quinta-feira, 22 de março de 2018

Ainda d'a poesia


O meu coração adopta todas as formas:
É pasto para a gazela e cenóbio para o eremita,
Templo para os ídolos e Kaaba para o peregrino,
Tábuas da Tora e livro do Alcorão
Apenas sigo a religião do Amor
Da sua caravana acompanho o trilho
Pois só o Amor tenho por fé e religião.

Ibn Arabi – Múrcia, 1165 (in VICENTE, 2010: 243)

Pedro Cuiça © túmulo do poeta Hâfez (Shiraz - Irão, Out./2017)

«De súbito, a claridade que lentamente vinha invadindo o vale e lhe permitia distinguir, cada vez mais nitidamente, os refinados bordados das teias de aranha entre os ramos dos arbustos nus, perlados com inúmeras gotículas de orvalho, manifestou-se num clarão de luz, quando o astro-rei se mostrou em todo o seu esplendor sobre os picos da Serra de Oden. Nunca se cansava do espectáculo proporcionado pela natureza, a eterna mãe, quando explodia, assim, em borbotões coloridos. Parecia-lhe que todo o conhecimento do universo se concentrava naquele momento, para ser colocado à disposição de quantos o soubessem ler e, então, o peito enchia-se-lhe de ternura por todos os seres, vivos e inanimados.
Terá sido esse sentimento a fazer-lhe recordar as longas conversas que, em torno da fogueira nas noites da Galileia, manteve com o velho sufi Ibn Arabi sobre a essência do Amor, como única via possível de união entre o Homem e Deus. Lembrava agora quão parecidas eram as suas palavras às dos Fideli d’Amore da sua querida Provença, onde a quente língua d’Oc apenas rivalizava com a  [línguados pássaros* nos seus gorgeios cantados.»
[VICENTE, 2010: 17-18]

«Profundos são os desígnios de Deus e longos os caminhos percorridos pelos irmãos da Ordem dos Trovadores. Também eles têm os seus segredos e pela sua linguagem argótica se guardam (…).»
[VICENTE, 2010: 28]

Pedro Cuiça © túmulo do poeta Saadi (Shiraz - Irão, Out./2017)

NOTA
*A língua dos pássaros também apelidada de língua das aves, gaia ciência (gaye science), gaio saber (gay sçavoir) ou língua dos deuses. · É a Luz espiritual da Palavra de Deus, expressa no seu próprio nome, que frutifica através da transformação da alma. É a saudação do anjo que actua sobre a Virgem, matéria prima no seu estado receptivo, essa mulher, mutans Evae nomen, cujo fruto seria entendido como a pedra filosofal, a transmutatio da alma caótica em espelho límpido do Conhecimento. [VICENTE, 2010: 120] · [Vós que ouvistes aquele AVE, da boca de Gabriel, estabelecei-nos na paz,] transformando o nome de EVA (ibidem: 120).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
VICENTE, António Balcão. O Templário d’El-Rei. Lisboa: Ésquilo, 2010, pp. 430. ISBN 978-989-8092-88-5


quarta-feira, 21 de março de 2018

D'o Amor...


Os Cavaleiros do Amor

«Neste vale, o amor é representado pelo fogo e a razão pelo fumo. Quando o amor toma o lugar, a razão desaparece. A razão não pode viver com a loucura do amor; o amor não tem nada que ver com a razão humana. Se possuíres a visão interior, os átomos do mundo visível ser-te-ão revelados. Mas se vires as coisas com os olhos da razão comum, jamais compreenderás quão necessário é amar. Só alguém posto à prova e em liberdade pode senti-lo. Quem empreende esta jornada deveria ter mil corações para poder sacrificar um a cada momento.»
Farid Ud-Din Attar (2013: 132-133)

«Ah! Maravilha! Um jardim no meio do fogo!
O meu coração tornou-se capaz de todas as formas:
pastagem para gazelas e abadia para monges,
templo para ídolos e Caaba para o peregrino,
As tábuas da Tora e o livro do Alcorão!
A minha religião é a religião do Amor:
Para onde segue a sua caravana, essa é a minha direcção!
O Amor é a minha religião e a minha fé!»
Ibn’Arabi, O Intérprete do desejos (in SINDE, 2013: 22-23)

«E se, confirmado pelo Criador, o apaixonado escapar das garras da águia do amor, haverá de entrar no Vale do Conhecimento.»
Bahá’u’lláh (2001:11-13)


