Charles Baudelaire |
«A multidão é seu
universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e
profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o
observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no número, no
ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e
contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no
centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres
desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais que a linguagem não
pode definir senão toscamente.»
Charles
Baudelaire1
Estar e não estar, ser e
não ser. Povoar a (sua) solidão no seio de uma multidão atarefada e impessoal.
Assim se posicionaria Charles Baudelaire (1821-1867), o poeta da modernidade e
da decadência… do Homo urbanus. Embora Baudelaire buscasse inspiração n’O
Homem da Multidão (da qual fez a tradução), a realidade de Edgar Allan Poe (1809-1849),
o autor dessa novela, não tem propriamente as características parisienses. O
homem da multidão de Baudelaire é o flâneur, o errante e incansável andarilho
de Paris, que incarna a experiência transitória e transitável do pass(e)ante. Ademais esse profundo vagabundo incorpora «a
capacidade de ver no deserto da metrópole não só a decadência do homem, mas
também de pressentir uma beleza misteriosa, não descoberta até então» (Friedrich, 1991 in Munhoz e Costa, 2017). É
nesse contexto que Baudelaire revela a dissonância entre o «fetiche da
mercadoria» e o capitalismo burguês face à surpreendente e quasi inconcebível
poética do(s) lugar(es). É também através do olhar do flâneur que Paris –
a Cidade Luz – é transfigurada poeticamente numa metrópole pejada de sombras, em
seu estado de spleen, melancólico e triste. Afinal para evidenciar que
Paris mais do que uma cidade é um estado mental (Munhoz
e Costa, 2017: 296):
«Ao vagar pelas ruas,
apreendendo a cada detalhe sem ser notado e sem se inserir na paisagem, o flâneur
quer apossar-se da sua própria experiência. Mas tal experiência parece
esvaziar-se diante das multidões de seu tempo. A cidade superpovoada, os espaços
preenchidos, os movimentos dos transeuntes compõem a multidão. E o homem da
multidão recusa-se a estar só. Está em todos os lugares enquanto está em lugar
nenhum.»
Como os não-lugares de
Marc Augé, esses espaços intercambiáveis onde os seres humanos permanecem
anónimos e que não possuem significado suficiente para serem considerados “lugares”,
o homem das multidões recusa-se a estar só e, todavia, não deixa de ser um
solitário acompanhado. Sem sequer ser alvo de uma abordagem solidaire (solidária),
é um pária. E, contudo, essa solidão paradoxal estimula paradoxalmente a sua volúpia
de flâneur num reiterado mergulho de/na multidão, em busca de um sentido,
«na decifração de signos, na busca de imagens vivas, no encontro de paisagens
em movimento, nos vestígios de uma aura, no fascínio de um olhar» (Munhoz e Costa, 2017: 297). Na busca da sensação
de estar vivo e de pertença…
Outro escritor que
incarna o papel de flâneur de forma tão marcante quanto revolucionária e
surpreendente é Henry Miller (1891-1980). Nesse contexto, merece um especial
destaque o seu livro Primavera Negra (1936), «talvez aquele em que a
figura do caminhante se mostra mais evidente» (Munhoz
e Costa, 2017: 298). Os capítulos dessa obra são compostos por inúmeros
«fragmentos dispersos que afirmam a atividade deambulatória de Miller» (ibid.). As suas incursões pedestres começam na
infância e estendem-se à idade adulta, assumindo dimensões de grande
significância já na sua cidade natal de Nova Iorque mas, sem dúvida, é em Paris
que a sua arte de andar adquire uma expressão extraordinária. Torna-se um flâneur
inveterado que palmilha extensos quilómetros acompanhado e estimulado frequentemente
por uma fome omnipresente, quase diria dilacerante. Tal como Baudelaire, também
rodeado de inúmeros transeuntes, por personagens passantes, seus contemporâneos
mas como que vivendo noutra dimensão espácio-temporal; e, no entanto, sempre na
espera delirante de que algo aconteça: um acontecimento inusitado, uma aventura.
E as sempre presentes paisagens edificadas, materiais e imateriais, mormente os
passageiros odores da elegante gastronomia francesa! As caminhadas de Baudelaire são por vezes marcadas
pelo tédio de vivencias passadas que se repetem reiteradamente no presente, as andanças
de Miller estão invariavelmente sequiosas de renovação, de inovação, diria
mesmo de alteridade. Como escreveu Henry Miller (1968:
158): «Ora, eu saí para um passeio, um curto passeio de cinquenta anos
mais ou menos efetuado no virar de uma página». Uma página sem dúvida admirável. Um mergulho de realidade profunda, mesmo que por vezes ficcionada e, por isso, motivo de pasmo.
Henry Miller |
Notas
1) O pintor do mundo moderno, originalmente publicado em Le
Figaro (1863). Trecho copiado de Dayane da Silva Nascimento, Olhares sobre
o moderno: a metrópole nas visões de Charles Baudelaire e João do Rio.
2) Ver "Le flâneur des villes"
3) Ver "Paranóia deambulatória"
Bibliografia
Miller, Henry. 1968. Primavera
Negra. São Paulo: Ibrasa.
Munhoz, Angelica Vier e
Luciano Bedin da Costa. 2017. “O flâneur e as vertigens do tempo: uma aprendizafem”.
Linhas 18(38): 192-303.
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