Serra da Estrela
Descubra um percurso esquecido
O tempo encarregou-se de apagar parte do antigo caminho que ligava
Manteigas à Covilhã, pelo Vale do Buraco, Serra de Baixo e Beijames. Mudam-se
os tempos mudam-se os caminhos. Mas as pedras dessa via existem. Pisá-las é uma
outra forma de descobrir a serra. Por companhia e guias para este percurso
escolhemos as personagens de A Lã e a
Neve, de Ferreira de Castro.
Texto de Pedro Cuiça/PH M1
Notícias Magazine nº 377, de 22 de
Junho de 1999
Pedro Cuiça © Serra da Estrela (2017)
O vale glaciário do Zêzere desce, no
seu gigantesco perfil em U, até às imediações de Manteigas. O pequeno e antigo povoado de montanha, de casas
graníticas com varandas de madeira e parapeitos de fero-forjado, ficou para
trás, no fundo de desafogada depressão a cerca de 720 metros de altitude. Ao
longe vêem-se as encostas de Penhas Douradas, Campo Romão e S. Lourenço.
Os olivais, milheirais e vinhedos
podem subir até aos 900 metros, mas nesta parte da vertente cederam rapidamente
lugar aos pinheiros-bravos. O caminho lajeado sobe a vertente direita do Vale do Buraco, acompanhando o ribeiro
homónimo escondido pelo pinhal. As pedras da via romana ou medieval lembram
milhentas andanças e riscos corridos para transpor a serra, como a aventura de
Horácio e Serafim Caçador.
Tal como nós e tantos outros ao longo
de gerações, as personagens do livro A Lã
e a Neve, de Ferreira de Castro, passaram na Rua Direita (actual 1º de
Maio), desceram a rua de Sto. António
até à ermida de Sto. André e
ultrapassaram o Fundo da Vila para “meterem” à encosta em frente. O caminho
velho começava junto da ermida de Sto.
António (junto da qual se encontra hoje a Albergaria Berne), mas agora é
preciso atravessar a estrada de alcatrão para encontrar a via empedrada que
sobe o Vale do Buraco.
Serafim Caçador queixava-se: “É pena não haver camioneta todos os dias para
a Covilhã. E para um homem ir tomar o comboio a Belmonte tem de perder um dia
inteiro. Parece que moramos no fim do Mundo! Eu, antigamente, não me importava.
Atravessava a serra num pulo, sempre que era preciso; mas, agora, já não estou
para grandes caminhadas”. A travessia da serra “num pulo” é uma expressão
demasiado branda, se atendermos a que “eram quatro puxadas horas quando não
havia neve, cinco e até mais quando ela cobria encostas e píncaros, de onde os
próprios lobos haviam fugido”.
As dificuldades inerentes à viagem,
quer quanto à distância quer quanto às condições meteorológicas a suportar no
Inverno, foram assinaladas já no século XIV. José David Lucas Batista refere um
documento, datado de 1392, em que os habitantes de Manteigas apontavam os
inconvenientes da deslocação à Covilhã. Há pouco mais de 40 anos, o trajecto
fazia-se ainda pelo caminho velho, exclusivamente a pé ou a dorso de animais. A
estrada Manteigas-Covilhã (EN 338) só viria a ser implantada na primeira metade
da década de 60.
ASCENDER ÀS ALMAS: os principiantes aguentam!
Hoje o que não faltam são vias de
comunicação e as pessoas já não precisam de se “fazer à serra”. No trajecto da
ermida de Sto. António ao Vale do Buraco, a via antiga é atravessada por
caminhos de terra-batida, passa junto de uma casa florestal, cruza a estrada
alcatroada que vai para o Poço do Inferno e continua a ganhar altitude. Uma
estrada florestal corta o caminho mais acima, onde é necessário virar à direita
e, logo depois, à esquerda para retomar a antiga via. Já no Vale do Buraco, o
caminho empedrado passa junto de um grande bloco, situado à direita: a Pedra
Vestia. No lado esquerdo do caminho destaca-se um malhão (marco quadrangular de
pedras soltas) bem conservado. Mais adiante, atravessa-se outra estrada de
terra-batida para prosseguir a subida.
Ao chegar quase ao cimo do vale, o
caminho lajeado passa por entre dois penedos graníticos. A Terra dos Abrantes,
onde há uma barroca com água e um casal com muro de pedras, surge à direita, a
modo de covão. Pouco depois, atinge-se as Almas,
lugar onde aparece, junto do lado esquerdo do caminho, uma rústica alminha,
talhada em granito, com nicho pouco escavado. Sucessoras das estelas funerárias
romanas, colocadas à beira dos caminhos para apiedar os viajantes (a fim de
propiciar e perpetuar a memória dos mortos), as alminhas cristãs pretendem
mitigar os sofrimentos daqueles que se encontram no Purgatório.