Pedro Cuiça © Shiraz (Irão, Out./2017)

O perfume das flores que nos ofereceram é, a seu modo, inebriante e tão delicado quanto a sua denominação acolhedoramente mater-nal: Mariam (ou Miriam) –, ao que parece, chamadas “angélicas perfumadas” em português… E que contraste com o acre e o selvagem odor emanado pelas flores das áridas montanhas que palmilhei nos arredores de Shiraz – a cidade dos poetas –, num vasto mar de escalvadas rochas apenas interrompido, nos seus longínquos horizontes, por linhas montanhosas mais "cercanas"! Esta é, sem dúvida, uma terra de notórios e marcados contrastes, uns evidentes outros ocultos à vista de todos… Terra mirífica, admirável e maravilhosa, de gentes extraordinariamente gentis e cultas, onde não será incrível defrontar-nos com o inesperado ou o surpreendente.
Nessa terra é precisamente a poesia, enquanto linguagem muito próxima da “verdade”, a forma mais adequada de exprimir essa realidade, mais ou menos velada, mas sempre sobrejacente para mim, que se designa por “Amor”. E, quando nos referimos a realismo não estamos, à semelhança de António Telmo, a pensar tão somente «no mundo dado aos sentidos, naquilo a que chamamos o mundo objectivo». Segundo esse filósofo português, há uma dupla face da realidade – a natural e a sobrenatural – e é entre as duas que surge e se expressa o mistério metafórico e mediador do verbo, entre o mundo sensível e o mundo inteligível, entre o natural e o divino (TELMO, 2014: 85). Tudo aquilo que está subjacente ao visível (ou que será, inclusivamente, invisível) não é por isso inexistente. E, curiosamente, «tudo o que é do domínio do mistério, não é possível mostrar sem ocultar» (TELMO, 2009: 62).
O Amor não se restringe à cidade, bem pelo contrário, está expresso na rudeza dos montes e estende-se ao resto do território que foi outrora a Pérsia… Bem me lembro, passadas quase duas décadas, dos contrastantes campos, intensamente verdes e pontilhados de encarnadas papoilas, nas faldas do Damavand (5671 m), tal como dos dois cordeiros sacrificados sobre a nívea neve do cume dessa montanha!
Porque foi o Dervísh Muhammad-i-Írání, antes da sua proclamação e do seu ministério público enquanto Bahá’u’lláh, para um período de dois anos de afastamento e reclusão nas montanhas desoladas do Curdistão? Porque foi o Zaratustra de Nietzsche para a montanha e aí permaneceu, alimentando-se da sua sageza, durante 10 anos sem que se cansasse? Estarão estas e outras personagens (reais ou imaginárias!) na senda dos “fiéis de amor”: designação atribuída, por exemplo, a sete poetas maiores “iranianos”: Roudaki, Sa’adi, Attâr, Mowlavi, Khayyâm, Nezâmi e Hâfez? Como diria Ibn’Arabi, o grande místico andaluz, todos eles terão em comum uma mesma via: «o amor é o seu credo e a sua fé» (FOULADVIND, 2016: 9).

Pedro Cuiça © vista sobre Shiraz (Irão, Out./2017)

Pedro Cuiça © Monte Chamran (Irão, Out./2017)

Pedro Cuiça © Monte Chamran (Irão, Out./2017)

Pedro Cuiça © túmulo do poeta Hâfez (Shiraz - Irão, Out./2017)

Pedro Cuiça © túmulo do poeta Saadi (Shiraz - Irão, Out./2017)



Sur la voie
137

Tu verras de secret de la coupe du Graal
en te poudrant les yeux du khol de la taverne.
Bois, fais de la musique: il faut bien te distraire
et chasser de ton coeur ce qui lui fait si mal.

Veux-tu faire s’ouvrir la fleur de ton désir?
Approche-la comme une brise printanière.
Mendier devant l’auberge est l’unique elixir
qui puisse transmuter en or de la poussière.

Fais un pas ver l’étape de l’Amour. Crios-moi,
tu auras grand profit à scruter l’invisible.
Toi qui es prisonnier dans le monde sensible,
comment peix-tu savoir où se trouve la Voie?

