Pedro Cuiça © Colegiata de Alquézar (Aragão, 31 de Outubro de 2016)
«A Cruz de Cristo, implantada como heráldica
primeiro no lábaro de Constatino, projecta uma sombra de paz. A conversão é um
arrebatamento: toda a gente anseia pela viagem ao Oriente, para ver a terra que
o filho do homem pisou. É um vaivém de pessoas que acorre da Hispânia para
Oriente. A peregrinatio hierosolymitana assume-se promessa, ou propositum, do qual só o Padre Santo
pode ilibar. Essa peregrinatio supõe
a ida e a volta, mas, por vezes, envolve a fixação definitiva – inde ad propria nunquam reversu, como
quem diz, ir e não voltar. Há, nas tendências tradicionalistas do paganismo,
anseio de viagem a Ocidente, por isso que, mesmo antes do culto santiaguino,
Compostela seja propósito. É a viagem
peregrina à Finisterra, à procura da estrela, do comput, através de um caminho que depois se chamaria francês, não
por ser porta de importação, mas por ser via de chegada de franceses em procura
do que não traziam, mas buscavam: atingir o Atlântico pela via mais curta, em
busca dos mitos heráldicos: Hércules, Noé, a Atlântida. Noutros casos, a
procura de um outro mito, o mar sem fundo, o cabo do mundo, o fim da terra,
como a Harmonia saudosa do Caos. Homo peregrinus, homo viator,
há quem julgue que viar é andar na
terra, há quem acerte que viar é ascender ao céu. Os santos viajam, o
peregrino é uma existência. Por isso
o povo os chama romeiros, ou romeus,
que vão a Roma, ou passam por Roma, idos ou vindos da Terra Santa. Roma é o
meio. As peregrinações para Ocidente não têm sinal contrário ao das
peregrinações para Oriente, embora hajam propósito anómalo – de Ocidente para Oriente
é o progresso na ordem futurível, de Oriente para Ocidente é o regresso na
futurível ordem. Todos buscam os novíssimos e os últimos fins do homem na
terra, à luz, ou do princípio, ou da revelação final, o apocalipse. A alta
idade média não inventou as peregrinações; elas foram uma herança recebida e
aprofundada durante o domínio árabe, e prosseguida até aos nossos dias, já sem
o eco criacionista das peregrinações ou itinerações antigas.
As peregrinações penitenciais são mais
tardias, datam desde o século XII, e são formalmente diversas das peregrinações
baptismais dos antigos. A peregrinação que, no tempo patrístico, era um
baptismo de fé torna-se, na igreja medieval, forma penitencial – uma forma
específica de penitência. Surge a emblemática do peregrino, que tem um lugar
singular na comunidade. A partir do século X, a peregrinação envolve-se de uma
liturgia própria, e as insígnias ambientam a espiritualidade: a capsella, pere, sporte, ou sacola;
o baculum, fustis, ou bordão, e a vieira.
Enfim, a bênção do peregrino, a vigília vesperal, a recepção nas albergarias, o
fim da jornada e o início da missão, no regresso, como se o peregrino tivesse
recebido o carisma apostólico do «ide e evangelizai». Peregrinar à Terra Santa
é como estudar a Bíblia: um peregrino é um doutor na fé.
Embora com os limites temporais e locais, as
peregrinações eram como órgãos de comunicação social, fontes de informação e
círculos autorizados, fazendo doutrina e escola.
A um ritmo algo contraposto ao dos «franceses»
que andavam, via caminho francês, por Compostela, em busca do mar sem fundo, os lusitanos viajavam à inversa, do mar
sem fundo para o destino celestial. A nossa patrística é uma patrística viajeira, imparável e
curriculeira, sempre a andar. Depois que os germanos e bizantinos invadiram
o pagus lusitano, o afluxo dos pagãos
conversos a Roma e ao Oriente progrediu. De Braga saíram, mal começado o século
V, os dois (ou três, uma vez a identificação ainda estar obscura) Avito. Andou
um por Roma, outro por Jerusalém, um pouco antes de 410. O de Roma deixou-se
envolver pelas doutrinas de Vitorino, o outro acabou por se envolver,
facilitando, ambos, o radicamento da gnose priscilianista, conforme se deduz de
Paulo Osório, que os trata por «cives mei» – eram todos bracarenses. Nos finais
do século V, outra ilustre virilidade, Idácio de Chaves, viajou para Oriente,
levado por familiares, tendo ensejo de conhecer S. Jerónimo, cuja recordação de
infância manteve sempre.
(…)
A obra, Itinerarium ou Peregrinatio ad Loca Sancta,
é diversamente titulada pelos historiadores que lhe fixaram o texto na
antiguidade. O texto – incompleto –, foi descoberto (1884) em Arezzo, por
Gamurrini, que o julgou atribuível a Sílvia, irmã de Rufino de Aquitânia, sendo
esta tese aquitânica posteriormente defendida por outros especialistas, como o
liturgista Dom Fernando Cabrol, no aliás excelente escurso Sílvia Etérea (1895) em que atribui a Sílvia o sobrenome de Etérea,
ou Egéria. A crítica interna posterior veio a registar, nesse texto, escrito
entre 400 e 418, agora geralmente intitulado ou Peregrinação da Etérea ou
Itinerário
de Etérea ou Diário de Viagem de Etérea,
componentes linguísticos e estilísticas de clara origem referenciada ao latim
da Lusitânea. Etérea não é um pensador, mas um autor que fixa os quadros vistos
e contemplados, sem introdução de juízos eventuais. Usa uma linguagem por um
lado popular, por outro iniciada na cultura cristã, com abundância de
informação litúrgica, e demora-se a descrever, em Jerusalém.»
[GOMES, 2000: 137-142]
Pedro Cuiça © pintura de São Jerónimo (Alquézar - Aragão, 31 de Outubro de 2016)
NOTA
Os destaques a negrito são de nossa iniciativa.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
GOMES, Pinharanda. História da Filosofia Portuguesa –
A Patrologia Lusitana. Lisboa: Guimarães Editores, 2000, pp. 376. ISBN
972-665-441-6
Sem comentários:
Enviar um comentário