terça-feira, 29 de outubro de 2019

PAL-A(n)DARES II


O pal-a(n)dar do coração da maçã…


«O caminho da Serpente está fora das ordens e das iniciações, está, até, fora das leis (rectilíneas) dos mundos e de Deus.»
Fernando Pessoa

«Deus escreve direito por linhas tortas» e certamente curvas por linhas rectas, por isso é que também (co)existirão liberdades (até curvilíneas) nos mundos!…

Lima de Freitas © Pessoa e "O caminho da serpente" (1995)

«(…) a sinuosidade com que caminhamos embriagados é também uma descoberta. Essa sinuosidade é semelhante ao passeio e não à funcionalidade. As rectas são a absoluta simplicidade e a simplicidade faria que, por exemplo, boa parte da literatura não existisse. Para quê embelezar uma frase quando podemos dizer o mesmo de modo sintético e objectivo? A ambiguidade e a decoração são um estorvo.
A elegância como sinónimo de simplicidade é muito pouco inteligente, a elegância é uma beleza simples, mas nem toda a simplicidade é elegante. Um bruto é simples e não é elegante. É evidente que a beleza pode ser simples, mas não podemos dizer que um tapete liso, de ráfia, é mais bonito do que um tapete persa simplesmente porque a simplicidade do primeiro é mais evidente do que a do segundo. Provavelmente ninguém acha que uma catedral sem ornamentos é mais bela do que as profusamente decoradas. Nesse sentido, Mondrian seria muito melhor do que Seurat ou Rembrandt ou Klimt. E Malevitch muito mais elegante do que Mondrian. Achar que a simplicidade é esteticamente superior à complexidade é um absurdo, mas é isso que acontece quando se prefere a simplicidade (porque é uma das características da elegância) e se considera a clareza e a objectividade virtudes acima da ambiguidade e da alusão. Creio que a silhueta geométrica de um prédio não é mais bela ou interessante do que a silhueta de uma árvore. A primeira é simples e sintética e pode ser desenhada com um rectângulo, a outra compreende a confusão de ramos e folhas num padrão único. A simplicidade pode ser bela, mas a complexidade também. Favorecer uma forma de beleza em detrimento de outra é efectivamente uma simplicidade, e, neste sentido, a simplicidade é sinónimo de limitação. Não de apuro estético ou elegância, mas da incapacidade para apreciar a complexidade no que ela pode ter de belo. É uma forma de recusar uma parte fundamental da realidade.
O andar sinuoso é muitas vezes a decoração do acto de caminhar, é um caminhar adornado. Podemos dirigir-nos convictamente para o nosso objectivo (que também terá a sua beleza, na eficácia, na precisão), mas, se queremos que esse caminho seja feito com alguma diversidade e surpresa, então vamos ter de acrescentar alguma coisa à monotonia fria da recta e ao utilitarismo, vamos ter de acrescentar algumas voltas inesperadas, o insólito, a sensualidade, as curvas e contracurvas. O andar do Bêbedo é uma bela parábola para descrever uma vida em que mantemos uma certa direcção, mas não abdicamos de umas voltas para condimentar a austeridade seca e ascética da linha recta. É evidente que a linha recta tem os seus méritos, mas as curvas também. Caberá a cada um de nós saber quando deve correr, dançar ou cambalear.»
[CRUZ, 2019: 51-53]

«Segundo uma longa tradição do pensamento, instigada por Platão, a racionalidade é o que distingue a excelência humana. Mas tal só vem reiterar a ideia de que a excelência também está relacionada com a forma de vida animal. A excelência para uma chita consiste em ser veloz, porque a velocidade é aquilo em que as chitas se especializam. A excelência para um lobo consiste, entre outras coisas, numa espécie de endurance que lhe permite correr durante vinte quilómetros atrás de uma presa. O que é excelente depende daquilo que somos.
A racionalidade é melhor do que a velocidade e do que a endurance – somos tentados, talvez de uma forma irresistível, a dizê-lo. Mas como é que podemos justificar isso, em que bases? Não existe nenhum sentido objectivo de “melhor” que nos permita dizer isso. Visto isto, a palavra “melhor” perde o sentido. Simplesmente, há o que é melhor para o homem e o que é melhor para o lobo. Não existe um padrão comum que permita avaliar os diferentes sentidos de melhor.
Nós seres humanos, não conseguimos perceber isso, porque é sempre muito difícil sermos objectivos em relação a nós próprios. Eu próprio não consigo afugentar a sensação de que me está a falhar alguma coisa. Portanto, vamos a um exercício de objectividade. Os filósofos medievais usaram uma frase que acho linda e importante: sub specie aeternitatis – sob o olhar da eternidade. Sob o olhar da eternidade, vemo-nos como mais um ponto entre muitos na vasta escuridão estrelada do universo. Sob o olhar da eternidade, os seres humanos são apenas mais uma espécie entre outras – uma espécie que não anda cá há muito tempo e, ao que tudo indica, também não irá ficar por cá por muito mais tempo. Em que é que a minha capacidade de trabalhar problemas conceptuais complexos pode interessar aos olhos da eternidade?
(…)
Havia, obviamente, uma espécie de beleza que eu jamais poderia emular. O lobo é arte na sua expressão suprema e é impossível estarmos na sua presença sem sentirmos esta elevação de espírito. (…) Sobretudo, é difícil estar ao lado de tamanha beleza sem se desejar ser como ela.
Mas se a arte do lobo era algo que eu não conseguiria imitar, tê-la sempre em mente era outra coisa: podia ao menos tentar aproximar-me dessa força. O primata que sou é uma criatura torta e desajeitada que vive no meio da fraqueza com que, em última análise, está infectado. É essa fraqueza que permite à maldade – a maldade moral – pôr pé firme no mundo. A arte do lobo fundamenta-se na sua força.
[ROWLANDS, 2009: 108-109]