La beauté de l’Ami sans voile est l’Evidence,
Mais tu dois te frotter les yeux pour y voir clair.
Écoute! Si tu veux savourer la Présence,
demande aux initiés leur grâce et leur faveur.

Si tu es attaché à la coupe et aux lèvres,
jamais rien d’important ne se fait dans la fièvre.

Hâfez Shirâzi
(SHIRÂZI, 2016: 133)

(SHIRÂZI, 2016: 132)

NOTA
Estive no Irão por duas vezes – em Junho de 2001 e em Outubro de 2017 – e no regresso da segunda viagem, ainda antes de chegar a Portugal, tomei a decisão de escrever um texto sobre a significativa experiência vivenciada nessa “terra de poetas” e cuja temática se tornou, desde logo, tão evidente quanto incontornável: o Amor. No entanto, a “complexidade” e a profundidade do tema foi fazendo com que fosse adiando essa manifesta necessidade de escrever o texto em questão e só hoje, por alturas do Naw-Rúz, neste que é o Dia Mundial da Poesia, da Árvore e das Florestas, me vi "obrigado" a fazê-lo. De forma incompleta e inconclusiva, é certo, mas não poderia deixar de o fazer, nem que fosse (e é) sob a forma de um simples esquisso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATTAR, Farid Ud-Din. A Conferência dos Pássaros – Uma fábula espiritual sobre o conhecimento de si mesmo. Barcarena: Marcador Editora, 2013, pp. 174. ISBN 978-989-754-006-6
Bahá’u’lláh. Os Sete Vales – A jornada de um peregrino em busca do Ser Eterno. Mogi Mirim (Brasil): Editora Planeta Paz, 4ª ed., 2001, pp. 68.ISBN 85-85690-27-5
BRUNO, Sampaio. Os Cavaleiros do Amor – Plano de um livro a fazer – Dispersos e Inéditos. Lisboa: Guimarães Editores, 1960, pp. 216.
FOULADVIND, Hamèd. Les Sept Fidèles d’amour. Teerão: Yassavoli Publications, 2016, pp. 90. ISBN 978-964-306-612-3
GOMES, Pinharanda. A Teologia de Leonardo Coimbra. Lisboa: Guimarães Editores, 1985, 200.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães Editores, 1985, pp. 376.
SHIRÂZI, Hâfez. L’amour, l’amant, l’aimé – cent ballades traduites du persan et présentées par Vincent-Mansour Monteil en collaboration avec calligraphies originales. Irão: 2016, pp. 316. ISBN 978-964-96229-3
SINDE, Pedro. Sete Sábios Portugueses. Chaves: Tartaruga, 2013, pp. 232. ISBN 978-989-8057-39-6
TELMO, António. Congeminações de um Neopitagórico. Sintra: Zéfiro, 2009, pp. 184. ISBN 978-972-8958-85-5
TELMO, António. Gramática Secreta da Língua Portuguesa. Sintra: Zéfiro, 2014, pp. 216. ISBN 978-989-677-119-5.

Himalaias em mim

No dia da poesia...

Nicholas Roerich © Ice Sphinx (1938)

«É ciência subir os Himalaias
e criar matemática sem fim
mas é cultura vê-la poesia 
e ter os Himalaias dentro de mim»

Agostinho da Silva (in Quadras Inéditas, p.38)

terça-feira, 20 de março de 2018

O Velho da Montanha


© Nicholas Roerich (1933)

LA MONTAGNE

C’est comme la rosée de l’Hermon,
Qui descend sur les montagnes de Sion,
C’est là que l’Éternel donne la bénédiction.
La vie, pour l’éternité.
PSAUME 133-3

(…)
C’est avec le coeur léger qu’il s’éleva  vers les plus hautes cimes. La lumière qui descendait à sa recontre au fur et à mesure qu’il gravissait les parois rocheuses illuminait le chemin qu’il emprunta. Dans son coeur, une douce voix l’appelait au-delà des cieux, et dans les profondeurs du silence, il entrevit une beauté qui toujours échappait à ses yeux.
(…)


L’UNITÉ DANS LA DIVERSITÉ

La vie se manifeste par amour,
Et s’épanouit dans la lumière.
LE VIEUX DE LA MONTAGNE