O caminho antigo entronca numa estrada
alcatroada escassos metros à frente. É altura de virar à direita e continuar
pelo asfalto, rodeando o Curral da Nave
e a Nave da Gadelha, rumo ao Alto da Portela. Um pouco antes de
atingir a Portela convém, no entanto, ponderar o trajecto a seguir, pois é
ainda possível virar à esquerda descendo o Vale
Andinho e, subindo, o Vale da Adega,
regressar às Almas e a Manteigas.
É este o percurso alternativo que hoje
se aconselha a quem não disponha das pernas e da experiência de orientação dos
nossos antepassados serranos. O andamento, em caminhos de terra-batida, passa
por velhos casais, agora maioritariamente abandonados, envolvidos por arvoredo
e acompanhados por pequenos cursos de água e diversas fragas. Também é possível
atingir o Poço do Inferno e, daí, descer até Manteigas, mas o dilatado trajecto
ao longo da estrada asfaltada aconselha uma visita a essa queda de água em
veículo motorizado.
DA PORTELA À COVILHÃ: só para quem está em boa forma
O percurso até à Covilhã, a partir do
Alto da Portela, recomenda-se somente àqueles que estejam em boa forma física e
dominem as artes da orientação. Mesmo nesse caso não será sensato empreender o
trajecto caso se prevejam condições meteorológicas adversas. Um simples
nevoeiro será suficiente para o viajante se perder, ficando numa situação
bastante embaraçosa. O caminho desaparece mais à frente, apagado pelos anos de
abandono e a designação “Serra do Ermo”, nome pelo qual era conhecida a Serra
da Estrela, aplica-se como uma luva ao vasto planalto ondulado.
Horácio e Serafim Caçador, apesar de conhecerem o itinerário como a palma
das mãos, perderam-se devido às condições meteorológicas adversas. O caminho
ainda se encontrava bem assinalado e era usado com frequência, mas a tempestade
que os apanhou foi suficiente para incorrerem em erro. Conscientes dos perigos
da serra, que em semelhantes circunstâncias ceifaram a vida de outros, chegaram
a questionar se haviam de prosseguir. A decisão de avançarem bem lhes custou.
“De Manteigas à Borralheira ou à Aldeia do Carvalho, a pé, mesmo com bom tempo,
era o que todos sabiam. Um homem chegava arrasado. Com um tempo assim, era de
rebentar e nem em cinco horas se punham lá.”
O caminho desenvolvia-se do Alto da
Portela, passando pela Serra de Baixo,
até Beijames. Actualmente esse troço
é fácil de seguir, encontra-se alcatroado na primeira parte, continuando por
terra-batida que surge à esquerda. Depois é que começam as complicações. A
Fraga do Neto, situada à esquerda do lugar de Beijames, era utilizada como
ponto de referência daqueles que palmilhavam essas paragens, mas actualmente
esse nome de lugar não se encontra nas cartas topográficas.
Considerados o reduto das tribos da
Lusitânea durante as guerras luso-romanas, os Montes Hermíneos foram
conquistados mais por homens pastoreando ovelhas e cabras do que manobrando a
funda ou a lança. Constituindo um centro de transumância já antes da formação
do Reino de Portugal, logo após o degelo, lá para Abril ou Maio (caso a
invernia se prolongasse), o chocalhar dos rebanhos quebrava o silêncio da
montanha, encostas acima, anunciando a Primavera. Os pastores, bem como os seus
rebanhos, permaneciam nos pastos de altitude até ao Outono.
A frequência pelo homem das grandes
extensões despovoadas de altitude diminuiu consideravelmente devido ao declínio
do pastoreio e da cultura do centeio, bem como da construção de novas vias de
comunicação. Com o decorrer do tempo deixou de ter utilidade o conhecimento do
terreno e a delimitação de certas áreas, fazendo com que os topónimos
identificadores caíssem em desuso.
