Nicholas Roerich © Way to Shamballa (1933)
Com muita diligência e maior alegria começámos
a subir as serras; são elas as mais fragosas e altas que parece pode haver no
mundo, e bem longe estou de poder declarar a V. R. a dificuldade com que por
elas subimos; basta que depois de andar dois dias desde pela manhã até à noite,
não acabámos de passar uma, cortando pelo mais altos picos e neles por caminho
tão estreito que por muitas vezes não é mais largo que quanto cabe um só pé,
andando bons pedaços assim, pé ante pé, pegados com as mãos para não resvalar,
pois o mesmo é errar o pôr o pé bem direito que fazer-nos em pedaços pelos
ares. São pela maior parte aquelas serras tão talhadas a pique como se por arte
estivessem a prumo, correndo-lhes lá no profundo como em um abismo o rio
Ganges, que, por ser mui caudaloso e se despenhar com notável estrondo por
grande penedia entre serras tão juntas, acrescenta com o seu eco o pavor que a
estreiteza do caminho causa a quem vai passando. Tem as descidas mais dificultosas
e perigosas, pois carece homem em muitas partes de remédio de se poder pegar
com as mãos como nas subidas e assim é necessário descer em muitas partes como
quem desce escada de mão, dando as costas ao caminho que vai fazendo. [AA. VV., 1989: 69]
Invocando o nome de Jesus e ajuda do Senhor,
continuámos por diante, porém o trabalho que passámos foi muito excessivo,
porque nos acontecia muitas vezes ficar encravados na neve, ora até aos ombros,
ora até aos peitos, de ordinário até ao joelho, cansando a sair acima, mais do
que se pode crer, e suando suores frios, vendo-nos não poucas vezes em risco de
vida; muitas vezes nos era necessário ir por cima da neve com o corpo, como
quem vai nadando, porque desta maneira não se encrava tanto nela; assim fomos
continuando, dormindo as noites sobre a mesma neve, sem ter mais abrigo que
deitar um dos três cambolins que levávamos por cima dela, e cobrindo-nos todos
três com os outros dois, e não era este o maior trabalho, porque mais sentíamos
a neve que começava a cair das quatro da tarde por diante, quase toda a noite,
tão miúda e tão espessa que nos não deixava ver, estando juntos, acompanhada
com um vento teso e sobremaneira frio, cobria-nos por cima dos cambolins e o
remédio era sacudi-la por muitas vezes para não ficarmos enterrados debaixo
dela. Nos pés, mãos e rosto não tínhamos sentimentos, porque com o demasiado
rigor do frio ficávamos totalmente sem sentido; aconteceu-me, pegando em não
sei quê, cair-me um bom pedaço do dedo sem eu dar fé disso, sem sentir ferida,
se não fora o muito sangue que dela corria. Os pés foram apodrecendo, de
maneira que, de mui inchados, no-los queimavam depois com brasas vivas e ferros
abrasados e com muito pouco sentimento nosso; a isto se acrescentaram dois
grandes males, o primeiro, que cada um de nós tinha um mortal fastio, com o que
ficávamos como que impossibilitados para comer; não me lembra que em doença
tivesse outro mal igual a este; mas a necessidade fazia que sobre todas as
repugnâncias comesse alguma coisa e com muita força e com algumas invenções
procurava com os moços o mesmo, mais do que nunca fiz a doentes graves. A outra
coisa que nos foi de pena era não achar água para beber, a qual, ainda no meio
de tais frios, nos era bem necessária, por razão da secura que causava o muito
trabalho; não era esta falta por faltarem fontes, mas por todas correrem
ocultamente por baixo da neve e pela mesma maneira o rio Ganges, vindo quase
todo o caminho por baixo dela. Comíamos pedaços da mesma neve e às vezes,
quando o sol começava de aquentar, derretíamos uma pouca em um prato de latão.
Nesta forma fomos caminhando até ao alto de todas as serras onde nasce o rio
Ganges de um grande tanque e do mesmo nasce também outro que rega as terras do
Tibete. Já neste tempo tínhamos a vista dos olhos quase toda perdida, mas eu
perdi mais tarde que os moços, pela muita diligência que fiz em resguardar os
olhos, mas não foi bastante para não ficar quase cego por mais de vinte e cinco
dias, sem poder rezar o ofício divino, nem ainda conhecer uma só letra do
breviário. [AA. VV., 1989: 76-77]
© António de Andrade
Os jesuítas portugueses António de Andrade, Manuel Marques e,
posteriormente, Gonçalo de Sousa terão sido os primeiros europeus a adentrar-se
na cordilheira dos Himalaias: aventura descrita no «descobrimento do Grão-Cataio e reinos do Tibete». Disso nos dá
notícia António de Andrade em três cartas: a primeira datada de 1624, a segunda
de 1626 e a terceira de 1627. É de destacar o facto deste ter passado o colo de
Mana a 5604 metros de altitude. Não se deve também ignorar as expedições de
Estêvão Cacela (1627) e de Francisco de Azevedo (1631) que, em ambos os casos,
ultrapassaram novamente os cinco mil metros de altitude. [CUIÇA, 2010: 37]
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AA.VV.. Notícias da China e do Tibete – Cartas dos Cativos de Cantão: Cristovão
Vieira e Vasco Calvo (1524) – O Descobrimento do Tibete, pelo Pe. António de
Andrade (1624). Lisboa: Publicações Alfa, 1989, pp. 132.
ANDRADE, P. António. O descobrimento do Tibet. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1921, pp. 142.
ANDRADE, P. António. O descobrimento do Tibet. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1921, pp. 142.
CUIÇA, Pedro. Guia de Montanha – Manual Técnico de Montanhismo
I. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal/Campo Base,
2010, pp. 224. ISBN 978-989-96647-1-5
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