O pal-a(n)dar do coração da maçã…
«O caminho da Serpente está fora das
ordens e das iniciações, está, até, fora das leis (rectilíneas) dos mundos e de
Deus.»
Fernando Pessoa
«Deus escreve direito por linhas tortas» e certamente
curvas por linhas rectas, por isso é que também (co)existirão liberdades (até curvilíneas)
nos mundos!…
Lima de Freitas © Pessoa e "O caminho da serpente" (1995)
«(…) a sinuosidade com que caminhamos embriagados é também
uma descoberta. Essa sinuosidade é semelhante ao passeio e não à
funcionalidade. As rectas são a absoluta simplicidade e a simplicidade faria
que, por exemplo, boa parte da literatura não existisse. Para quê embelezar uma
frase quando podemos dizer o mesmo de modo sintético e objectivo? A ambiguidade
e a decoração são um estorvo.
A elegância como sinónimo de simplicidade é muito pouco
inteligente, a elegância é uma beleza simples, mas nem toda a simplicidade é
elegante. Um bruto é simples e não é elegante. É evidente que a beleza pode ser
simples, mas não podemos dizer que um tapete liso, de ráfia, é mais bonito do
que um tapete persa simplesmente porque a simplicidade do primeiro é mais
evidente do que a do segundo. Provavelmente ninguém acha que uma catedral sem
ornamentos é mais bela do que as profusamente decoradas. Nesse sentido,
Mondrian seria muito melhor do que Seurat ou Rembrandt ou Klimt. E Malevitch
muito mais elegante do que Mondrian. Achar que a simplicidade é esteticamente
superior à complexidade é um absurdo, mas é isso que acontece quando se prefere
a simplicidade (porque é uma das características da elegância) e se considera a
clareza e a objectividade virtudes acima da ambiguidade e da alusão. Creio que
a silhueta geométrica de um prédio não é mais bela ou interessante do que a
silhueta de uma árvore. A primeira é simples e sintética e pode ser desenhada
com um rectângulo, a outra compreende a confusão de ramos e folhas num padrão
único. A simplicidade pode ser bela, mas a complexidade também. Favorecer uma
forma de beleza em detrimento de outra é efectivamente uma simplicidade, e,
neste sentido, a simplicidade é sinónimo de limitação. Não de apuro estético ou
elegância, mas da incapacidade para apreciar a complexidade no que ela pode ter
de belo. É uma forma de recusar uma parte fundamental da realidade.
O andar sinuoso é muitas vezes a decoração do acto de
caminhar, é um caminhar adornado. Podemos dirigir-nos convictamente para o nosso objectivo
(que também terá a sua beleza, na eficácia, na precisão), mas, se queremos que
esse caminho seja feito com alguma diversidade e surpresa, então vamos ter de
acrescentar alguma coisa à monotonia fria da recta e ao utilitarismo, vamos
ter de acrescentar algumas voltas inesperadas, o insólito, a sensualidade, as
curvas e contracurvas. O andar do Bêbedo é uma bela parábola para descrever
uma vida em que mantemos uma certa direcção, mas não abdicamos de umas voltas
para condimentar a austeridade seca e ascética da linha recta. É evidente que a
linha recta tem os seus méritos, mas as curvas também. Caberá a cada um de nós
saber quando deve correr, dançar ou cambalear.»
[CRUZ, 2019: 51-53]
«A line is a dot that went for a walk.» Paul Klee
«Segundo uma longa tradição do pensamento, instigada por
Platão, a racionalidade é o que distingue a excelência humana. Mas tal só vem
reiterar a ideia de que a excelência também está relacionada com a forma de
vida animal. A excelência para uma chita consiste em ser veloz, porque a
velocidade é aquilo em que as chitas se especializam. A excelência para um lobo
consiste, entre outras coisas, numa espécie de endurance que lhe permite
correr durante vinte quilómetros atrás de uma presa. O que é excelente depende
daquilo que somos.
A racionalidade é melhor do que a velocidade e do que a endurance
– somos tentados, talvez de uma forma irresistível, a dizê-lo. Mas como é que
podemos justificar isso, em que bases? Não existe nenhum sentido objectivo de “melhor”
que nos permita dizer isso. Visto isto, a palavra “melhor” perde o sentido.
Simplesmente, há o que é melhor para o homem e o que é melhor para o lobo. Não
existe um padrão comum que permita avaliar os diferentes sentidos de melhor.