«Conspirar e enganar são a base do tipo de inteligência social dos primatas e dos símios. Por qualquer motivo, os lobos nunca enveredaram por esse caminho. (…) Ninguém consegue compreender porque é que os primatas adoptaram esta estratégia e os lobos não. Mas mesmo que não saibamos por que razão isso aconteceu, uma coisa é completamente certa: aconteceu.
Esta forma de inteligência, obviamente, atinge o seu máximo no rei dos primatas: o Homo sapiens. Quando falamos na inteligência superior dos primatas, na superioridade da inteligência símia em relação à inteligência lupina, não nos devemos esquecer dos termos desta comparação: os primatas são mais inteligentes do que os lobos porque, em última análise, são melhores a conspirar e a enganar do que os lobos. É a partir daí que decorre a diferença entre símios e lobos.
(…) A nossa complexidade, sofisticação, arte, cultura, ciência, as nossas verdades – a nossa, como gostamos de acreditar, grandeza: tudo isto foi comprado, e a moeda foi a conspiração e a fraude. A maquinação e a falsidade estão no cerne da nossa inteligência superior, como as lagartas se aninham no coração da maçã
[ROWLANDS, 2009: 68-70]

Pedro Cuiça © Templo da Sagrada Família (Barcelona - Catalunha, 12 de Agosto de 2019)

A simplicidade surge como sinónimo de elegância. E esta é de uma beleza simples mas não simplória. E é manifesto que a beleza se encontra na singeleza e no minimalismo, sem, contudo, estar arredada da complexidade. Uma catedral sem adornos poderá ser mais bela do que uma profusamente ornamentada e o contrário também se verifica. A realidade é policromática e não a preto e branco, sendo a paradoxal convivência de (aparentes ou concretos) contrários não só possível como desejável.
Os caminhos serpentiformes, sinuosos, com voltas inopinadas, com curvas e contracurvas, com íngremes subidas e vertiginosas descidas, com pisos irregulares e até instáveis, fazem parte da vida e devem ser encarados com resoluto ânimo. Caberá a cada um de nós saber enfrentar os momentos que se nos deparem, saber cambalear, dançar, escalar, correr, caminhar, parar ou retomar a marcha. Estar sempre pronto, mormente a retomar a marcha. O Homo, tal como os lobos, possui uma capacidade inusitada de endurance, mas também é versado noutras artes. Quem, na verdade, veste a pele de ovelha não é o lobo mas sim o macaco bípede. Conspirar e enganar são características dos primatas e os lobos nunca evidenciaram predileção pelos caminhos tortuosos do Trickster.
Quem é apreciador do ar rarefeito e da intensa luminosidade das altitudes e/ou de pitorescas paragens selvagens, longe de civilizadas turbas ruidosas, prefere certamente o aurífero silêncio, a linguagem dos pássaros ou até algum parlar ou cantar onomatopaico ao invés de discursos pomposos ou melífluos... É evidente que as curvas têm os seus méritos, mas a recta também. E, nessa matéria, nunca é tarde de mais para rectificar o caminho, ornando-o de sabedoria, beleza e força; nem que para isso seja necessário comer a maçã, silvestre ou domesticada, e até o bicho que nela se aninha.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRUZ, Afonso. O macaco bêbedo foi à opera – Da embriaguez à civilização. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019, pp. 80. ISBN 978-989-8943-58-3
ROWLANDS, Mark. O filósofo e o lobo. Alfragide: Lua de Papel, 2009, pp. 232. ISBN 978-989-23-0590-5

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