«Apenas encontrei uma ou duas
pessoas no curso da minha vida que compreenderam a arte de caminhar, ou seja,
de dar grandes passeios – e que tinham talento, assim dizendo, para vaguear, na
nossa língua, saunterer, palavra maravilhosamente derivada «dos vadios
que erravam pelo país, na Idade Média, pedindo esmolas, sob o pretexto de irem
à Terra Santa, até as crianças gritarem “Aí vai um peregrino da Terra Santa”»,
um sainte-terrer, um saunterer, um vagabundo.» (Thoreau,
2021: 13-14)
«Alguns, todavia, reivindicam
a origem da palavra à expressão sans terre, sem-terra ou propriedade,
que, por isso mesmo, num certo sentido, significará não ter casa específica,
mas que igualmente se sentem em casa em todo o lado.» (Thoreau, 2021: 14)
«Pois cada caminhada é
uma pequena cruzada, pregada por um tal Pedro, o Eremita, que existe
dentro de cada um de nós, para que partamos e reconquistemos a Terra Santa das
mãos dos infiéis. (…) É verdade, hoje em dia não somos mais do que uma pálida versão
das cruzadas, e a esta fraqueza nem os caminhantes mais intrépidos escapam,
pois não se comprometem com proezas intermináveis.» (Thoreau, 2021: 14).
«(…) cavaleiros de uma
nova, ou antes, velha, ordem – não Equestre ou Cavalheiresca, nem de
Cavaleiros Andantes ou Paladinos, mas Caminhantes, uma classe, a meu ver, ainda
mais antiga e venerável. O espírito heróico e cavalheiresco que antigamente
pertencia ao Cavaleiro parece agora residir, ou prevalecer, no Caminhante, no
Andarilho – não no Cavaleiro; uma figura como uma espécie de quarto estado,
além da Igreja, do Estado e do Povo.» (Thoreau, 2021: 15).
«Nenhuma riqueza compra
os incontornáveis prazeres, liberdade e independência em que assenta a fundação
deste edifício. Deriva apenas da graça de Deus. Para nos transformarmos
em caminhantes, precisamos de uma licença directa dos Céus.» (Thoreau, 2021: 16).
«(…) o caminhar de que
falo em nada se assemelha a fazer exercício (…).» (Thoreau, 2021: 19).
Diz Thoreau que apenas
encontrou uma ou duas pessoas no decurso da sua vida «que compreenderam a arte
de caminhar» e diria eu que poucas pessoas terão compreendido as mensagens (ou
a grande mensagem) que encerrou no seu livrinho sobre vadiagem ou peregrinação,
como lhe queiram chamar, traduzido para português por várias editoras sob
diversos títulos: por exemplo, Caminhar (Hiena, 1995), A Arte de
Caminhar (Padrões Culturais Editora, 2011), Caminhada (Antígona,
2012) ou Andar a Pé – Um ritual interior de sabedoria e liberdade (Alma
dos Livros, 2021). A sua escrita, aparentemente simples, não é explicita, mas
deixa uma série de pistas que permitem traçar o rumo da caminhada de que trata
esta pequena, em tamanho, mas simultaneamente grande, em conteúdo, obra…
Sair dos feudos medievais
onde se encontravam, ficando, portanto, sem terra, para se desencontrarem vagueando
ou vadiando, numa peregrinatio, rumo à "Terra Santa", quais caminheiros andantes
na graça de Deus?... Curioso será constatar o quão distante estará este modus
operandi daquilo a que hoje em dia se convencionou chamar “peregrinação” e
se tornou o acto de peregrinar, na generalidade das suas roupagens mais
frequentes e comuns. E mais não digo.
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