O PASSEIO DE THOREAU
Eis a história de um
passeio. Henry David Thoreau decide, na manhã de 23 de Julho de 1846, ir a
Concord buscar uns sapatos que tinha deixado num sapateiro, para que lhes
pusesse umas solas novas. Essas escapadelas até à cidade não lhe são
desagradáveis [e, nem sequer, infrequentes, ao contrário daquilo que muitos
autores superficiais ou por interpostos “escritores” apregoam: que Thoreau foi
uma “espécie de ermita” do lago Walden! – primeiro paradoxo] De facto, há quase dois anos que
apostou em viver em perfeita auto-suficiência, em experimentar uma «existência
natural». Construiu a sua cabana completamente sozinho, com materiais
recuperados nas margens do lago Walden, num terreno que era propriedade do seu
amigo [Ralph Waldo] Emerson – escritor reconhecido e
grande representante da filosofia transcendentalista americana.
E passa os dias a ler, a
escrever, a realizar trabalhos variados, que lhe permitem alimentar-se e
aquecer-se, e a efectuar, sobretudo, intermináveis passeios, durante os quais
se abastece, como escreve no seu ensaio Caminhar, de 1861, de odores, de
imagens e de presença. Sem salário, sem profissão, independente,
auto-suficiente.
Henry David Thoreau
nasceu e morreu em Concord (1827-1862), no Massachusetts. Primeiro paradoxo [o segundo paradoxo, portanto]: aquele que é considerado o
elogiador do nomadismo, o apologista da errância, o poeta dos desvios
desconhecidos, das caminhadas febris e ébrias, quase nunca saiu da sua cidade
natal.
A decisão de instalar-se
numa cabana construída com suas mãos – longe da sociedade, bem próximo das
energias do mundo, contando, para viver, apenas com o seu trabalho manual,
abandonando, portanto, a companhia dos homens e o caos das cidades, e optando
pela «solidão», e pela «pobreza» –, na história do pensamento, adquiriu a
dimensão de um gesto filosófico: a iniciação à verdadeira vida [sendo Thoreau conhecido como um dos
fundadores da “simplicidade voluntária” e precursor do “minimalismo”].
Thoreau escreve no
momento em que o capitalismo industrial se desenvolve, na América, com toda a
sua força. A sua vida e sua obra representa a tentação do selvagem a crítica da
técnica, a denúncia das alienações (económicas, sociais e culturais) e um
chamamento para regressar à vida imediata, àquilo que [Arthur] Rimbaud chamava o «vigor». Ele
tornou-se, para nós, o ícone da ruptura, o símbolo da subversão.
(…)
Para os seus
contemporâneos, Thoreau passava, antes de tudo, por um excêntrico, um original.
Regresso a essa manhã do mês de Julho de 1846. No centro da cidade, antes de
ter conseguido reaver os seus sapatos, Thoreau é interpelado pelo filho do
estalajadeiro, encarregado da colecta dos impostos, que o recorda de que deve
ao Estado, havia vários anos, o imposto per capita. Thoreau recusa-se
liminarmente a pagar, proclamando a sua indignação por, ao regularizar os seus
impostos, ter de sustentar a guerra redeclarada ao México, que considera
injusta, já para não falar do absurdo escândalo que representa, a seus olhos, a
escravatura nos estados do Sul.
O cobrador fiscal vê-se,
em virtude da lei, e das suas funções, obrigado a conduzir Thoreau à prisão.
Este só passará uma noite, ao lado de um companheiro de cela suspeito de ter
incendiado um celeiro. Logo no dia
seguinte, um parente (a sua mãe? a sua tia?) apressa-se a regularizar os
impostos em atraso (e até, provavelmente, alguns anos adiantados), com medo do
escândalo. Thoreau é convidado a sair da cela, coisa que faz quase de má
vontade. Vai buscar os sapatos e, depois, sobe as colinas para apanhar arandos.
A lenda diz que recebeu, durante essa breve estadia atrás das grades, a visita
de Emerson, mais velho do que ele e seu mestre, que lhe terá perguntado: «Mas,
afinal de contas, que faz você aqui?»; ao que Thoreau terá respondido: «Eu é
que lhe devia fazer essa pergunta: como é possível que você não esteja aqui a
meu lado?»
(…) Dessa noite passada
na prisão, Thoreau extrairia a matéria para uma conferência que daria dois anos
após os factos, intitulada «Resistência Civil ao Governo» (1848). É somente com
a sua inclusão na edição das suas Obras Completas (1866), ou seja,
depois da morte do seu autor, que o texto recebe o título «A Desobediência
Civil». Paradoxo [terceiro], portanto, pois sabemos que esse
caso é frequentemente citado como o momento que deu origem à desobediência
civil. (…) Thoreau jamais usa a expressão «desobediência civil».
(…), no texto trata-se
sobretudo da salvação isolada da nossa consciência, e nunca de um apelo à
abolição de leis injustas através de acções concertadas, colectivas e
pacíficas. Por conseguinte, deveremos pensar que Tolstoi, Gandhi e Martin
Luther King leram mal, compreenderam mal, quando todos os três falam do choque,
do encontro, que essa leitura representou para eles. O que se passa é que eles
encontraram aí aquilo que escapa, sistematicamente, aos teóricos da
desobediência civil, em busca de uma definição estável, em busca de critérios
de diferenciação: o princípio de uma conversão espiritual. Em Thoreau a desobediência
está enraizada num trabalho ético sobre nós mesmos, numa exigência interior, de
que dão testemunho os seus longos passeios, que equivalem às orações de Martin
Luther King e à fiação de algodão de Gandhi. Essa transformação, essa ascese, é
a transcendência ética da desobediência civil.
(…) A verdadeira
diferença não é entre a desobediência colectiva (desobediência civil) e a
insubordinação individual (objecção de consciência), mas sim entre uma
desobediência passiva [ou oposição passiva], que faz apenas mudarmos de amo, e uma desobediência
activa, que toma por ponto de referência a reforma interior, a exigência
crítica. Descobrimo-nos insubstituíveis, logo que se trata de servir os outros,
defendermos o sentido da justiça e a dignidade dos excluídos, experienciarmos o
que é indelegável, é entrarmos na dissidência cívica. E a dissidência cívica é
a postura ética, que há em cada um, a partir da qual a desobediência civil,
como composição de forças, se autentifica e desencoraja, antecipadamente,
qualquer valorização politiqueira.
[GROS, 2019: 133-145]
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
GROS, Frederic. 2019. Desobedecer.
Lisboa: Antígona, pp. 224. ISBN978-972-608-348-1
THOREAU, Henry David. 2020. A Desobediência Civil - seguido de Defesa de John Brown. Lisboa: Antígona, pp. 128. ISBN 978-972-608-012-1
THOREAU, Henry David. 1999.
Walden ou A Vida nos Bosques. Lisboa: Antígona, pp. 368. ISBN 978-972-608-106-8
THOREAU, Henry David.
2012. Caminhada. Lisboa: Antígona, pp. 88. ISBN 978-972-608-225-5