domingo, 11 de junho de 2023

O Passeio...

 



O PASSEIO DE THOREAU

 

Eis a história de um passeio. Henry David Thoreau decide, na manhã de 23 de Julho de 1846, ir a Concord buscar uns sapatos que tinha deixado num sapateiro, para que lhes pusesse umas solas novas. Essas escapadelas até à cidade não lhe são desagradáveis [e, nem sequer, infrequentes, ao contrário daquilo que muitos autores superficiais ou por interpostos “escritores” apregoam: que Thoreau foi uma “espécie de ermita” do lago Walden! – primeiro paradoxo] De facto, há quase dois anos que apostou em viver em perfeita auto-suficiência, em experimentar uma «existência natural». Construiu a sua cabana completamente sozinho, com materiais recuperados nas margens do lago Walden, num terreno que era propriedade do seu amigo [Ralph Waldo] Emerson – escritor reconhecido e grande representante da filosofia transcendentalista americana.

E passa os dias a ler, a escrever, a realizar trabalhos variados, que lhe permitem alimentar-se e aquecer-se, e a efectuar, sobretudo, intermináveis passeios, durante os quais se abastece, como escreve no seu ensaio Caminhar, de 1861, de odores, de imagens e de presença. Sem salário, sem profissão, independente, auto-suficiente.

Henry David Thoreau nasceu e morreu em Concord (1827-1862), no Massachusetts. Primeiro paradoxo [o segundo paradoxo, portanto]: aquele que é considerado o elogiador do nomadismo, o apologista da errância, o poeta dos desvios desconhecidos, das caminhadas febris e ébrias, quase nunca saiu da sua cidade natal.

A decisão de instalar-se numa cabana construída com suas mãos – longe da sociedade, bem próximo das energias do mundo, contando, para viver, apenas com o seu trabalho manual, abandonando, portanto, a companhia dos homens e o caos das cidades, e optando pela «solidão», e pela «pobreza» –, na história do pensamento, adquiriu a dimensão de um gesto filosófico: a iniciação à verdadeira vida [sendo Thoreau conhecido como um dos fundadores da “simplicidade voluntária” e precursor do “minimalismo”].

Thoreau escreve no momento em que o capitalismo industrial se desenvolve, na América, com toda a sua força. A sua vida e sua obra representa a tentação do selvagem a crítica da técnica, a denúncia das alienações (económicas, sociais e culturais) e um chamamento para regressar à vida imediata, àquilo que [Arthur] Rimbaud chamava o «vigor». Ele tornou-se, para nós, o ícone da ruptura, o símbolo da subversão.

(…)

Para os seus contemporâneos, Thoreau passava, antes de tudo, por um excêntrico, um original. Regresso a essa manhã do mês de Julho de 1846. No centro da cidade, antes de ter conseguido reaver os seus sapatos, Thoreau é interpelado pelo filho do estalajadeiro, encarregado da colecta dos impostos, que o recorda de que deve ao Estado, havia vários anos, o imposto per capita. Thoreau recusa-se liminarmente a pagar, proclamando a sua indignação por, ao regularizar os seus impostos, ter de sustentar a guerra redeclarada ao México, que considera injusta, já para não falar do absurdo escândalo que representa, a seus olhos, a escravatura nos estados do Sul.

O cobrador fiscal vê-se, em virtude da lei, e das suas funções, obrigado a conduzir Thoreau à prisão. Este só passará uma noite, ao lado de um companheiro de cela suspeito de ter incendiado um celeiro.  Logo no dia seguinte, um parente (a sua mãe? a sua tia?) apressa-se a regularizar os impostos em atraso (e até, provavelmente, alguns anos adiantados), com medo do escândalo. Thoreau é convidado a sair da cela, coisa que faz quase de má vontade. Vai buscar os sapatos e, depois, sobe as colinas para apanhar arandos. A lenda diz que recebeu, durante essa breve estadia atrás das grades, a visita de Emerson, mais velho do que ele e seu mestre, que lhe terá perguntado: «Mas, afinal de contas, que faz você aqui?»; ao que Thoreau terá respondido: «Eu é que lhe devia fazer essa pergunta: como é possível que você não esteja aqui a meu lado?»

(…) Dessa noite passada na prisão, Thoreau extrairia a matéria para uma conferência que daria dois anos após os factos, intitulada «Resistência Civil ao Governo» (1848). É somente com a sua inclusão na edição das suas Obras Completas (1866), ou seja, depois da morte do seu autor, que o texto recebe o título «A Desobediência Civil». Paradoxo [terceiro], portanto, pois sabemos que esse caso é frequentemente citado como o momento que deu origem à desobediência civil. (…) Thoreau jamais usa a expressão «desobediência civil».

(…), no texto trata-se sobretudo da salvação isolada da nossa consciência, e nunca de um apelo à abolição de leis injustas através de acções concertadas, colectivas e pacíficas. Por conseguinte, deveremos pensar que Tolstoi, Gandhi e Martin Luther King leram mal, compreenderam mal, quando todos os três falam do choque, do encontro, que essa leitura representou para eles. O que se passa é que eles encontraram aí aquilo que escapa, sistematicamente, aos teóricos da desobediência civil, em busca de uma definição estável, em busca de critérios de diferenciação: o princípio de uma conversão espiritual. Em Thoreau a desobediência está enraizada num trabalho ético sobre nós mesmos, numa exigência interior, de que dão testemunho os seus longos passeios, que equivalem às orações de Martin Luther King e à fiação de algodão de Gandhi. Essa transformação, essa ascese, é a transcendência ética da desobediência civil.

(…) A verdadeira diferença não é entre a desobediência colectiva (desobediência civil) e a insubordinação individual (objecção de consciência), mas sim entre uma desobediência passiva [ou oposição passiva], que faz apenas mudarmos de amo, e uma desobediência activa, que toma por ponto de referência a reforma interior, a exigência crítica. Descobrimo-nos insubstituíveis, logo que se trata de servir os outros, defendermos o sentido da justiça e a dignidade dos excluídos, experienciarmos o que é indelegável, é entrarmos na dissidência cívica. E a dissidência cívica é a postura ética, que há em cada um, a partir da qual a desobediência civil, como composição de forças, se autentifica e desencoraja, antecipadamente, qualquer valorização politiqueira.

[GROS, 2019: 133-145]

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GROS, Frederic. 2019. Desobedecer. Lisboa: Antígona, pp. 224. ISBN978-972-608-348-1

THOREAU, Henry David. 2020. A Desobediência Civil - seguido de Defesa de John Brown. Lisboa: Antígona, pp. 128. ISBN 978-972-608-012-1

THOREAU, Henry David. 1999. Walden ou A Vida nos Bosques. Lisboa: Antígona, pp. 368. ISBN 978-972-608-106-8

THOREAU, Henry David. 2012. Caminhada. Lisboa: Antígona, pp. 88. ISBN 978-972-608-225-5


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