(…)
Vous avez un jour réalisé que le moment était venu pour vous de mettre fin au désordre pour établir la vérité en vous-Même et la manifester dans vos pensées, vos actes et dans votre comportement, sachant que ce faisant, vous accélériez les conditions nécessaires à une vie plus heureuse et plus réussie. Vous l’avez réalisé parce que vous avez entendu láppel de la petite voix intérieure, mais aussi parce qu’un développement intérieur dont vous êtes conscients ou non vous y avait préparés. Quelles qui soient les causes, elles importent peu à la chose. L’essentiel, c’est que vous soyez partis sur ce que de tout temps, on a appelé le Sentier.
(…)


UN NOUVEAUX CHOIX

Il n’est jamais trop tard,
Nous avons toujours le choix.
LE VIEUX DE LA MONTAGNE

(…)
Ainsi se retrouve au stade collectif le problème qui se pose à chacun de nous: celui du bien et du mal et, en définitive, du choix. Encore faut-il que, collectivement, l’humanité soit à même de distinguer entre deux tendances opposées afin de décider du choix que s’impose. C’est là, précisément, qu’intervient la philosophie. Toutes les questions matérielles peuvent être transposées dans les champs de la pensée; non seulement elles le peuvent, mais elles le doivent, afin que l’homme ne soit jamais guidé par ses seuls instincts égoïstes. Finalement, qu’on le veuille ou non, l’effort de synthèse ramène tous le problèmes particuliers au problème premier; celui de l’homme et de sa raison d’être. La double nature de toutes choses se manifeste à tous les stades de la création et du comportement humain et c’est ainsi quand en même temps qu’une poussée du matérialisme, on remarque une avancé non moins grande du mysticisme.
(…)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MOHANDAS, Johannes C.. Le Saint de la Montagne – Tome I: La Vallée des Merveilles. AL Éditions, 2018, pp. 80. ISBN 978-295-211-142-3

NOTA
O lançamento de Le Saint de la Montagne decorreu, no passado sábado (dia 17 de Março), na Casa do Fauno (em Sintra) e a obra pode ser adquirida com preço promocional, até ao final do mês de Março, no site da editora Zéfiro.



segunda-feira, 19 de março de 2018

D'o Pai do Montanhismo


Ben Nevis (Escócia) © Pedro Cuiça (2007)

O acto de subir remonta às origens do Homem mas é na segunda metade do século XVIII que surge o alpinismo. Já percorrida por intrépidos viajantes, caçadores e colectores de minerais, é nessa altura que o público erudito descobre os encantos da alta-montanha (e, sobretudo, da média montanha). Enquanto Jean-Jacques Rousseau percorre “em êxtase esses lugares tão pouco conhecidos e tão dignos de serem admirados”, um outro genebrino, Horace-Bénédict de Saussure, lança-se no projecto de ascender a, então, considerada a montanha mais alta da Europa: o Monte Branco (4807 m). Desejo que viria a concretizar um quarto de século mais tarde, em 1787, um ano depois da primeira ascensão realizada por Jacques Balmat, um “guia” de Chamonix, e Michel-Gabriel Pacard. A ascensão levada a cabo por Saussure teve tais repercussões na Europa que o Monte Branco e a montanha, em geral, se tornaram moda. Daí que Saussure seja considerado o pai do alpinismo e a sua ascensão marque o começo dessa actividade.
De facto, o montanhismo começa a ser praticado, no século XVIII, com as primeiras ascensões sistemáticas nos Alpes efectuadas sobretudo por britânicos e guias locais. Ao princípio seguiram-se trajectos tecnicamente fáceis mas posteriormente foram sendo enfrentadas dificuldades cada vez mais ousadas. Não admira, pois, que as técnicas de escalada em rocha se tivessem desenvolvido um pouco tardiamente em relação às técnicas de neve. Até aos anos 80 do século XIX, os alpinistas centraram a sua atenção na conquista das mais altas montanhas dos Alpes pelas vias mais acessíveis, sendo estas raramente rochosas. As primeiras escaladas, no Grépon (Maciço do Monte Branco), marcam a transição para itenerários com partes rochosas. A evolução do alpinismo no Maciço do Monte Branco foi sintetizada de forma genial por Frison-Roche: “Aprés le mont Blanc, la Verte; aprés la Verte, le Dru”. Essa evolução demorou um século: O Monte Branco foi ascendido pela primeira vez em 1786, a Verte em 1865 e o Dru em 1878.
[CUIÇA, 2010: 23-24]

