quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A Lã e a Neve


Serra da Estrela
Descubra um percurso esquecido

O tempo encarregou-se de apagar parte do antigo caminho que ligava Manteigas à Covilhã, pelo Vale do Buraco, Serra de Baixo e Beijames. Mudam-se os tempos mudam-se os caminhos. Mas as pedras dessa via existem. Pisá-las é uma outra forma de descobrir a serra. Por companhia e guias para este percurso escolhemos as personagens de A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro.

Texto de Pedro Cuiça/PHM1
Notícias Magazine nº 377, de 22 de Junho de 1999


Pedro Cuiça © Serra da Estrela (2017)

O vale glaciário do Zêzere desce, no seu gigantesco perfil em U, até às imediações de Manteigas. O pequeno e antigo povoado de montanha, de casas graníticas com varandas de madeira e parapeitos de fero-forjado, ficou para trás, no fundo de desafogada depressão a cerca de 720 metros de altitude. Ao longe vêem-se as encostas de Penhas Douradas, Campo Romão e S. Lourenço.
Os olivais, milheirais e vinhedos podem subir até aos 900 metros, mas nesta parte da vertente cederam rapidamente lugar aos pinheiros-bravos. O caminho lajeado sobe a vertente direita do Vale do Buraco, acompanhando o ribeiro homónimo escondido pelo pinhal. As pedras da via romana ou medieval lembram milhentas andanças e riscos corridos para transpor a serra, como a aventura de Horácio e Serafim Caçador.
Tal como nós e tantos outros ao longo de gerações, as personagens do livro A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, passaram na Rua Direita (actual 1º de Maio), desceram a rua de Sto. António até à ermida de Sto. André e ultrapassaram o Fundo da Vila para “meterem” à encosta em frente. O caminho velho começava junto da ermida de Sto. António (junto da qual se encontra hoje a Albergaria Berne), mas agora é preciso atravessar a estrada de alcatrão para encontrar a via empedrada que sobe o Vale do Buraco.

Serafim Caçador queixava-se: “É pena não haver camioneta todos os dias para a Covilhã. E para um homem ir tomar o comboio a Belmonte tem de perder um dia inteiro. Parece que moramos no fim do Mundo! Eu, antigamente, não me importava. Atravessava a serra num pulo, sempre que era preciso; mas, agora, já não estou para grandes caminhadas”. A travessia da serra “num pulo” é uma expressão demasiado branda, se atendermos a que “eram quatro puxadas horas quando não havia neve, cinco e até mais quando ela cobria encostas e píncaros, de onde os próprios lobos haviam fugido”.

As dificuldades inerentes à viagem, quer quanto à distância quer quanto às condições meteorológicas a suportar no Inverno, foram assinaladas já no século XIV. José David Lucas Batista refere um documento, datado de 1392, em que os habitantes de Manteigas apontavam os inconvenientes da deslocação à Covilhã. Há pouco mais de 40 anos, o trajecto fazia-se ainda pelo caminho velho, exclusivamente a pé ou a dorso de animais. A estrada Manteigas-Covilhã (EN 338) só viria a ser implantada na primeira metade da década de 60.

