domingo, 6 de agosto de 2023

Caminheiros Andantes

 


«Apenas encontrei uma ou duas pessoas no curso da minha vida que compreenderam a arte de caminhar, ou seja, de dar grandes passeios – e que tinham talento, assim dizendo, para vaguear, na nossa língua, saunterer, palavra maravilhosamente derivada «dos vadios que erravam pelo país, na Idade Média, pedindo esmolas, sob o pretexto de irem à Terra Santa, até as crianças gritarem “Aí vai um peregrino da Terra Santa”», um sainte-terrer, um saunterer, um vagabundo.» (Thoreau, 2021: 13-14)

 

«Alguns, todavia, reivindicam a origem da palavra à expressão sans terre, sem-terra ou propriedade, que, por isso mesmo, num certo sentido, significará não ter casa específica, mas que igualmente se sentem em casa em todo o lado.» (Thoreau, 2021: 14)

 

«Pois cada caminhada é uma pequena cruzada, pregada por um tal Pedro, o Eremita, que existe dentro de cada um de nós, para que partamos e reconquistemos a Terra Santa das mãos dos infiéis. (…) É verdade, hoje em dia não somos mais do que uma pálida versão das cruzadas, e a esta fraqueza nem os caminhantes mais intrépidos escapam, pois não se comprometem com proezas intermináveis.» (Thoreau, 2021: 14).

 

«(…) cavaleiros de uma nova, ou antes, velha, ordem – não Equestre ou Cavalheiresca, nem de Cavaleiros Andantes ou Paladinos, mas Caminhantes, uma classe, a meu ver, ainda mais antiga e venerável. O espírito heróico e cavalheiresco que antigamente pertencia ao Cavaleiro parece agora residir, ou prevalecer, no Caminhante, no Andarilho – não no Cavaleiro; uma figura como uma espécie de quarto estado, além da Igreja, do Estado e do Povo.» (Thoreau, 2021: 15).

 

«Nenhuma riqueza compra os incontornáveis prazeres, liberdade e independência em que assenta a fundação deste edifício. Deriva apenas da graça de Deus. Para nos transformarmos em caminhantes, precisamos de uma licença directa dos Céus.» (Thoreau, 2021: 16).

 

«(…) o caminhar de que falo em nada se assemelha a fazer exercício (…).» (Thoreau, 2021: 19).

 

Diz Thoreau que apenas encontrou uma ou duas pessoas no decurso da sua vida «que compreenderam a arte de caminhar» e diria eu que poucas pessoas terão compreendido as mensagens (ou a grande mensagem) que encerrou no seu livrinho sobre vadiagem ou peregrinação, como lhe queiram chamar, traduzido para português por várias editoras sob diversos títulos: por exemplo, Caminhar (Hiena, 1995), A Arte de Caminhar (Padrões Culturais Editora, 2011), Caminhada (Antígona, 2012) ou Andar a Pé – Um ritual interior de sabedoria e liberdade (Alma dos Livros, 2021). A sua escrita, aparentemente simples, não é explicita, mas deixa uma série de pistas que permitem traçar o rumo da caminhada de que trata esta pequena, em tamanho, mas simultaneamente grande, em conteúdo, obra…

Sair dos feudos medievais onde se encontravam, ficando, portanto, sem terra, para se desencontrarem vagueando ou vadiando, numa peregrinatio, rumo à "Terra Santa", quais caminheiros andantes na graça de Deus?... Curioso será constatar o quão distante estará este modus operandi daquilo a que hoje em dia se convencionou chamar “peregrinação” e se tornou o acto de peregrinar, na generalidade das suas roupagens mais frequentes e comuns. E mais não digo.









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