casos, a procura de um outro mito, o mar sem fundo, o cabo do mundo, o fim da terra, como a Harmonia saudosa do Caos. Homo peregrinus, homo viator, há quem julgue que viar é andar na terra, há quem acerte que viar é ascender ao céu. Os santos viajam, o peregrino é uma existência. Por isso o povo os chama romeiros, ou romeus, que vão a Roma, ou passam por Roma, idos ou vindos da Terra Santa. Roma é o meio. As peregrinações para Ocidente não têm sinal contrário ao das peregrinações para Oriente, embora hajam propósito anómalo – de Ocidente para Oriente é o progresso na ordem futurível, de Oriente para Ocidente é o regresso na futurível ordem. Todos buscam os novíssimos e os últimos fins do homem na terra, à luz, ou do princípio, ou da revelação final, o apocalipse. A alta idade média não inventou as peregrinações; elas foram uma herança recebida e aprofundada durante o domínio árabe, e prosseguida até aos nossos dias, já sem o eco criacionista das peregrinações ou itinerações antigas.
As peregrinações penitenciais são mais tardias, datam desde o século XII, e são formalmente diversas das peregrinações baptismais dos antigos. A peregrinação que, no tempo patrístico, era um baptismo de fé torna-se, na igreja medieval, forma penitencial – uma forma específica de penitência. Surge a emblemática do peregrino, que tem um lugar singular na comunidade. A partir do século X, a peregrinação envolve-se de uma liturgia própria, e as insígnias ambientam a espiritualidade: a capsella, pere, sporte, ou sacola; o baculum, fustis, ou bordão, e a vieira. Enfim, a bênção do peregrino, a vigília vesperal, a recepção nas albergarias, o fim da jornada e o início da missão, no regresso, como se o peregrino tivesse recebido o carisma apostólico do «ide e evangelizai». Peregrinar à Terra Santa é como estudar a Bíblia: um peregrino é um doutor na fé.
Embora com os limites temporais e locais, as peregrinações eram como órgãos de comunicação social, fontes de informação e círculos autorizados, fazendo doutrina e escola.
A um ritmo algo contraposto ao dos «franceses» que andavam, via caminho francês, por Compostela, em busca do mar sem fundo, os lusitanos viajavam à inversa, do mar sem fundo para o destino celestial. A nossa patrística é uma patrística viajeira, imparável e curriculeira, sempre a andar. Depois que os germanos e bizantinos invadiram o pagus lusitano, o afluxo dos pagãos conversos a Roma e ao Oriente progrediu. De Braga saíram, mal começado o século V, os dois (ou três, uma vez a identificação ainda estar obscura) Avito. Andou um por Roma, outro por Jerusalém, um pouco antes de 410. O de Roma deixou-se envolver pelas doutrinas de Vitorino, o outro acabou por se envolver, facilitando, ambos, o radicamento da gnose priscilianista, conforme se deduz de Paulo Osório, que os trata por «cives mei» – eram todos bracarenses. Nos finais do século V, outra ilustre virilidade, Idácio de Chaves, viajou para Oriente, levado por familiares, tendo ensejo de conhecer S. Jerónimo, cuja recordação de infância manteve sempre.
(…)
A obra, Itinerarium ou Peregrinatio ad Loca Sancta, é diversamente titulada pelos historiadores que lhe fixaram o texto na antiguidade. O texto – incompleto –, foi descoberto (1884) em Arezzo, por Gamurrini, que o julgou atribuível a Sílvia, irmã de Rufino de Aquitânia, sendo esta tese aquitânica posteriormente defendida por outros especialistas, como o liturgista Dom Fernando Cabrol, no aliás excelente escurso Sílvia Etérea (1895) em que atribui a Sílvia o sobrenome de Etérea, ou Egéria. A crítica interna posterior veio a registar, nesse texto, escrito entre 400 e 418, agora geralmente intitulado ou Peregrinação da Etérea ou Itinerário de Etérea ou Diário de Viagem de Etérea, componentes linguísticos e estilísticas de clara origem referenciada ao latim da Lusitânea. Etérea não é um pensador, mas um autor que fixa os quadros vistos e contemplados, sem introdução de juízos eventuais. Usa uma linguagem por um lado popular, por outro iniciada na cultura cristã, com abundância de informação litúrgica, e demora-se a descrever, em Jerusalém.»
[GOMES, 2000: 137-142]

Pedro Cuiça © pintura de São Jerónimo (Alquézar - Aragão, 31 de Outubro de 2016)

NOTA
Os destaques a negrito são de nossa iniciativa.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
GOMES, Pinharanda. História da Filosofia Portuguesa – A Patrologia Lusitana. Lisboa: Guimarães Editores, 2000, pp. 376. ISBN 972-665-441-6

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