Três edições portuguesas de uma mesma obra de
Henry David Thoreau, três títulos diferentes – Caminhada, A
Arte de Caminhar e Caminhar –, uma nota prévia, uma
introdução e uma “coisa” do mesmo género…
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«Numa primeira acepção, Caminhada apresenta-se talvez ao leitor mais desprevenido como uma simples exortação ao refúgio na natureza agreste, apelo que valeu à obra, tal como Nature, de Emerson, o estatuto contemporâneo de ensaio basilar pelo qual se norteiam os movimentos ecologistas. A profunda sensibilidade poética do autor, a humanização da paisagem e dos seus elementos e o poder categórico das suas afirmações concisas, com potencial de porta-estandarte para as facções ambientalistas da actualidade, fazem de Caminhada um monumento perene à Natureza, reflexo de um princípio criador segundo o transcendentalismo.
Porém, o encanto da palestra [apresentada por mais de dez
vezes entre 1851 e 1860]
provém sobretudo da qualidade visionária das suas linhas. Nos primórdios da
Revolução Industrial americana, impunha-se a Thoreau o dever de chamar os seus
concidadãos à razão numa Nova Inglaterra onde, em nome do bem-estar material,
fora já plantada a semente de um mal-estar espiritual. Thoreau entrevia
precocemente o perigo da sociedade materialista e da destruição do seu torrão:
a distorção das necessidades básicas do homem que, por via da ganância da
espécie, o condena à condição de autómato. Em Caminhada, o percurso físico que
o autor advoga (em parte, um artifício que esconde o seu verdadeiro intento e
que se coaduna com a famosa frase de Emerson, mentor de Thoreau: «A natureza é
uma metáfora da mente humana») é afinal, um percurso espiritual, uma cruzada e
uma viagem interior, rumo a uma vida reduzida ao essencial e à liberdade
necessária para que o homem se torne dono e senhor de si mesmo, alheado de leis
arbitrárias e de uma vida em comunidade que o subjuga às verdades maiores. Tal
como Walden ou a Vida nos Bosques, Caminhada é um derradeiro alerta para
que o homem entenda que desligar-se do mundo natural, e da espiritualidade que
este encerra, e subvertê-lo ou estar excessivamente preso à civilização
redundam na perda de capacidades vitais, na degradação de instintos vitais e no
declínio civilizacional.»
Maria Afonso (in THOREAU, 2012: 7-9)
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«Thoreau serve-se dos pés e fá-lo
conscientemente em benefício da plenitude do seu ser. Longe de se assumir como
um desportista que sai para fazer uns quantos quilómetros, ele pratica a
caminhada, como terapêutica natural e inteligente. Para ele, andar a pé é algo
de sublime porque lhe permite sentir e comunicar com uma inteligência pura e
subtil que ultrapassa o pobre saber do homem comum.
(…) Este homem invulgar no seu tempo, e ainda
nos dias de hoje, pratica a arte de caminhar de uma forma que poderíamos
definir como “caminhada mitológica”. Para sair do “tempo normalizado” e viver
de acordo com um ritmo absoluto; para abstrair-se da via do desenvolvimento e
reencontrar o “verdadeiro caminho” do primordial; para afastar-se da doença
moderna e regenerar-se nas fontes do vigor que ele vê mitologicamente como a
árvore-dragão das Ilhas Ocidentais.
Existiam árvores-dragão à volta do lado de
Walden – mesmo se a grande maioria dos cidadãos de Concord as não via.
Este Thoreau que anda como se fosse parte
integrante da natureza, que faz de si um errante «sem terra», é para provocar
ou procurar o desfazer dos laços que o prendem ao seu meio social, à sua
humanidade.
Em boa verdade todos sabemos que andar é
descondicionar-se, numa espécie de ioga deambulatório, onde podemos
reencontrarmo-nos num outro ser, um ser mítico, ou seja ligando-nos aos
princípios das fontes do vigor.
Viver uma vida mítica é, pois, viver uma vida
principal, uma vida original e esta inteligência, Thoreau não a encontra na
ciência, como também não irá encontrá-la na maior parte da cultura, considerada
como poesia; mas afinal qual é a literatura que consegue exprimir em palavras a
plenitude da Natureza?»