ASCENDER ÀS ALMAS: os principiantes aguentam!
Hoje o que não faltam são vias de comunicação e as pessoas já não precisam de se “fazer à serra”. No trajecto da ermida de Sto. António ao Vale do Buraco, a via antiga é atravessada por caminhos de terra-batida, passa junto de uma casa florestal, cruza a estrada alcatroada que vai para o Poço do Inferno e continua a ganhar altitude. Uma estrada florestal corta o caminho mais acima, onde é necessário virar à direita e, logo depois, à esquerda para retomar a antiga via. Já no Vale do Buraco, o caminho empedrado passa junto de um grande bloco, situado à direita: a Pedra Vestia. No lado esquerdo do caminho destaca-se um malhão (marco quadrangular de pedras soltas) bem conservado. Mais adiante, atravessa-se outra estrada de terra-batida para prosseguir a subida.
Ao chegar quase ao cimo do vale, o caminho lajeado passa por entre dois penedos graníticos. A Terra dos Abrantes, onde há uma barroca com água e um casal com muro de pedras, surge à direita, a modo de covão. Pouco depois, atinge-se as Almas, lugar onde aparece, junto do lado esquerdo do caminho, uma rústica alminha, talhada em granito, com nicho pouco escavado. Sucessoras das estelas funerárias romanas, colocadas à beira dos caminhos para apiedar os viajantes (a fim de propiciar e perpetuar a memória dos mortos), as alminhas cristãs pretendem mitigar os sofrimentos daqueles que se encontram no Purgatório.
O caminho antigo entronca numa estrada alcatroada escassos metros à frente. É altura de virar à direita e continuar pelo asfalto, rodeando o Curral da Nave e a Nave da Gadelha, rumo ao Alto da Portela. Um pouco antes de atingir a Portela convém, no entanto, ponderar o trajecto a seguir, pois é ainda possível virar à esquerda descendo o Vale Andinho e, subindo, o Vale da Adega, regressar às Almas e a Manteigas.
É este o percurso alternativo que hoje se aconselha a quem não disponha das pernas e da experiência de orientação dos nossos antepassados serranos. O andamento, em caminhos de terra-batida, passa por velhos casais, agora maioritariamente abandonados, envolvidos por arvoredo e acompanhados por pequenos cursos de água e diversas fragas. Também é possível atingir o Poço do Inferno e, daí, descer até Manteigas, mas o dilatado trajecto ao longo da estrada asfaltada aconselha uma visita a essa queda de água em veículo motorizado.

DA PORTELA À COVILHÃ: só para quem está em boa forma
O percurso até à Covilhã, a partir do Alto da Portela, recomenda-se somente àqueles que estejam em boa forma física e dominem as artes da orientação. Mesmo nesse caso não será sensato empreender o trajecto caso se prevejam condições meteorológicas adversas. Um simples nevoeiro será suficiente para o viajante se perder, ficando numa situação bastante embaraçosa. O caminho desaparece mais à frente, apagado pelos anos de abandono e a designação “Serra do Ermo”, nome pelo qual era conhecida a Serra da Estrela, aplica-se como uma luva ao vasto planalto ondulado.

Horácio e Serafim Caçador, apesar de conhecerem o itinerário como a palma das mãos, perderam-se devido às condições meteorológicas adversas. O caminho ainda se encontrava bem assinalado e era usado com frequência, mas a tempestade que os apanhou foi suficiente para incorrerem em erro. Conscientes dos perigos da serra, que em semelhantes circunstâncias ceifaram a vida de outros, chegaram a questionar se haviam de prosseguir. A decisão de avançarem bem lhes custou. “De Manteigas à Borralheira ou à Aldeia do Carvalho, a pé, mesmo com bom tempo, era o que todos sabiam. Um homem chegava arrasado. Com um tempo assim, era de rebentar e nem em cinco horas se punham lá.”

O caminho desenvolvia-se do Alto da Portela, passando pela Serra de Baixo, até Beijames. Actualmente esse troço é fácil de seguir, encontra-se alcatroado na primeira parte, continuando por terra-batida que surge à esquerda. Depois é que começam as complicações. A Fraga do Neto, situada à esquerda do lugar de Beijames, era utilizada como ponto de referência daqueles que palmilhavam essas paragens, mas actualmente esse nome de lugar não se encontra nas cartas topográficas.
Considerados o reduto das tribos da Lusitânea durante as guerras luso-romanas, os Montes Hermíneos foram conquistados mais por homens pastoreando ovelhas e cabras do que manobrando a funda ou a lança. Constituindo um centro de transumância já antes da formação do Reino de Portugal, logo após o degelo, lá para Abril ou Maio (caso a invernia se prolongasse), o chocalhar dos rebanhos quebrava o silêncio da montanha, encostas acima, anunciando a Primavera. Os pastores, bem como os seus rebanhos, permaneciam nos pastos de altitude até ao Outono.
A frequência pelo homem das grandes extensões despovoadas de altitude diminuiu consideravelmente devido ao declínio do pastoreio e da cultura do centeio, bem como da construção de novas vias de comunicação. Com o decorrer do tempo deixou de ter utilidade o conhecimento do terreno e a delimitação de certas áreas, fazendo com que os topónimos identificadores caíssem em desuso.