POR CAIRNS E PASSADOUROS ou “ONDE
PARAR PARA ALMOÇAR”
A Portela da Serra de Baixo e a
Portela do Beijames, ausentes nas cartas topográficas, são referidas em
documento datado de 1560. Esta última era assinalada como passagem vadeável: “Porto que vay para a Covilhã”. Os
velhos de Manteigas, que palmilharam o percurso inúmeras vezes, falam dos
“passadouros” (pedras empinadas) no ribeiro de Beijames. Uma coisa é certa, era
regra almoçar junto ao ponto de passagem. Depois pode-se ir direito à Malhada
da Cova ou Malhada Velha e, daí, rumar ao Covão
do Teixo. Mas o caminho antigo devia subir ao Alto do Espinheiro, para encurtar distância.
“Não havia dúvida, iam enganados. Já tinham feito um estirão escusadamente.
E se continuassem por ali, em vez de botar à aldeia, iriam sair entre a Nave as
Penhas da Saúde”. Horácio e Serafim Caçador, iludidos pela tempestade, foram
dar à Malhada da Velha.
Hoje o caminho, assinalado por cairns (pequenos montículos de duas ou
mais pedras), encontra-se encoberto pela vegetação. Em frente, os cântaros
Raso, Magro e Gordo, surgem em toda a sua imponência. O ribeiro é ultrapassado
a vau (sobre pedras), sobe-se ao Alto do Espinheiro e continua-se ao longo da
cumeada até inflectir rumo ao Covão do Teixo. Nessa depressão surgem os
primeiros cairns a assinalar o
trajecto. Antes do Picoto atinge-se a Terra Direita
Uma planura granítica de onde se abrange vasto
panorama sobre a Cova da Beira. Depois da Garrafa (como alguns locais chamam
Ao Picoto), o flanco sudeste da serra
lança-se sobre a Aldeia do Carvalho e a Covilhã.
Horácio e Serafim Caçador adivinharam finalmente, “à direita ao longe, a
Covilhã”. “Já passava da meia-noite […] no meio de uma quintazinha sobranceira
à Aldeia do Carvalho – a mais alta que fora arroteada na serra. Dali às
primeiras casas que, dispersas, o povoado lançava encosta arriba, havia ainda
grande distância”. A maior parte dos viajantes seguiam, contudo, por Entre
Ribeiras, Pousadinha e Borralheira até à Covilhã.
Notas de viagem2
Localização
O Parque Natural da Serra da Estrela
situa-se a pouco mais de 200 quilómetros do Porto e a 300 quilómetros de
Lisboa.
Acessos
Via Seia (EN 339, EN 339-1 e EN 232)
ou Guarda (EN 18-1 e EN 232), a norte. Via Covilhã (EN 339 e EN 338) ou
Belmonte-Valhelhas (EN 232), a sul.
A ler para se ambientar
– Ferreira de Castro (1947): A Lã e a Neve
– José David Lucas Batista (1994): Toponímia do Concelho de Manteigas;
Câmara Municipal de Manteigas & Parque Natural da Serra da Estrela,
Manteigas, pp. 260.
Passo-a-passo
Desenvolvimento do percurso Manteigas-Covilhã: cerca de 20 km (variante Manteigas-Nave da Gadelha-Manteigas: cerca de 13 km)
Desníveis acumulados: +899m, -1060m (variante: +766m,
-766m)
Altitude máxima: 1500m
Altitude mínima: 620m (variante: 700m)
Duração3: 5h (variante: 3h)
Dificuldade: percurso difícil (variante de
dificuldade média)
Época aconselhada: Maio a Outubro
Atenção: o percurso Manteigas-Covilhã deve ser
empreendido por pessoas em boas condições físicas, com conhecimentos de
orientação e equipamento específico.
NOTAS PEDESTRIS
1. Na edição original, publicada na revista Notícias Magazine nº 377, de 22 de Junho de 1999: fotografias de Pedro Alarcão
2. A ficha técnica “Notas de viagem” comportava um conjunto de contactos úteis que não publicamos aqui por se encontrarem manifestamente desactualizados, designadamente no tocante aos números de telefone disponibilizados que já não existem.
3. Os horários apresentados foram calculados sem ter em conta quaisquer paragens; tratam-se, portanto, de tempos com base apenas em velocidade efectiva.
1. Na edição original, publicada na revista Notícias Magazine nº 377, de 22 de Junho de 1999: fotografias de Pedro Alarcão
2. A ficha técnica “Notas de viagem” comportava um conjunto de contactos úteis que não publicamos aqui por se encontrarem manifestamente desactualizados, designadamente no tocante aos números de telefone disponibilizados que já não existem.
3. Os horários apresentados foram calculados sem ter em conta quaisquer paragens; tratam-se, portanto, de tempos com base apenas em velocidade efectiva.
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