Nós seres humanos, não conseguimos perceber isso, porque é
sempre muito difícil sermos objectivos em relação a nós próprios. Eu próprio
não consigo afugentar a sensação de que me está a falhar alguma coisa. Portanto,
vamos a um exercício de objectividade. Os filósofos medievais usaram uma frase
que acho linda e importante: sub specie aeternitatis – sob o
olhar da eternidade. Sob o olhar da eternidade, vemo-nos como mais um ponto entre
muitos na vasta escuridão estrelada do universo. Sob o olhar da eternidade, os
seres humanos são apenas mais uma espécie entre outras – uma espécie que não
anda cá há muito tempo e, ao que tudo indica, também não irá ficar por cá por
muito mais tempo. Em que é que a minha capacidade de trabalhar problemas
conceptuais complexos pode interessar aos olhos da eternidade?
(…)
Havia, obviamente, uma espécie de beleza que eu jamais
poderia emular. O lobo é arte na sua expressão suprema e é impossível estarmos
na sua presença sem sentirmos esta elevação de espírito. (…) Sobretudo, é
difícil estar ao lado de tamanha beleza sem se desejar ser como ela.
Mas se a arte do lobo era algo que eu não conseguiria imitar,
tê-la sempre em mente era outra coisa: podia ao menos tentar aproximar-me dessa
força. O primata que sou é uma criatura torta e desajeitada que vive no meio da
fraqueza com que, em última análise, está infectado. É essa fraqueza que
permite à maldade – a maldade moral – pôr pé firme no mundo. A arte do lobo
fundamenta-se na sua força.
[ROWLANDS, 2009: 108-109]
«Conspirar e enganar são a base do tipo de inteligência
social dos primatas e dos símios. Por qualquer motivo, os lobos nunca
enveredaram por esse caminho. (…) Ninguém consegue compreender porque é que os
primatas adoptaram esta estratégia e os lobos não. Mas mesmo que não saibamos
por que razão isso aconteceu, uma coisa é completamente certa: aconteceu.
Esta forma de inteligência, obviamente, atinge o seu máximo
no rei dos primatas: o Homo sapiens. Quando falamos na inteligência
superior dos primatas, na superioridade da inteligência símia em relação à
inteligência lupina, não nos devemos esquecer dos termos desta comparação: os
primatas são mais inteligentes do que os lobos porque, em última análise, são
melhores a conspirar e a enganar do que os lobos. É a partir daí que decorre a
diferença entre símios e lobos.
(…) A nossa complexidade, sofisticação, arte, cultura,
ciência, as nossas verdades – a nossa, como gostamos de acreditar, grandeza:
tudo isto foi comprado, e a moeda foi a conspiração e a fraude. A maquinação e
a falsidade estão no cerne da nossa inteligência superior, como as lagartas se
aninham no coração da maçã.»
[ROWLANDS, 2009: 68-70]
Pedro Cuiça © Templo da Sagrada Família (Barcelona - Catalunha, 12 de Agosto de 2019)
A simplicidade surge como sinónimo de elegância. E esta é
de uma beleza simples mas não simplória. E é manifesto que a beleza se encontra
na singeleza e no minimalismo, sem, contudo, estar arredada da
complexidade. Uma catedral sem adornos poderá ser mais bela do que
uma profusamente ornamentada e o contrário também se verifica. A realidade é
policromática e não a preto e branco, sendo a paradoxal convivência de (aparentes ou concretos) contrários não só possível como desejável.
Os caminhos serpentiformes, sinuosos, com voltas
inopinadas, com curvas e contracurvas, com íngremes subidas e vertiginosas
descidas, com pisos irregulares e até instáveis, fazem parte da vida e devem
ser encarados com resoluto ânimo. Caberá a cada um de nós saber enfrentar os momentos que se nos deparem, saber cambalear, dançar, escalar, correr, caminhar, parar ou retomar a
marcha. Estar sempre pronto, mormente a retomar a marcha. O Homo, tal
como os lobos, possui uma capacidade inusitada de endurance, mas também
é versado noutras artes. Quem, na verdade, veste a pele de ovelha não é o lobo
mas sim o macaco bípede. Conspirar e enganar são características dos primatas e
os lobos nunca evidenciaram predileção pelos caminhos tortuosos do Trickster.
Quem é apreciador do ar rarefeito e da intensa luminosidade
das altitudes e/ou de pitorescas paragens selvagens, longe de civilizadas turbas
ruidosas, prefere certamente o aurífero silêncio, a linguagem dos pássaros ou
até algum parlar ou cantar onomatopaico ao invés de discursos pomposos ou melífluos... É evidente
que as curvas têm os seus méritos, mas a recta também. E, nessa matéria, nunca
é tarde de mais para rectificar o caminho, ornando-o de sabedoria, beleza e força; nem que
para isso seja necessário comer a maçã, silvestre ou domesticada, e até o bicho que nela se
aninha.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRUZ, Afonso. O macaco bêbedo foi à opera – Da embriaguez
à civilização. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019, pp.
80. ISBN 978-989-8943-58-3
ROWLANDS, Mark. O filósofo e o lobo. Alfragide: Lua
de Papel, 2009, pp. 232. ISBN 978-989-23-0590-5
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