Os
três sistemas de valores que eu identifico – os de recolectores [caçadores],
agricultores e utilizadores de combustíveis fósseis – são exemplos daquilo a
que Weber chamou «tipos ideais», «alcançados»,
explicou, «pela acentuação unilateral de um ou mais pontos de vista e pela
síntese de inúmeros fenómenos individuais difusos, discretos, mais ou menos
presentes e ocasionalmente ausentes, que são organizados de acordo com esses pontos
de vista enfatizados apenas por um lado numa construção mental unificada. Na
sua pureza conceptual, esta construção mental nunca pode ser encontrada
empiricamente na realidade. É uma utopia.» Os tipos ideais reduzem as vidas
reais de milhares de milhões de pessoas a um punhado de modelos simples, e dado
que incorporam uma variação empírica tão enorme, estão necessariamente
recheados de exceções. Mas é o preço a pagar se queremos identificar causas por
trás do caos da vida real.
É provável que
alguns leitores pensem que este caminho nos leva a ismos errados de todos os
tipos. Para começar, é redutor. Na maior parte dos ramos das humanidades e de
algumas ciências sociais, «redutor» é um termo pejorativo, mas ao invés de
negar o facto óbvio do meu reducionismo, quero abraçar a acusação. Quem o negar
não está a pensar o suficiente. Só para dar um exemplo, tive recentemente a
oportunidade de consultar alguns pormenores na biografia de oito volumes de
Winston Churchill, escrita por Martin Gilbert (que, na verdade, foi publicada
em treze livros, porque alguns dos volumes eram demasiado grandes para serem
delimitados entre um só par de capas). Deve ser uma das maiores biografias
jamais escritas, mas não deixa de ser redutora. Reduzir a vida de uma pessoa a
palavras numa página – ainda que sejam cinco mil páginas – envolve necessariamente
distorcer uma realidade mais complexa; reduzir as vidas de todas as pessoas que
viveram nos últimos vinte milénios a um punhado de capítulos breves fá-lo
necessariamente ainda mais. Mas não há problema. A questão que devíamos pôr não
é se um historiador, um antropólogo ou um sociólogo está a ser redutor – a resposta
é sempre afirmativa –, mas sim que grau de redução é necessário para resolver o
problema que é apresentado. Grandes questões precisam muitas vezes de uma
grande abstração, e é isso que eu proponho. [MORRIS, 2017: 38-39]
Há vinte mil anos, todas as pessoas da Terra
eram recoletoras. Há cerca de quinhentos anos, bem menos de uma pessoa em cada
dez praticava este modo de vida, e essas haviam sido confinadas a apenas um
terço do planeta. Hoje os recolectores constituem muito menos de um por cento
da população mundial. Os poucos sobreviventes estão na sua grande maioria
circunscritos a ambientes extremos que os agricultores não querem, como o
deserto do Calaári e o Círculo Polar Ártico, ou onde ainda não penetraram como
partes da Amazónia e as florestas húmidas do Congo. No entanto, até refúgios
remotos podem ter interesse económico ou político para utilizadores de
combustíveis fósseis, o que significa que os governos, os mercados e os gostos
modernos tiveram pelo menos algum impacte em tudo exceto nos recolectores contemporâneos
mais isolados. (Na Tanzânia, em 1986, uma das visões que mais me surpreendeu
foi um caçador massai armado com uma lança a beber uma garrafa de Coca-Cola enquanto aguardava – com a sua
arma pendurada num ombro – um autocarro que o levaria ao seu acampamento. Era,
na verdade, tudo menos invulgar; na década de 1980, a maior parte dos
caçadores-recoletores praticava uma recoleção assistida por combustíveis
fósseis.)
Fazer comparações
entre recolectores do século XX em ambientes muito árduos e recolectores pré-históricos
em ambientes mais amenos e favoráveis apresenta obviamente problemas. Em meados
do século XX, vários antropólogos e arqueólogos reagiram apresentando
tipologias muito úteis de recolectores, mas desde a década de 1980 outros foram
muito mais longe e sugeriram que as analogias só podem ser enganadoras. Longe
de serem relíquias de um estilo de vida antigo, alegam estes antropólogos, os recolectores
modernos são fruto de processos históricos claramente modernos, sobretudo do
colonialismo europeu, o que significa, concluem, que os recolectores contemporâneos
pouco nos dizem sobre a pré-história. Alguns antropólogos começaram a defender
que a própria ideia de comparar recolectores pré-históricos e modernos é
implicitamente racista, uma vez que reduz os recolectores contemporâneos ao
estatuto de «antepassados vivos» que foram deixados para trás pelo progresso,
logo, precisam de ser protegidos sob a asa das sociedades de combustíveis
fósseis. [MORRIS, 2017: 60-61]
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MORRIS, Ian. Caçadores,
Camponeses e Combustíveis Fósseis – Como evoluíram os valores humanos.
Lisboa: Bertrand Editora, 2017, pp. 448. ISBN 978-972-25-3249-5
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