quarta-feira, 12 de julho de 2017

Walden

É sempre com um imenso prazer que regresso ao pensamento de Henry David Thoreau através da leitura das suas preciosas e diversas obras, mormente aquela que para mim continua a ser alvo de reiterado estudo e reflexão: Walden ou A Vida nos Bosques. Hoje que se comemora 200 anos sobre o seu nascimento, a 12 de Julho de 1817, é com renovado fulgor e algum saudosismo que publico um dos vários textos que escrevi, entre 11 de Março e 6 de Maio de 2011, no âmbito do Clube de Leitores Walden. A iniciativa, de que tive o grato privilégio de ser o primeiro classificado, foi organizada no contexto de um ciclo de seis conferências – Porquê Ler os Clássicos? – levadas a cabo pelo Programa Gulbenkian Ambiente em parceria com a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal. Cada uma das conferências gravitou à volta de um livro, tendo-se iniciado com Walden, seguido-se Pensar Como uma Montanha (de Aldo Leopold), Small is Beautiful (de E.F. Schumacher), Silent Spring (de Rachel Carson), Our Common Future (da World Commission on Environment and Development) e Os Limites do Crescimento (de Dennis Meadows, Donella Meadows e Jorgen Randers, entre outros).



II. Onde, e para que vivi

Regressando ao início do capítulo II (Onde, e para que vivi) no qual Thoreau pretensamente descreve como fixou residência no bosque, este apresenta-nos uma tão dotada quanto divagante imaginação sobre a aquisição de “fazendas”. Imaginação (à qual já fizemos referência anteriormente) que chegou a consubstanciar-se na compra da “fazendola de Hollowell” e na sua rápida e subsequente revenda ao antigo proprietário! O que atraia Thoreau nessa fazenda que chegou a adquirir foi “o total isolamento, por estar a pouco mais de três quilómetros da cidade, a meia milha do vizinho mais próximo e separada por um vasto campo da estrada principal”, entre outros primores como “as cercas delapidadas, que punham um espaço entre mim e o último ocupante; as macieiras ocas e cobertas de líquens, roídas por coelhos, mostrando o tipo de vizinhos que eu devia ter” (p. 100). Acontece que Thoreau fixou residência no bosque numa cabana de madeira e, se nos diz que a casa que possuíra antes foi uma tenda (assunto que abordaremos num futuro comentário), na verdade nada refere sobre como foi parar a esse tugúrio onde consta que terá residido por um período de dois anos, dois meses e dois dias! Vem isto a talhe de foice, tendo em conta a leitura do capítulo V (Solidão), para dizer que devemos ter algum cuidado na interpretação ingénua ou facilitista daquilo que Thoreau escreve porque nem sempre corresponderá exactamente à verdade. Sem com isto lhe estar propriamente a chamar mentiroso por omissão ou divagação, passo a explicar. A cabana na qual vivenciou a sua experiência de vida nos bosques, tal como o terreno onde esta se situava, eram propriedade do seu amigo e mentor Ralph Waldo Emerson, o famoso escritor, filósofo e poeta considerado o fundador do transcendentalismo. De facto, tanto “a sua instalação ali como a interrupção dessa experiência estarão intimamente associadas à amizade com Emerson; é este que lhe cede o terreno (adquirido expressamente para impedir o abate de árvores naquela zona), e é este depois que lhe pede, ao ausentar-se para Inglaterra, para ficar em sua casa, em Concord, com a sua família” (p. 364). É neste contexto que Thoreau vive, em 1847-1848, com a família de Emerson quando este parte para Inglaterra numa longa digressão, na qual conhece, entre outros, Mill, Coleridge, Carlyle (de que ficaria grande amigo) e Wordsworth (de que já apresentámos o poema “Prelúdio” em comentário anterior).
Ora esta cabana onde viveu nos bosques também se situava a cerca de três quilómetros de distância da cidade de Concord, tal como a fazenda de Hollowell, e rodeada de ruídos da civilização como já tivemos oportunidade de referir anteriormente. Quero com o aqui exposto assinalar, mais uma vez, que o isolamento de Thoreau não seria tão radical quanto possa parecer. Aliás, bem pelo contrário! No capítulo VIII (O povoado), ficamos surpreendentemente a saber que “todos os dias, ou de dois em dois dias, passeava pelo povoado para ouvir os boatos que incessantemente por lá correm, circulando de boca em boca ou de jornal em jornal, os quais tomados em doses homeopáticas, são de facto a seu modo tão revigorantes como o farfalhar das folhas e o coaxar das rãs” (p. 189)! Temos, portanto, a acrescentar ao silvo da locomotiva como grito de gavião (referido no capítulo “Sons”), os boatos tão revigorantes como o farfalhar de folhas e o coaxar de rãs!!!
Se por um lado Thoreau nos diz que visitava Concord assiduamente para “observar os hábitos” dos seus moradores, por outro também refere que “até estava acostumado a aparecer nalgumas casas, onde era bem tratado” (p. 191). Diz-nos mais ainda: que “depois de inteirar-se do fundamental, da última peneirada das notícias” saía “pela porta das traseiras” e assim se “escapulia novamente para os bosques” (p. 191). Ora uma dessas casas seria certamente a de Waldo Emerson, o seu… mecenas!
Se acho o comportamento de “observar os hábitos” dos habitantes de Concord, num estilo David Attenborough duvidoso, o que dizer da sua curiosidade face às notícias quando alguns capítulos atrás (mais precisamente no “Onde, e para que vivi”) afirma precisamente o contrário?
“Depois de uma noite de sono, as notícias são tão indispensáveis como o café da manhã. “Diga-me, por favor, que novidade aconteceu à humanidade em qualquer parte do mundo” e, juntamente com o café e os pãezinhos, lê que em Wachito River, naquela manhã, arrancaram os olhos a um homem; faz isso tudo sem sequer imaginar que vive na caverna escura, insondável e imensa deste mundo, e que ele próprio só tem um rudimento de olho. Por mim, podia facilmente passar sem correio. Acho que há pouquíssimas comunicações importantes feitas por seu intermédio. (…) Também estou certo de que nunca li nos jornais nenhuma notícia notável. (…) Para um filósofo, todas as chamadas novidades não passam de bisbilhotices, e as pessoas que se encarregam de editá-las e lê-las, não passam de velhinhas a tomar chá. Mas não são poucos os ávidos por bisbilhotices. (…) Novidades! Muito mais importante é saber-se daquilo que nunca fica velho!” (p. 111-112) Portanto, bisbilhotices não, boatos sim (mas em doses homeopáticas) e notícias, pelos vistos, q.b., tal como visitas regulares a Concord todos os dias ou de dois em dois dias! Como já tive oportunidade de manifestar em anterior comentário, a suposta vida de Thoreau na Natureza assemelha-se mais a uma ruralidade peculiar, tal como a pretensa solidão em que viveu foi afinal bastante acompanhada!!!
Virá a propósito, mais uma vez, relembrar os eremitas franciscanos, como o frade capuchinho Agostinho da Cruz que passou os últimos 14 anos de vida na solidão da Arrábida; a avaliar pelas palavras de Limabeu – criptónimo e alter-ego do poeta – concretizando um seu grande desejo:

Confesso que fui sempre afeiçoado
A solitários bosques do deserto,
Que ensinam a viver desenganado.



Referência bibliográfica
THOREAU, Henry David. Walden ou A Vida nos Bosques. Lisboa: Edições Antígona, 1999, pp. 368. ISBN 972-608-106-8


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