São Roque (Pico) © Pedro Cuiça (2016)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CUIÇA, Pedro. Guia de Montanha – Manual Técnico de Montanhismo I. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal/Campo Base, 2010, pp. 224. ISBN 978-989-96647-1-5

Era A(l)titude


«No século XIX, a montanha passa a também exercer grande atracção turística, fruto de uma afinidade com a natureza decorrente do iluminismo e do romantismo, que a sentimentalizam. A abertura dos Alpes aos turistas terá contribuído bastante para o desenvolvimento do montanhismo e a Suíça torna-se o «recreio» da Europa. Nascem vários clubes dedicados ao montanhismo, aristocráticos no começo, mas progressivamente aburguesados e até proletizados. Esta é a época em que surge o turismo de saúde na montanha, com a construção de vários sanatórios e clínicas para a prevenção ou cura da tuberculose, mas também do ligado à prática de desportos de Inverno.» [BARROS, 2015: 22]

Expedição Científica à Serra da Estrela (1881) © na Net (?)

A atracção pela montanha e pelas práticas turístico-desportivas, designadamente o montanhismo e o esqui, tal como a promoção da saúde e dos sanatórios em altitude, também estiveram em voga, no século XIX, no nosso País. «A prática de montanhismo em Portugal remonta (…) aos finais do século XIX inícios do século XX e está associada a Gomes Teixeira, Emídio Navarro e Sousa Martins, entre outros pioneiros. O papel desempenhado pela Expedição Scientifica á Serra da Estrella, de 1881, foi marcante para a implementação e desenvolvimento da actividade. O Cântaro Magro foi escalado, durante essa expedição organizada pela Sociedade Geográfica de Lisboa, por Alfredo Serrano e outros companheiros. Aliás, a montanha já tinha sido escalada anteriormente. A obra Quatro Dias na Serra da Estrela de Emídio Navarro, editada em 1884, surge como resultado imediato da forte dinâmica imposta pela dita expedição e constitui um excelente exemplo do espírito que se vivia nos alvores do montanhismo em Portugal.
Apesar das viagens do matemático Francisco Gomes Teixeira terem sido publicadas somente em 1926 ocorreram no final do século XIX, mais precisamente na segunda metade da década de 70. O livro Santuários de Montanha – Impressões de Viagens, não sendo o primeiro publicado em Portugal sobre montanhismo, é sem dúvida um marco maior da bibliografia de montanha em Portugal.
Em 1912 já se falava, no livro Aos Montes Hermínios – Impressões de uma viagem de exploração desportiva na Serra da Estrella organisada pela revista «Tiro e Sport», de Duarte Rodrigues, na criação do “Club Alpino Portuguez”.» [CUIÇA, 2010: 37-38]
O famoso Sousa Martins, médico e professor catedrático da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, para além de ter sido um dos pioneiros da prática de montanhismo em Portugal também foi um grande promotor da implantação de Casas de Saúde em altitude… A importância do turismo de saúde na montanha continuou no século XX, designadamente através da construção do Sanatório da Serra da Estrela, tal como a implementação dos desportos de inverno que, nos anos 30-40, viriam a revelar um desenvolvimento notável. Curioso será o estado a que chegou a prática de desportos de montanha, mormente no que concerne ao montanhismo e à escalada, mas também ao esqui, na Serra da Estrela! Será caso para lembrar ecos de outros tempos? ««Altitude» não significa apenas uma certa posição física, – situação dum ponto acima do nível do mar; traduz também uma posição moral, elevação da alma acima do comum, acima do charco lodoso ou da planície rasa, onde pululam a grosseria e a mediocridade…» [PATRÍCIO, 1938: 9] Altitude era atitude e ainda é?

Sanatório da Serra da Estrela © na Net (?)


Torre (1991 m) © na Net (?)


© na Net (?)



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Vera Gouveia. Turismo em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015, pp. 88. 
CUIÇA, Pedro. Guia de Montanha – Manual Técnico de Montanhismo I. Lisboa: Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal/Campo Base, 2010, pp. 224. ISBN978-989-96647-1-5
PATRÍCIO, Ladislau. Altitude – O Espírito na Medicina. Lisboa: Edições Europa, 1938, pp. 192.


