quinta-feira, 27 de julho de 2017

A caminho de Xembala

Nicholas Roerich © Way to Shamballa (1933)

Com muita diligência e maior alegria começámos a subir as serras; são elas as mais fragosas e altas que parece pode haver no mundo, e bem longe estou de poder declarar a V. R. a dificuldade com que por elas subimos; basta que depois de andar dois dias desde pela manhã até à noite, não acabámos de passar uma, cortando pelo mais altos picos e neles por caminho tão estreito que por muitas vezes não é mais largo que quanto cabe um só pé, andando bons pedaços assim, pé ante pé, pegados com as mãos para não resvalar, pois o mesmo é errar o pôr o pé bem direito que fazer-nos em pedaços pelos ares. São pela maior parte aquelas serras tão talhadas a pique como se por arte estivessem a prumo, correndo-lhes lá no profundo como em um abismo o rio Ganges, que, por ser mui caudaloso e se despenhar com notável estrondo por grande penedia entre serras tão juntas, acrescenta com o seu eco o pavor que a estreiteza do caminho causa a quem vai passando. Tem as descidas mais dificultosas e perigosas, pois carece homem em muitas partes de remédio de se poder pegar com as mãos como nas subidas e assim é necessário descer em muitas partes como quem desce escada de mão, dando as costas ao caminho que vai fazendo. [AA. VV., 1989: 69]

Invocando o nome de Jesus e ajuda do Senhor, continuámos por diante, porém o trabalho que passámos foi muito excessivo, porque nos acontecia muitas vezes ficar encravados na neve, ora até aos ombros, ora até aos peitos, de ordinário até ao joelho, cansando a sair acima, mais do que se pode crer, e suando suores frios, vendo-nos não poucas vezes em risco de vida; muitas vezes nos era necessário ir por cima da neve com o corpo, como quem vai nadando, porque desta maneira não se encrava tanto nela; assim fomos continuando, dormindo as noites sobre a mesma neve, sem ter mais abrigo que deitar um dos três cambolins que levávamos por cima dela, e cobrindo-nos todos três com os outros dois, e não era este o maior trabalho, porque mais sentíamos a neve que começava a cair das quatro da tarde por diante, quase toda a noite, tão miúda e tão espessa que nos não deixava ver, estando juntos, acompanhada com um vento teso e sobremaneira frio, cobria-nos por cima dos cambolins e o remédio era sacudi-la por muitas vezes para não ficarmos enterrados debaixo dela. Nos pés, mãos e rosto não tínhamos sentimentos, porque com o demasiado rigor do frio ficávamos totalmente sem sentido; aconteceu-me, pegando em não sei quê, cair-me um bom pedaço do dedo sem eu dar fé disso, sem sentir ferida, se não fora o muito sangue que dela corria. Os pés foram apodrecendo, de maneira que, de mui inchados, no-los queimavam depois com brasas vivas e ferros abrasados e com muito pouco sentimento nosso; a isto se acrescentaram dois grandes males, o primeiro, que cada um de nós tinha um mortal fastio, com o que ficávamos como que impossibilitados para comer; não me lembra que em doença tivesse outro mal igual a este; mas a necessidade fazia que sobre todas as repugnâncias comesse alguma coisa e com muita força e com algumas invenções procurava com os moços o mesmo, mais do que nunca fiz a doentes graves. A outra coisa que nos foi de pena era não achar água para beber, a qual, ainda no meio de tais frios, nos era bem necessária, por razão da secura que causava o muito trabalho; não era esta falta por faltarem fontes, mas por todas correrem ocultamente por baixo da neve e pela mesma maneira o rio Ganges, vindo quase todo o caminho por baixo dela. Comíamos pedaços da mesma neve e às vezes, quando o sol começava de aquentar, derretíamos uma pouca em um prato de latão. Nesta forma fomos caminhando até ao alto de todas as serras onde nasce o rio Ganges de um grande tanque e do mesmo nasce também outro que rega as terras do Tibete. Já neste tempo tínhamos a vista dos olhos quase toda perdida, mas eu perdi mais tarde que os moços, pela muita diligência que fiz em resguardar os olhos, mas não foi bastante para não ficar quase cego por mais de vinte e cinco dias, sem poder rezar o ofício divino, nem ainda conhecer uma só letra do breviário. [AA. VV., 1989: 76-77]

© António de Andrade

Os jesuítas portugueses António de Andrade, Manuel Marques e, posteriormente, Gonçalo de Sousa terão sido os primeiros europeus a adentrar-se na cordilheira dos Himalaias: aventura descrita no «descobrimento do Grão-Cataio e reinos do Tibete». Disso nos dá notícia António de Andrade em três cartas: a primeira datada de 1624, a segunda de 1626 e a terceira de 1627. É de destacar o facto deste ter passado o colo de Mana a 5604 metros de altitude. Não se deve também ignorar as expedições de Estêvão Cacela (1627) e de Francisco de Azevedo (1631) que, em ambos os casos, ultrapassaram novamente os cinco mil metros de altitude. [CUIÇA, 2010: 37]



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AA.VV.. Notícias da China e do Tibete – Cartas dos Cativos de Cantão: Cristovão Vieira e Vasco Calvo (1524) – O Descobrimento do Tibete, pelo Pe. António de Andrade (1624). Lisboa: Publicações Alfa, 1989, pp. 132.
ANDRADE, P. António. O descobrimento do Tibet. Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1921, pp. 142.
CUIÇA, Pedro. Guia de Montanha – Manual Técnico de Montanhismo I. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal/Campo Base, 2010, pp. 224. ISBN 978-989-96647-1-5

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