(in
THOREAU, 2011: 7-9)
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«Só uma ou duas pessoas encontrei na vida, diz Thoreau no seu ensaio Caminhar, que
compreendiam a Arte de Caminhar. Segundo
Thoreau, praticar a arte de caminhar é saber fazer o sautering, palavra que tanto faz derivar de «sem
terra» como de «ir à Terra Santa». Esta última etimologia é que ele prefere, e
declara: Toda a caminhada é uma espécie de cruzada que um Pedro o Eremita
qualquer prega dentro de nós para partirmos e reconquistarmos a Terra Santa nas
mãos dos Infiéis. Porque há pessoas, há
civilizações inteiras que não sabem o que significa sermos «fiéis à Terra» e
não têm nenhuma noção da sua «santidade». Os «civilizados» talvez sejam todos
da mesma espécie. Por isso Thoreau não fala em nome da civilização – haverá
sempre muitas vozes a fazê-lo – mas em nome da vida selvagem, considerando o
homem como parte integrante da natureza
e não como membro da sociedade.
Thoreau
ou «o homem do exterior» por excelência.
Só
um caminhante de primeira ordem podia pertencer à Walden
Pond Association. Na aldeia de Concord
chamavam assim aos «passeantes de domingo», ou seja, não os que passeiam só aos
domingos, mas os que nunca vão à
igreja aos domingos e preferem os bosques. Podem dar-se nomes a estes
passeantes transcendentalistas: Ralph Waldo Emerson, Bronson Alcott, Frank
Sanborn, Ellery Channing, Henry Thoreau. Era Henry, sem dúvida, o mais exigente
de todos os passeantes, o mais rebelde a companhias que não estivessem à sua
altura.
(…)
Henry, sobretudo estava farto do «antropo»; e mais ou menos de tudo o que era
«humanidade», excepção feita a alguns velhos caçadores e indíos errantes,
estava a mais na natureza. Na sua opinião, a humanidade espalhava icterícia
moral num mundo que ele queria sentir fresco e em plena aurora. «Tantas auroras
existem que ainda não brilharam», tinha ele lido nos Vedas. Não havia tempo a
perder com a opacidade humana. Havia que andar em direcção à luz…
(…) Onde
está a literatura que consegue exprimir a Natureza? Fá-la-ia o poeta que
soubesse pôr os ventos e as torrentes ao seu serviço, a falar por ele; […] usasse palavras tão novas, naturais e
autênticas que […] parecessem expandir-se como
os rebanhos quando a Primavera se aproxima. […] Nenhum poeta conheço que
possa mencionar-se como expressão adequada desta ânsia pelo Selvagem. Abordada sob esta perspectiva, a mais bela
poesia é insípida. […] Compreender-se-áque peço
algo que os séculos de Augusto a Isabel, para resumir nenhuma cultura, podem oferecer. […] A
mitologia aproxima-se mais disto que outra coisa qualquer.
Thoreau pratica o que poderíamos chamar a caminhada
mitológica. Para sair do tempo e viver de
acordo com um ritmo absoluto; para sair da via do desenvolvimento e reencontrar
o caminho do primordial; para sair da doença moderna e se regenerar nas fontes
do vigor que ele vê mitologicamente como a árvore-dragão das Ilhas
Ocidentais.
Existiam
árvores-dragões à volta do lago Walden – mesmo se a grande maioria dos cidadãos
de Concord as não via.
Tu
Fu cantava «o dragão que
nenhum laço retém». Se Thoreau anda, se faz de si um errante «sem terra», é
para se desfazer dos laços que o prendem ao seu meio social, à sua humanidade,
ao seu eu. Andar é descondicionar-se
(ioga ambulatório) e reencontrar-se num ser outro: um ser mítico, quer dizer, com o mito a passar-se in principio, ligado ao princípio. Viver uma vida mítica
é, pois, viver uma vida principial,
uma vida original, «casada, diz Yeats, com os rochedos e as colinas».
(…)
Caminhar com Thoreau é ultrapassar as aparências. Atrás do puritano americano do século XIX havia um índio, atrás
do índio um chinês, atrás do chinês um ser que não tinha nome. Na sua caminhada
extravagante era este último que ele queria realizar.
Kenneth White (in THOREAU, 1995: 11- 16)
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REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
THOREAU, Henry David. Caminhada. Lisboa:
Antígona, 2012, pp. 88. ISBN 978-972-608-225-5
THOREAU, Henry David. A Arte de Caminhar.
Lisboa: Padrões Culturais Editora, 2011, pp. 104. ISBN 978-989-709-003-5
THOREAU, Henry David. Caminhar. Lisboa: Hiena
Editora, 1995, pp. 80.
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