Espólio fotográfico de Manuel Magno, fundador do Ski Club de Portugal
© na Net (?)

quarta-feira, 14 de março de 2018

Walking by Thoreau


Três edições portuguesas de uma mesma obra de Henry David Thoreau, três títulos diferentes – Caminhada, A Arte de Caminhar e Caminhar –, uma nota prévia, uma introdução e uma “coisa” do mesmo género…

© na Net (?)

«Numa primeira acepção, Caminhada apresenta-se talvez ao leitor mais desprevenido como uma simples exortação ao refúgio na natureza agreste, apelo que valeu à obra, tal como Nature, de Emerson, o estatuto contemporâneo de ensaio basilar pelo qual se norteiam os movimentos ecologistas. A profunda sensibilidade poética do autor, a humanização da paisagem e dos seus elementos e o poder categórico das suas afirmações concisas, com potencial de porta-estandarte para as facções ambientalistas da actualidade, fazem de Caminhada um monumento perene à Natureza, reflexo de um princípio criador segundo o transcendentalismo.
Porém, o encanto da palestra [apresentada por mais de dez vezes entre 1851 e 1860] provém sobretudo da qualidade visionária das suas linhas. Nos primórdios da Revolução Industrial americana, impunha-se a Thoreau o dever de chamar os seus concidadãos à razão numa Nova Inglaterra onde, em nome do bem-estar material, fora já plantada a semente de um mal-estar espiritual. Thoreau entrevia precocemente o perigo da sociedade materialista e da destruição do seu torrão: a distorção das necessidades básicas do homem que, por via da ganância da espécie, o condena à condição de autómato. Em Caminhada, o percurso físico que o autor advoga (em parte, um artifício que esconde o seu verdadeiro intento e que se coaduna com a famosa frase de Emerson, mentor de Thoreau: «A natureza é uma metáfora da mente humana») é afinal, um percurso espiritual, uma cruzada e uma viagem interior, rumo a uma vida reduzida ao essencial e à liberdade necessária para que o homem se torne dono e senhor de si mesmo, alheado de leis arbitrárias e de uma vida em comunidade que o subjuga às verdades maiores. Tal como Walden ou a Vida nos Bosques, Caminhada é um derradeiro alerta para que o homem entenda que desligar-se do mundo natural, e da espiritualidade que este encerra, e subvertê-lo ou estar excessivamente preso à civilização redundam na perda de capacidades vitais, na degradação de instintos vitais e no declínio civilizacional.»
Maria Afonso (in THOREAU, 2012: 7-9)

© na Net (?)

«Thoreau serve-se dos pés e fá-lo conscientemente em benefício da plenitude do seu ser. Longe de se assumir como um desportista que sai para fazer uns quantos quilómetros, ele pratica a caminhada, como terapêutica natural e inteligente. Para ele, andar a pé é algo de sublime porque lhe permite sentir e comunicar com uma inteligência pura e subtil que ultrapassa o pobre saber do homem comum.
(…) Este homem invulgar no seu tempo, e ainda nos dias de hoje, pratica a arte de caminhar de uma forma que poderíamos definir como “caminhada mitológica”. Para sair do “tempo normalizado” e viver de acordo com um ritmo absoluto; para abstrair-se da via do desenvolvimento e reencontrar o “verdadeiro caminho” do primordial; para afastar-se da doença moderna e regenerar-se nas fontes do vigor que ele vê mitologicamente como a árvore-dragão das Ilhas Ocidentais.
Existiam árvores-dragão à volta do lado de Walden – mesmo se a grande maioria dos cidadãos de Concord as não via.
Este Thoreau que anda como se fosse parte integrante da natureza, que faz de si um errante «sem terra», é para provocar ou procurar o desfazer dos laços que o prendem ao seu meio social, à sua humanidade.
Em boa verdade todos sabemos que andar é descondicionar-se, numa espécie de ioga deambulatório, onde podemos reencontrarmo-nos num outro ser, um ser mítico, ou seja ligando-nos aos princípios das fontes do vigor.
Viver uma vida mítica é, pois, viver uma vida principal, uma vida original e esta inteligência, Thoreau não a encontra na ciência, como também não irá encontrá-la na maior parte da cultura, considerada como poesia; mas afinal qual é a literatura que consegue exprimir em palavras a plenitude da Natureza?»
(in THOREAU, 2011: 7-9)