POR CAIRNS E PASSADOUROS ou “ONDE PARAR PARA ALMOÇAR”
A Portela da Serra de Baixo e a Portela do Beijames, ausentes nas cartas topográficas, são referidas em documento datado de 1560. Esta última era assinalada como passagem vadeável: “Porto que vay para a Covilhã”. Os velhos de Manteigas, que palmilharam o percurso inúmeras vezes, falam dos “passadouros” (pedras empinadas) no ribeiro de Beijames. Uma coisa é certa, era regra almoçar junto ao ponto de passagem. Depois pode-se ir direito à Malhada da Cova ou Malhada Velha e, daí, rumar ao Covão do Teixo. Mas o caminho antigo devia subir ao Alto do Espinheiro, para encurtar distância.

“Não havia dúvida, iam enganados. Já tinham feito um estirão escusadamente. E se continuassem por ali, em vez de botar à aldeia, iriam sair entre a Nave as Penhas da Saúde”. Horácio e Serafim Caçador, iludidos pela tempestade, foram dar à Malhada da Velha.

Hoje o caminho, assinalado por cairns (pequenos montículos de duas ou mais pedras), encontra-se encoberto pela vegetação. Em frente, os cântaros Raso, Magro e Gordo, surgem em toda a sua imponência. O ribeiro é ultrapassado a vau (sobre pedras), sobe-se ao Alto do Espinheiro e continua-se ao longo da cumeada até inflectir rumo ao Covão do Teixo. Nessa depressão surgem os primeiros cairns a assinalar o trajecto. Antes do Picoto atinge-se a Terra Direita
 Uma planura granítica de onde se abrange vasto panorama sobre a Cova da Beira. Depois da Garrafa (como alguns locais chamam
Ao Picoto), o flanco sudeste da serra lança-se sobre a Aldeia do Carvalho e a Covilhã.

Horácio e Serafim Caçador adivinharam finalmente, “à direita ao longe, a Covilhã”. “Já passava da meia-noite […] no meio de uma quintazinha sobranceira à Aldeia do Carvalho – a mais alta que fora arroteada na serra. Dali às primeiras casas que, dispersas, o povoado lançava encosta arriba, havia ainda grande distância”. A maior parte dos viajantes seguiam, contudo, por Entre Ribeiras, Pousadinha e Borralheira até à Covilhã.


Notas de viagem2
Localização
O Parque Natural da Serra da Estrela situa-se a pouco mais de 200 quilómetros do Porto e a 300 quilómetros de Lisboa.
Acessos
Via Seia (EN 339, EN 339-1 e EN 232) ou Guarda (EN 18-1 e EN 232), a norte. Via Covilhã (EN 339 e EN 338) ou Belmonte-Valhelhas (EN 232), a sul.
A ler para se ambientar
– Ferreira de Castro (1947): A Lã e a Neve
– José David Lucas Batista (1994): Toponímia do Concelho de Manteigas; Câmara Municipal de Manteigas & Parque Natural da Serra da Estrela, Manteigas, pp. 260.


Passo-a-passo
Desenvolvimento do percurso Manteigas-Covilhã: cerca de 20 km (variante Manteigas-Nave da Gadelha-Manteigas: cerca de 13 km)
Desníveis acumulados: +899m, -1060m (variante: +766m, -766m)
Altitude máxima: 1500m
Altitude mínima: 620m (variante: 700m)
Duração3: 5h (variante: 3h)
Dificuldade: percurso difícil (variante de dificuldade média)
Época aconselhada: Maio a Outubro
Atenção: o percurso Manteigas-Covilhã deve ser empreendido por pessoas em boas condições físicas, com conhecimentos de orientação e equipamento específico.

NOTAS PEDESTRIS
1. Na edição original, publicada na revista Notícias Magazine nº 377, de 22 de Junho de 1999: fotografias de Pedro Alarcão
2. A ficha técnica “Notas de viagem” comportava um conjunto de contactos úteis que não publicamos aqui por se encontrarem manifestamente desactualizados, designadamente no tocante aos números de telefone disponibilizados que já não existem.
3. Os horários apresentados foram calculados sem ter em conta quaisquer paragens; tratam-se, portanto, de tempos com base apenas em velocidade efectiva.

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