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«Só uma ou duas pessoas encontrei na vida, diz Thoreau no seu ensaio Caminhar, que compreendiam a Arte de Caminhar. Segundo Thoreau, praticar a arte de caminhar é saber fazer o sautering, palavra que tanto faz derivar de «sem terra» como de «ir à Terra Santa». Esta última etimologia é que ele prefere, e declara: Toda a caminhada é uma espécie de cruzada que um Pedro o Eremita qualquer prega dentro de nós para partirmos e reconquistarmos a Terra Santa nas mãos dos Infiéis. Porque há pessoas, há civilizações inteiras que não sabem o que significa sermos «fiéis à Terra» e não têm nenhuma noção da sua «santidade». Os «civilizados» talvez sejam todos da mesma espécie. Por isso Thoreau não fala em nome da civilização – haverá sempre muitas vozes a fazê-lo – mas em nome da vida selvagem, considerando o homem como parte integrante da natureza  e não como membro da sociedade.
Thoreau ou «o homem do exterior» por excelência.
Só um caminhante de primeira ordem podia pertencer à Walden Pond Association. Na aldeia de Concord chamavam assim aos «passeantes de domingo», ou seja, não os que passeiam só aos domingos, mas os que nunca vão à igreja aos domingos e preferem os bosques. Podem dar-se nomes a estes passeantes transcendentalistas: Ralph Waldo Emerson, Bronson Alcott, Frank Sanborn, Ellery Channing, Henry Thoreau. Era Henry, sem dúvida, o mais exigente de todos os passeantes, o mais rebelde a companhias que não estivessem à sua altura.
(…) Henry, sobretudo estava farto do «antropo»; e mais ou menos de tudo o que era «humanidade», excepção feita a alguns velhos caçadores e indíos errantes, estava a mais na natureza. Na sua opinião, a humanidade espalhava icterícia moral num mundo que ele queria sentir fresco e em plena aurora. «Tantas auroras existem que ainda não brilharam», tinha ele lido nos Vedas. Não havia tempo a perder com a opacidade humana. Havia que andar em direcção à luz…
(…) Onde está a literatura que consegue exprimir a Natureza? Fá-la-ia o poeta que soubesse pôr os ventos e as torrentes ao seu serviço, a falar por ele; []  usasse palavras tão novas, naturais e autênticas que [] parecessem expandir-se como os rebanhos quando a Primavera se aproxima. [] Nenhum poeta conheço que possa mencionar-se como expressão adequada desta ânsia pelo Selvagem.  Abordada sob esta perspectiva, a mais bela poesia é insípida. [] Compreender-se-áque peço algo que os séculos de Augusto a Isabel, para resumir nenhuma cultura, podem oferecer. [] A mitologia aproxima-se mais disto que outra coisa qualquer.
Thoreau pratica o que poderíamos chamar a caminhada mitológica. Para sair do tempo e viver de acordo com um ritmo absoluto; para sair da via do desenvolvimento e reencontrar o caminho do primordial; para sair da doença moderna e se regenerar nas fontes do vigor que ele vê mitologicamente como a árvore-dragão das Ilhas Ocidentais.  
Existiam árvores-dragões à volta do lago Walden – mesmo se a grande maioria dos cidadãos de Concord as não via.
Tu Fu cantava «o dragão que nenhum laço retém». Se Thoreau anda, se faz de si um errante «sem terra», é para se desfazer dos laços que o prendem ao seu meio social, à sua humanidade, ao seu eu. Andar é descondicionar-se (ioga ambulatório) e reencontrar-se num ser outro: um ser mítico, quer dizer, com o mito a passar-se in principio, ligado ao princípio. Viver uma vida mítica é, pois, viver uma vida principial, uma vida original, «casada, diz Yeats, com os rochedos e as colinas».
(…) Caminhar com Thoreau é ultrapassar as aparências. Atrás do puritano  americano do século XIX havia um índio, atrás do índio um chinês, atrás do chinês um ser que não tinha nome. Na sua caminhada extravagante era este último que ele queria realizar.
Kenneth White (in THOREAU, 1995: 11- 16)

© na Net (?)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
THOREAU, Henry David. Caminhada. Lisboa: Antígona, 2012, pp. 88. ISBN 978-972-608-225-5
THOREAU, Henry David. A Arte de Caminhar. Lisboa: Padrões Culturais Editora, 2011, pp. 104. ISBN 978-989-709-003-5
THOREAU, Henry David. Caminhar. Lisboa: Hiena Editora, 1995, pp. 80.